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Série “Um olhar sobre a adoção”
Esporte para transformar; doação voluntária e adoção tardia
O juiz Iberê Dias é titular da Vara da Infância e da Juventude Protetiva e Cível de Guarulhos, segundo maior município do estado de São Paulo, localizado a apenas 17 quilômetros da capital. Ao longo do tempo, desenvolveu uma paixão enorme pela prática da atividade física, ação que posteriormente ajudaria na inserção de crianças e adolescentes antes “invisíveis” aos olhos da sociedade. Esse é mais um combatente na luta pela mudança do quadro da adoção no Brasil.
Tudo começou em 2004, quando Iberê Dias ainda trabalhava como juiz substituto, em Campinas, no interior paulista. Na época, problemas de saúde provocados pelo excesso de trabalho o levaram direto para o consultório médico. O resultado foi preocupante: ou diminuía o ritmo e passava a praticar exercícios com regularidade ou estaria condenado a perder o próprio bem-estar. Após o susto, Iberê começou a literalmente “correr contra o tempo”.
Ele jogava futebol pelo menos duas vezes por semana, mas o sinal de alerta dado pelos médicos serviu como motor de arranque para uma mudança radical. Tomou tanto gosto pelas corridas, que a agenda ficou apertada demais para a “pelada com os amigos”. Iberê Dias ainda não sabia, mas esse esporte mudaria sua vida e a de muitas outras pessoas.
Foi quando teve a ideia de criar o projeto: “Sua que é sua”, que busca atender menores em situação de vulnerabilidade social.
“Quando estamos todos alinhados para a largada de uma corrida, somos milhares de pessoas das mais diversas origens, todos em absoluta igualdade, pelo menos naquele momento. Ninguém sabe quem é quem, qual a história da pessoa ao lado, se é rico, pobre, sonegador de impostos ou bom caráter. Estão apenas ali, juntos, vestidos de forma similar e terão todos que cumprir o mesmo trajeto, fazer o mesmo esforço. Ninguém olha torto para ninguém. Há apenas olhares de cumplicidade e respeito mútuo. E isso é raro na vida de crianças e adolescentes acolhidos”, afirma.
Todo esse contexto, levou o juiz Iberê Dias a sugerir que os acolhidos praticassem a atividade física como possibilidade de transformação social. A primeira experiência aconteceu em dezembro de 2013, durante uma prova disputada em Guarulhos. “Naquela oportunidade, 12 adolescentes participaram da corrida. Dois deles foram direto do baile funk e aparentavam ter feito o uso de entorpecentes. Mas tudo bem. Naquele momento, enquanto estavam comigo, ganhamos do tráfico e do uso das drogas”, relembra. Para superar o problema de falta de material para corrida, o juiz buscou a ajuda de grandes marcas esportivas que pudessem patrocinar o projeto. O resultado foi bastante favorável e, desde então, o “Sua que é sua” esteve presente em diversas corridas de rua no estado de São Paulo.
Além de utilizar o esporte como instrumento para a melhoria de vida de crianças e adolescentes abrigados, o juiz Iberê Dias é também um militante da Doação Voluntária. Para ele, é extremamente importante conscientizar as gestantes da possibilidade de entrega do filho para adoção. “Muitas delas não se sentem em condições de criar os filhos e acabam abandonando-os logo depois do nascimento, os deixando na rua, na porta de igrejas, ou no lixo. Mas não há nenhum problema em entregá-los para adoção na própria Vara da Infância. A mãe não cometerá crime, não será presa, como muitas temem. Poderá ser presa, ao contrário, se abandonar o filho na rua, deixando a criança em risco de morte”. O juiz faz questão de destacar ainda que a mãe não pode escolher alguém a quem entregar o filho. Ou seja, a criança será adotada pela próxima pessoa habilitada que esteja na fila de adotantes daquela Comarca.
Em relação à adoção tardia, Iberê Dias lamenta que ainda seja um tabu no Brasil. Segundo ele, os candidatos à adoção têm o sonho de exercerem as funções de pais e mães de crianças pequenas, recém-nascidas, de passarem por essa experiência, o que é absolutamente legítimo. Mas afirma que, quem opta por isso, tem que saber que vai esperar por anos na fila. Conforme o Cadastro Nacional da Adoção (CNA), em 29 de agosto haviam 1.686 crianças e adolescentes cadastrados para adoção em todo o estado de São Paulo, enquanto 9.747 pessoas estavam em condições de adotar.
“O problema é que muita gente revela um certo preconceito de adotar crianças mais velhas, já com seis anos ou mais. Acham coisas do tipo ‘a criança virá com uma série de vícios, não terei sido eu que terei educado desde cedo, ela não terá o desenvolvimento psicológico adequado à idade’. E, para combater esses pensamentos, em boa medida distorcidos, parece necessário fazer campanhas maciças de conscientização. Em Guarulhos, os resultados têm sido positivos. Temos vários casos de adoções tardias, inclusive de um senhor que já adotou sete adolescentes (e tinha mais quatro filhas já adultas, duas biológicas e duas que ele havia adotado há mais de vinte anos)”.
Atualmente, existem quatro abrigados disponíveis para adoção em Guarulhos, sendo três com 10 anos ou mais e uma criança de cinco anos de idade, que é deficiente. Por outro lado, 346 habilitados estão na fila para adotar. Para Iberê Dias, a conta não fecha pela resistência à adoção tardia. De acordo com ele, crianças disponíveis para adoção que constam desse número têm mais de seis anos, ou alguma deficiência. Porém, a maioria dos pretendentes querem crianças ainda em primeira infância. Com isso, as mais velhas acabam não sendo adotadas e ficam no abrigo até completarem 18 anos.
“A demora para adotar normalmente decorre das exigências dos adotantes. Querem crianças de até três ou cinco anos, se tanto. Fora que muitos também fazem restrições de cor de pele e de gênero (querem menina, por exemplo). E repito: não há nada de condenável em fazer tais restrições, mas devem arcar com as consequências, com a demora para adotar. A dificuldade para adoção de crianças pequenas demonstra evolução social. Quanto mais bem estruturada a sociedade e as famílias das classes mais baixas, menos crianças para adoção. Isso pode ser um ótimo sinal.
Praticamente não há crianças de menos de seis anos disponíveis para adoção, que fiquem acolhidas. O sistema funciona bem. As que permanecem nas casas de acolhimento são as crianças mais velhas, em cuja adoção raramente há interessados”, aponta.
Qual a parte difícil e qual o lado benéfico de ser um juiz que trabalha na área da adoção?
“A parte difícil é a pancadaria diária na boca do estômago que tomamos com as histórias que cercam crianças e adolescentes em situação de risco. São histórias lamentáveis, que revelam a enorme fragilidade estrutural das famílias de classes mais baixas. Que, claro, é consequência do absoluto descaso da classe política com essa população. A área de assistência social, ao menos no Estado de São Paulo, onde atuo, tem sido historicamente tratada com desinteresse. As políticas públicas da área de assistência social demoram a ser efetivamente implementadas, e, quando o são, costumam vir sem o planejamento necessário, feitas ‘para inglês ver’, porque não rendem voto, que é o que verdadeiramente move a classe política.
O lado positivo é a possibilidade de influir de modo mais palpável para transformar a sociedade. Uma decisão que obrigue o Poder Executivo a implementar políticas públicas que deveriam estar instituídas há anos, uma adoção tardia bem trabalhada, a parceria bem sucedida com projetos sociais da iniciativa privada, isso tudo é extremamente gratificante e recompensador”.
O Brasil tem hoje mais de 47* mil crianças e adolescentes esquecidos em abrigos. É uma situação cruel e dramática, que envergonha o País. A edição 31 da Revista IBDFAM, lançada em maio, tratou do tema adoção. Prestes a completar 20 anos de existência, o IBDFAM se junta à causa da adoção com a proposta de um anteprojeto de Lei do Estatuto da Adoção, ponto de partida para o Projeto “Crianças Invisíveis”, que será lançado no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, de 25 a 27 de outubro, em Belo Horizonte, do qual esta série, Um olhar sobre a adoção**, também faz parte.
*Números oficiais do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas: 47.201, em 29 de agosto de 2017 – Fonte: Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
**Consultoria: Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.
Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM