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Tokenização imobiliária e competência regulamentar: Notas sobre a recente liminar que suspendeu a resolução COFECI 1.551/25
Por Olivar Lorena Vitale Junior e Juliana Soares de Carvalho Regueira
No último dia 13 de outubro de 2025, a 21ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal concedeu liminar em ação movida pelo ONR – Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, suspendendo os efeitos da resolução COFECI 1.551/25 (“resolução”).
Editada em agosto deste ano pelo COFECI – Conselho Federal de Corretores de Imóveis, a norma busca instituir o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais, disciplinando o credenciamento e o funcionamento das PITDs – Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais e dos ACGIs – Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária, bem como regulamentar as chamadas Transações Imobiliárias Digitais.
Nos termos da decisão, a resolução extrapolou a competência normativa do COFECI, a qual está restrita à disciplina técnica e ética do exercício profissional dos corretores de imóveis, conforme o art. 5º da lei 6.530/1978. O Juízo ressaltou, de forma sucinta, mas esclarecedora, a distinção entre agências reguladoras e conselhos profissionais: embora ambos sejam autarquias, possuem finalidades substancialmente distintas. Enquanto as primeiras regulam setores da economia por meio da emissão de normas técnicas, fiscalização e aplicação de sanções em serviços públicos delegados, os conselhos profissionais regulam e fiscalizam o exercício de uma profissão, sem competência para inovar no ordenamento jurídico.
Sob essa ótica, ao criar figuras como o “Token Imobiliário Digital” e ao dispor sobre custódia, transmissão e representação de direitos reais por meio digital, o COFECI teria adentrado matéria de competência privativa da União, relacionada ao Direito Civil e aos Registros Públicos, bem como à esfera de regulação do CNJ, responsável pela supervisão do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, operado pelo ONR.
Nesse mesmo sentido, a nota técnica 1/25 do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil destacou que a criação de um sistema autônomo de registro de “tokens imobiliários”, nos moldes propostos pela resolução, extrapolaria as competências regulamentares do COFECI, ao adentrar matérias reservadas à União e ao CNJ. O documento também observou que a interoperabilidade, a autenticidade e a publicidade dos atos imobiliários devem permanecer vinculadas ao SREI, que constitui o ambiente institucionalmente reconhecido para o tratamento eletrônico de dados e para a produção dos efeitos jurídicos próprios dos registros imobiliários.
O SREI foi instituído pela lei 13.465/17 com o objetivo de digitalizar e integrar nacionalmente os registros imobiliários, sob a supervisão da CNJ, que exerce a função de agente regulador. O ONR, entidade sem fins lucrativos, atua como operador técnico do sistema, responsável por sua padronização, interoperabilidade e segurança.
Esse marco legal e institucional já define um locus próprio para a regulamentação de transações imobiliárias digitais, de forma coordenada e sob o controle do Poder Judiciário, especialmente porque o registro de imóveis, embora delegado à iniciativa privada, é um serviço público, cuja regulação e supervisão pertencem ao CNJ, conforme o art. 236 da Constituição Federal.
A resolução COFECI 1.551/25, entretanto, pretendeu criar figuras jurídicas e institucionais que, na prática, configurariam um sistema paralelo de registro e negociação de direitos imobiliários, dissociado do SREI. Entre essas figuras, destacam-se: (i) o Token Imobiliário Digital, definido como representação digital de direitos reais sobre imóveis, passível de negociação em ambiente eletrônico; (ii) as PITDs – Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais, concebidas como infraestruturas de negociação e registro de tais tokens; e (iii) os ACGIs – Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária, entidades privadas incumbidas de custodiar os tokens, gerir garantias e intermediar a execução de obrigações decorrentes das transações.
Embora inspiradas em experiências internacionais e em boas práticas de mercado, tais figuras não encontram respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. O CC não admite a representação de direitos reais sobre imóveis por meio de documentos ou ativos digitais autônomos: sua constituição, transmissão e publicidade dependem, necessariamente, da inscrição no registro de imóveis, conforme os arts. 1.245 e 1.246 do CC e a lei 6.015/1973.
Ao propor formas alternativas de representação e transferência de propriedade imobiliária, ainda que em ambiente eletrônico, o COFECI teria, segundo o Juízo, usurpado competências privativas da União, para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos (art. 22, I e XXV, da Constituição), e do CNJ, responsável pela regulação e supervisão do SREI.
Além disso, ao prever regimes de custódia, garantias fiduciárias digitais e patrimônio de afetação desvinculado da titularidade real, a resolução acabou por instituir categorias jurídicas inéditas, sem amparo legal, o que gera insegurança quanto à validade dos atos e contratos celebrados sob tais regras.
Em síntese, a resolução extrapolou os limites de um ato infralegal disciplinar, próprio de um conselho profissional, e adentrou o campo da regulação de direitos patrimoniais e registrários, matéria reservada à lei formal e à atuação dos órgãos competentes do Poder Público.
A decisão liminar também determinou a vedação de divulgação da resolução como se vigente estivesse, impondo multa diária em caso de descumprimento dessa obrigação. Embora pouco usual, a medida revela a preocupação do Juízo com a disseminação de informações inverídicas, capazes de gerar insegurança jurídica nas operações imobiliárias digitais.
A proposta do COFECI, há que se reconhecer, é tecnicamente estruturada e responde a uma demanda legítima de mercado. Contudo, como destacou o Juízo, há vícios de competência formal e material, uma vez que o Conselho não detém atribuição para criar regimes jurídicos próprios ou inovar em matéria de registro público e direitos reais.
Mais do que um embate institucional, o caso reafirma a necessidade de coordenação entre os entes públicos e privados que compõem a governança do ambiente digital imobiliário. A tokenização de ativos imobiliários é um avanço inevitável e positivo, mas sua consolidação depende de harmonia normativa entre os agentes do sistema jurídico, especialmente o CNJ, o ONR, a CVM e o Banco Central do Brasil, este último responsável pela supervisão das prestadoras de serviços de ativos virtuais, nos termos da lei 14.478/22 (Marco Legal dos Criptoativos) e do decreto 11.563/23.
A liminar não representa um retrocesso na inovação, mas sim um chamado à institucionalidade. O futuro da digitalização imobiliária depende da construção de marcos regulatórios consistentes, que assegurem segurança jurídica, integridade registral e interoperabilidade tecnológica, permitindo que a inovação avance sobre fundamentos sólidos e legitimamente instituídos.
Fonte: Migalhas