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Terra – Enem 2021: Exclusão documental reflete desigualdade, diz autora de livro sobre tema da redação
Invisibilidade e registro civil foi proposta do exame federal neste ano; trecho de obra de professora e jornalista foi usado como texto de apoio
“Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” foi o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) realizado neste domingo, 21, por cerca de 2,3 mil milhões de estudantes. O tema foi considerado difícil pelos candidatos, por não ser um assunto visto frequentemente na mídia ou no cotidiano. Já professores avaliaram que a proposta era pertinente, ao tratar de problema social importante para o País.
Entre os textos de apoio que os alunos poderiam utilizar para o desenvolvimento do assunto, estava um trecho do livro Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento (Editora FGV, 2021), da jornalista e professora de Comunicação da Universidade Federal do Rio (UFRJ) Fernanda da Escóssia. A obra conta a história de brasileiros que não têm nenhum registro legal que comprove sua existência, e que lutam para reverter essa situação de completa exclusão e invisibilidade.
Não há dados atualizados sobre a parcela da população fora dos registros civis, mas a antiga Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contabilizava em 2015 cerca de 3 milhões de brasileiros sem documentos. Os obstáculos criados por essa lacuna ficam evidentes, por exemplo, na demanda por acesso ao auxílio emergencial na pandemia. A concessão da ajuda financeira pelo governo federal aos mais vulneráveis entre 2020 e este ano exigia a comprovação do registro civil.
Na entrevista abaixo, a autora comenta sobre o processo de criação e construção do livro, o perfil dos brasileiros invisíveis e quais os desafios para superar esse desafio.
De onde partiu a ideia para escrever o livro? Um caso em particular a motivou?
Meu interesse sobre o tema surgiu como repórter, e escrevi muitas reportagens sobre isso. No doutorado e no livro, decidi abordar o tema numa investigação etnográfica, reconstituindo as trajetórias das pessoas indocumentadas, analisando o papel que atribuem ao documento e como a ausência de documentação se relaciona a temas como identidade e cidadania.
Como foi o processo para encontrar os personagens da obra, uma vez que se tratam de pessoas que, legalmente, sequer existem?
Durante quase três anos, acompanhei o cotidiano de um serviço público e gratuito que funciona no centro do Rio de Janeiro, num ônibus especializado em emitir certidões de nascimento. O ônibus atende toda sexta-feira. Conheci inúmeras pessoas que nunca tiveram nenhum documento, e conto as histórias delas no livro.
Há um perfil comum entre as pessoas que não têm qualquer tipo de documento? Qual a principal causa para termos tantos brasileiros nessa situação?
Quem não tem certidão de nascimento (ou seja, não foi registrado) não pode ter nenhum outro documento. Essa exclusão documental reflete a desigualdade brasileira. As pessoas indocumentadas que conheci no ônibus eram, em geral, pobres ou muito pobres. Há muitas causas estruturais, como as incongruências da legislação e a dificuldade de comunicação entre os cartórios. Destaco ainda o fato de ser um problema que passa de uma geração a outra – se os pais não têm documentos, não podem registrar os filhos. Por fim, é preciso lembrar o racismo e o machismo estruturais. Conto no livro a história de uma jovem que não tinha documentos porque o pai só registrava os filhos homens. Ele dizia que mulher não precisa de registro.
Para além da privação da utilização de serviços básicos, quais as principais dificuldades às quais essa parcela da população está sujeita?
É muito mais do que a privação de serviços: é uma privação de direitos. O documento é um direito. Quem não tem certidão de nascimento não tem nenhum outro documento – RG, CPF, título de eleitor, carteira de trabalho…Não vota, não tem acesso a nenhum benefício social nem tem emprego formal. Não consegue ter acesso pleno aos sistemas de saúde e educação.
O que essas pessoas devem fazer para emitir seus próprios documentos? Como funciona o processo e quais as maiores dificuldades para alguém provar que existe?
Desde 2007 foi criado um programa nacional de redução do sub-registro. Muitos municípios têm comitês que atuam sobre o problema e podem encaminhar o indocumentado a um serviço capaz de emitir os documentos necessários. As Defensorias Públicas, os centros de atendimento social, o Ministério Público e a Justiça, além dos cartórios, são fundamentais nesse processo. A equipe do ônibus, por exemplo, realiza buscas em cartórios para saber se a pessoa não foi registrada anteriormente, convoca audiências com a presença de juízes, e nessas audiências são ouvidas testemunhas capazes de informar se a pessoa de fato é quem diz ser.
A questão foi tema da redação do Enem, que, por tradição, pede ao estudante uma “proposta de intervenção” para o problema. No Brasil atual, a resolução desse problema está relacionada a quê?
Desde 2007, o Brasil reduziu de modo notável o sub-registro de crianças, e o Bolsa Família foi fundamental, porque cobrava a documentação de todos os beneficiários. Também destaco o projeto que criou as chamadas unidades interligadas, cartórios dentro dos hospitais, para que a criança já saia registrada. Tudo isso tem de continuar, mas é preciso envolver de modo mais ativo as escolas e unidades de saúde. No caso dos adultos, é fundamental melhorar a troca de informações entre os cartórios.
Fonte: Terra