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Rota Jurídica – Artigo: Venda de imóveis por meio de cessão de direito hereditário – Por Amanda de Paula Chaves

29-07-2022

A cessão de direitos hereditários é o negócio jurídico por meio do qual o cedente (herdeiro) transfere ao cessionário, a título oneroso ou gratuito, parcial ou integralmente, a parte que lhe cabe na herança. Dessa forma, entende-se que o objeto da cessão de direitos hereditários é o conjunto de direitos e de obrigações adquiridos pelo herdeiro cedente.

A cessão feita antes de aberta a sucessão, ou seja, antes da morte do autor da herança é proibida, pois, conforme o artigo 426 do Código Civil, “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.

Os direitos hereditários têm natureza de bem imóvel (artigo 80, II do Código Civil[1]), por essa razão o artigo 1.793 do Código Civil[2] exige que a cessão de direitos hereditários seja feita, obrigatoriamente, por meio de escritura pública. Caso a cessão seja realizada por instrumento particular, o negócio jurídico será nulo, por defeito de forma (artigo 166, IV do Código Civil[3]).

Em virtude da universalidade indivisível do acervo hereditário, prevista no artigo 1.791, caput e parágrafo único do Código Civil[4], o herdeiro pode ceder apenas a sua quota parte nos direitos e obrigações que compõem a herança, tendo em vista que “tudo é de todo mundo” até a conclusão da partilha.

Nesse sentido, o artigo 1.793, § 2º do Código Civil prevê que “É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente”. Esse dispositivo legal parte do pressuposto de que a cessão de um bem determinado estaria condicionada a evento futuro e incerto, qual seja, a efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente por ocasião da partilha. Dessa forma, a cessão de um bem individualizado que esteja em inventário, em razão de sua ineficácia, é inoponível aos demais herdeiros.

Seria possível, então, realizar a venda de um imóvel, com razoável segurança jurídica, por meio de cessão de direitos hereditários?

Para que se possa chegar a essa resposta e visualizar as implicações possíveis, convém analisar um caso hipotético: João morre e deixa uma fazenda, um apartamento e um carro a serem partilhados entre seus três filhos, Ana, Helena e Tales, únicos herdeiros. Antes de ser realizada a partilha dos bens, Helena pretende vender sua parte da fazenda para Gabriel. Por isso, divide a área da fazenda por três e realiza a venda da área reservada a si por meio da cessão de direito hereditário, a fim de que Gabriel possa desenvolver de imediato a plantação de soja no local.

Uma primeira questão que deve ser observada nesse negócio realizado entre Helena e Gabriel é que, em atenção ao direito de preferência dos coerdeiros, previsto no artigo 1.794 do Código Civil[5], Helena deveria, obrigatoriamente, oferecer sua parte aos coerdeiros antes de oferecer a terceiros. Logo, o terceiro somente poderia adquirir o quinhão hereditário cedido se nenhum dos coerdeiros optassem por adquiri-lo nas mesmas condições oferecidas ao terceiro alheio à sucessão.

Ademais, segundo o artigo art. 1.793, § 3º do Código Civil[6], a cessão hereditária sobre um bem determinado exige a prévia autorização do Juízo da Sucessão, de sorte a resguardar os direitos patrimoniais dos coerdeiros, os quais deverão ser contemplados com a divisão igualitária dos quinhões hereditários.

Caso todos os herdeiros optassem pela cessão de direitos hereditários, poderiam acordar da melhor forma, e conforme sua conveniência, quem ficaria com o quê. Nesse caso, seria plenamente eficaz a cessão de bens individualizados, significando uma espécie de pré-partilha amigável formalizada por meio de escritura pública e homologada pelo Juízo da sucessão. A partir disso, o Juiz poderia determinar a expedição de formal de partilha em conformidade com a escritura de cessão.

Além da questão da preferência dos coerdeiros, a divisão da fazenda em três partes que foi realizada por Helena também dependeria da anuência de todos os herdeiros. Afinal, caso haja discordância, Gabriel corre o risco de receber apenas o quinhão hereditário de Helena, que não necessariamente pode coincidir com a parte da fazenda que lhe foi prometida por Helena. Além disso, Gabriel teria acesso ao patrimônio somente ao final do inventário, após a partilha dos bens.

A necessidade de anuência dos coerdeiros se subsidia no fato de que a fazenda pode apresentar valores mercadológicos diferentes em cada um de seus hectares, considerando, por exemplo, a produtividade da área, acesso a água, qualidade de solo, entre outros fatores. Nem sempre a fazenda pode ser dividida sem que, com isso, perca valor com relação às demais áreas. Além disso, os fatores tratados anteriormente podem influenciar consideravelmente o valor de cada uma das áreas, o que, por consequência, também valorizaria o quinhão do respectivo herdeiro, colocando-o em desigualdade face aos demais.

Outro ponto a se considerar: se Helena for casada em regime de comunhão de bens (parcial ou total), além da anuência dos coerdeiros será indispensável a concordância do seu cônjuge, tendo em vista que a herança, por ter natureza de bem imóvel, exige a autorização do cônjuge para que possa ser alienada, conforme dispõe o artigo 1.647, inciso I do Código Civil[7].

Por fim, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a penhora de imóvel adquirido por meio de cessão de direitos hereditários em razão de dívida do falecido, sob o argumento de que somente com a “ultimação do inventário, após o pagamento das dívidas deixadas pelo falecido, é que o cessionário poderá reivindicar eventual crédito que venha a sobejar. Isso porque, antes do pagamento das obrigações por aquele assumidas, a herança consiste um todo unitário, e os direitos dos coerdeiros ainda são indivisíveis” (AgInt no REsp n. 1.830.578/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/8/2020).

Ou seja: enquanto não pagas as dívidas do espólio, ficam os bens do espólio sujeitos ao pagamento delas. A depender do que constar da cessão de direitos hereditários, o cedente não se responsabilizará por eventuais prejuízos assumidos pelo cessionário, como, por exemplo, o surgimento de dívidas após a cessão.

Uma vez dito tudo isso, percebe-se que a compra de imóvel por intermédio de cessão de direitos hereditários é um negócio jurídico que exige a orientação de um profissional especialista na área, um bom contrato e uma ampla pesquisa a respeito da situação do inventário e do imóvel, a fim de que o cessionário conheça a exata magnitude da herança e da correlata contraprestação pela qual está pagando, evitando-se surpresas futuras.

Notas:

[1] Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: […] II – o direito à sucessão aberta.

[2] Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.

[3] Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: […] IV – não revestir a forma prescrita em lei.

[4] Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

[5] Art. 1.794. O co-herdeiro não poderá ceder a sua quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto.

[6] Art. 1.793. […] § 3 o Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.

[7] Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis.

*Amanda de Paula Chaves é advogada associada ao Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi Advogados – GMPR.

Fonte: Rota Jurídica