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Usucapião familiar na atualização do Código Civil: um olhar à luz da proteção das vulnerabilidades

04-06-2024

Notas introdutórias

Com imensa honra integrei a Comissão de Juristas, responsável pela apresentação de um anteprojeto de lei de atualização e reforma do Código Civil. Ingressei na Comissão em setembro de 2023 e a partir de então foram horas de intensa imersão no Direito Civil, especialmente, no Direito das Coisas, por fazer parte dessa subcomissão ao lado do Desembargador Marco Oliveira Milagres (TJMG) e do Advogado Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, sob a relatoria do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJRJ). Trago algumas paixões na vida, e a propósito deste escrito compartilho com os leitores minha paixão pela literatura. Assim, não poderia iniciar estas linhas, sem dividir com o leitor uma imagem que sempre me vem à mente, quando penso no Código Civil vigente.

Sabe-se que o Código Civil brasileiro de 2002, em muitos aspectos, assemelha-se ao personagem Benjamin Button, imortalizado pela escrita precisa de Fitzgerald, na década de 19221 e, posteriormente, conhecido também por aqueles que nutrem o fascínio pelas telas de cinema numa produção magnificamente dirigida por David Fincher e interpretada pelo trabalho impecável dos atores Brad Pitt, Cate Blanchet e Julia Ormond2.

Quem assistiu ao filme ou leu o romance de Fitzgerald, sabe que Benjamin Button dribla a ordem de Chronos3 e rejuvenesce com o passar dos anos. Assim, apesar de nascer idoso, com os achaques próprios da idade, à medida que o tempo passa, Benjamin vai atingindo o seu auge em aptidão física, psíquica e intelectual. Nas telas do cinema esse apogeu é retratado pela beleza do ator Brad Pitt. Embora tanto o romance quanto o filme homônimo nos proponham certas conclusões a respeito da solidão inerente a esse caminho inverso, trilhado pelo personagem, permite-nos também sonhar com o tempo, como um fiel amigo, conduzindo-nos à nossa melhor forma.

Infelizmente, a semelhança entre o Código Civil de 2002 e Benjamin Button guarda semelhança apenas quanto ao nascimento. Ambos nasceram velhos, mas enquanto o herói de Fitzgerald rejuvenesce, o nosso Código, infelizmente, permaneceu velho por todo o tempo. Por essa razão, antes de tudo, é preciso registrar a importância fundamental da jurisprudência brasileira que transcendeu a norma e a aproximou da realidade social que a alberga.

Para tanto, é suficiente lançar um olhar para o passado, para compreender que a aprovação do Projeto de 1975, transformado posteriormente na Lei nº 10.406, de 2002, inauguraria, invariavelmente, novas dificuldades de harmonização das fontes normativas revisitadas pelos valores axiológicos introduzidos pela redemocratização do país e cristalizados na Carta Política de 19884.

Desse modo o trabalho da Comissão5, sob a condução dos incansáveis Relatores Gerais Professores Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce, foi pautado na manutenção das diretrizes principiológicas da operabilidade, sociabilidade e eticidade, marcas indeléveis do Código Reale, que representa extrema sensibilidade e acerto na normatização da vida privada.

Destarte, procurou-se incorporar ao texto normativo aquilo que já estava consolidado na Jurisprudência dos Tribunais Superiores; nos Enunciados das Jornadas de Direito Civil e na Legislação extravagante afeita a cada área do Direito Civil.

Feitas essas considerações iniciais, passa-se a abordar o tema que será objeto dessa reflexão: usucapião familiar.

A escolha do tema se deveu a dois fatores. Primeiro por se tratar de um dos institutos mais utilizados para resolver a questão fundiária no Brasil, desempenhando importante papel de regularização fundiária e de proteção da posse. O segundo motivo, igualmente importante, deve-se aos dados da estatística demonstrando que mais da metade da população brasileira tem seus domicílios liderados por mulheres.

No censo 20226, dos 75 milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres, o que corresponde a 38,1 milhões de lares. Nesse panorama, não se pode furtar de lançar na atividade de atualização desse normativo uma análise sob a perspectiva de gênero. Essa recomendação, inclusive, pode ser vista em outros dispositivos que serão objeto de futuras reflexões. Pois bem. Por essa razão, a lei 12.424, de 20117, em seu Art. 9, alterou o Código Civil trazendo nova modalidade de aquisição de propriedade por usucapião. Veja-se a redação vigente:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

 

  • 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

A nova modalidade de usucapião, imediatamente, passou a ser palco de intensas digressões doutrinárias e jurisprudenciais. Sabe-se que a usucapião tem incidência para possibilitar a aquisição de propriedade de um bem por aquelas pessoas que exercem atos de posse por certo período, sobre imóveis rurais e urbanos, dando-lhes destinação social e econômica, sem, contudo, dispor do título de propriedade necessário a transferências e negociações imobiliárias.

Controverte a doutrina tratar-se de aquisição originária ou derivada, embora se veja na dogmática brasileira a prevalência do entendimento de consubstanciar-se em forma de aquisição originária de direitos reais, uma vez que sua incidência não pressupõe a existência de uma relação jurídica anterior entre aquele que exerce a posse com animo domini e o que vem a perder a coisa em razão de sua inércia, associada ao transcurso do tempo8.

A doutrina imediatamente passou a denominar a nova forma de aquisição de propriedade de usucapião familiar ou por meação, também concebida como forma de aquisição “especialíssima”. Explica-se. Como dito, a maioria da doutrina pátria concebe a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade por não pressupor relação jurídica anterior entre a pessoa do usucapiente e o anterior proprietário. Nessa nova modalidade, porém, ao que parece, a aquisição seria derivada, porquanto é imprescindível a existência de uma relação de conjugalidade (firmada no casamento) ou de convivência (firmada na união estável) entre o usucapiente e o anterior proprietário. Desse modo, para atrair a incidência normativa, são exigidos alguns requisitos, a saber:  i) extensão do imóvel; ii) relação de conjugalidade ou união estável; iii) abandono do lar, iv) o transcurso do tempo. 

Outra situação que rendeu calorosa digressão na doutrina foi a respeito de o objeto dessa modalidade de usucapião ser alvo de composse ou de condomínio, na medida em que a norma de forma expressa aduz “de 250 metros de área que divida com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro”, o que levantaria a dúvida sobre a possibilidade de sua incidência nos casos de entidades familiares regidas por regimes de bens em que não houvesse a comunicação do patrimônio, a exemplo da separação convencional de bens, prevista no art. 1.687 do Código Civil de 2002; ou, ainda, se seria possível sua incidência caso se tratasse de bem particular pertencente ao cônjuge ou convivente que deixou o lar.

Nesse ponto, parece-me que atenderia melhor à exegese da norma e, em uma interpretação conforme a constituição, ser possível a incidência do instituto ainda que a composse se desse apenas na ordem dos fatos, sem a imprescindível mancomunhão do bem em razão do regime patrimonial a incidir na entidade familiar. Nesse passo de ideia, o fato de o imóvel ser registrado no nome de um ou de ambos os cônjuges ou conviventes se demonstra irrelevante. O importante é que a posse direta do bem seja compartilhada por ambos.

Outro ponto igualmente debatido pela doutrina familiarista9, logo após a alteração legislativa, deveu-se ao vocábulo “abandono”. Para alguns, poderia reabrir a possibilidade de perquirição de “culpa” nas rupturas familiares, indo na contramão da exegese introduzida pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010, que transpôs essa inferência para o âmbito privado da vida do ex-casal, primando pela concretização do direito fundamental à intimidade.

É digno de registro que grande parte desses questionamentos já foi paulatinamente enfrentada pela jurisprudência pátria e pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil10, que têm contribuído fortemente para a consolidação da hermenêutica privatística. Assim, por óbvio não pode sofrer com a perda da propriedade a mulher que necessita sair de casa em razão de violência doméstica. Pensar diferente seria afrontar a hermenêutica do julgamento na perspectiva de gênero introduzida pela Resolução nº 492, do CNJ11  e que igualmente serviu de baliza hermenêutica para os trabalhos da Comissão de atualização do Código Civil de 2002.

Ultrapassadas essas questões, passa-se à nova redação do dispositivo:

Art. 1.240-A Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse com intenção de dono, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-convivente que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural

 

  • 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

 

  • 2. O prazo mencionado neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes.

 

  • 3. Presume-se cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto, o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao imóvel.

 

  • 4. As expressões ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução de união estável.

 

  • 5. O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável.

A atualização deste dispositivo, como pode ser observado, pautou-se na atualização do instituto para albergar no vernáculo as entidades familiares homoafetivas, não fazendo mais referência a ex-companheiro e sim ex-convivente, por alcançar a tutela da pessoa independentemente de gênero ou orientação sexual.  Restou consignado o termo inicial da fluência do prazo, trazendo para a norma o que já era conteúdo de enunciado. Outra alteração foi a substituição do termo “domínio” por “propriedade”, posto que o domínio é o poder sobre a coisa, é o próprio pressuposto da pretensão, e o que se busca com a usucapião é o título de propriedade.

Além disso, resta clara a questão de o abandono ser voluntário, protegendo dessa forma aquela mulher que sai de casa em razão de violência doméstica. Outro ponto que merece destaque é a questão de explicitação da posse indireta a impedir a incidência do instituto. Ou seja, é imprescindível que o anterior compossuidor ou coproprietário deixe de efetivar todo pagamento relativo ao imóvel ou à assistência material da família.  

Assim, pode-se perceber que a atualização proposta foi no sentido de acompanhar as mudanças sociais na tentativa de garantir que a legislação reflita a realidade contemporânea.

No campo do direito das famílias emerge a imprescindibilidade de um olhar mais aguçado em razão das múltiplas transformações nos padrões de comportamento, de modo a reclamar um cuidado especial.

Infelizmente, na realidade em que o país ocupa o 7º lugar no ranking de feminicídio12 e violência doméstica, é fundamental fornecer mais proteção às mulheres que são abandonadas e permanecem na residência familiar, pois essas situações frequentemente as deixam em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica e social.

A usucapião familiar surge como importante mecanismo jurídico, permitindo que essas mulheres adquiram a propriedade do imóvel onde residem após um período de tempo, garantindo-lhes segurança habitacional e estabilidade. Esse instituto é crucial para assegurar que essas mulheres não sejam desamparadas, reconhecendo seu direito à moradia e proporcionando uma base mais sólida para reconstruírem suas vidas.

Fonte: Migalhas