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Retrospectiva STJ 2025: Bem de família, gênero neutro e herança digital entre os destaques no direito privado

15-12-2025

No campo do direito privado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou, ao longo de 2025, uma grande variedade de temas sensíveis, como o direito ao gênero neutro no registro civil, os limites da chamada “herança digital” e a dispensa de cobertura, pelos planos de saúde, para o uso domiciliar do canabidiol.

Outras decisões de muita repercussão envolveram adoção póstuma, transporte de animais em aeronaves e até a suspensão de um jogador profissional de Free Fire, o que ilustra a amplitude e a atualidade da pauta de julgamentos da corte. Dos sete temas julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos, evidenciam-se as teses sobre impenhorabilidade do bem de família fixadas pela Segunda Seção.

 

Multa para pais que não vacinam os filhos e reconhecimento de adoção póstuma

Nos julgamentos envolvendo família, destacaram-se o princípio do melhor interesse do menor e os vínculos socioafetivos entre pais e filhos. Em março, a Terceira Turma estabeleceu que estão sujeitos a multa de três a 20 salários mínimos os pais que não vacinarem seus filhos contra a Covid-19. A relatora, ministra Nancy Andrighi, lembrou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura de forma ampla o direito à saúde e estipula que a vacinação é obrigatória sempre que houver recomendação das autoridades sanitárias.

Nesse contexto, a ministra entendeu configurada a negligência de pais que se recusaram a vacinar a filha, e constatou, ainda, o abuso do poder familiar, uma vez que tal conduta viola o princípio da paternidade responsável e contraria o melhor interesse da criança.

Em agosto, ao validar a adoção de criança em favor de um casal, o colegiado decidiu que é possível o reconhecimento incidental de união estável na ação de adoção. A pretensão dos adotantes (um dos quais morreu quando o processo estava em curso) foi questionada porque não teria sido comprovada a união estável do casal e também por ter havido burla ao Cadastro Nacional de Adoção.

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva afirmou que, embora a ação de reconhecimento da união estável ainda estivesse pendente de julgamento, esse reconhecimento seria possível de forma incidental, apenas para fins da ação de adoção. O relator disse ainda que, apesar do desrespeito ao cadastro, a retirada da criança após mais de 13 anos de convivência com aquela família lhe causaria enorme prejuízo.

“A ofensa ao procedimento ordinário de adoção representa violação de menor significância quando considerado o princípio do melhor interesse da criança”, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

 

Retificação de registro após DNA negativo depende da inexistência de vínculo socioafetivo

Em outro julgado importante sobre família, a Terceira Turma levou em consideração as relações socioafetivas para negar o pedido de um homem que, após realizar exame de DNA e descobrir que não era o pai biológico de um adolescente, solicitou a retirada de seu nome do registro civil do filho. O colegiado concluiu que, apesar da ocorrência de vício de consentimento – pois o homem registrou a paternidade por acreditar haver vínculo biológico com a criança –, a retificação era inviável diante da prova do vínculo afetivo entre as partes.

“A divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o registro”, destacou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

 

Renúncia a bens da herança e herança digital entraram na pauta

Em maio, a Terceira Turma  decidiu que, dado o seu caráter indivisível e irrevogável, a renúncia à herança também abarca bens descobertos posteriormente. Para o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o renunciante perde os seus direitos hereditários de forma retroativa e definitiva, abrindo mão da totalidade dos bens já transferidos: “Perfeita a renúncia, é como se nunca tivesse sido herdeiro, não sendo, pois, beneficiário do direito sucessório”.

No mês de setembro, o colegiado entendeu que o acesso à herança digital protegida por senha exige incidente processual próprio, que respeite os direitos de personalidade do autor da herança. O caso chegou ao STJ depois que uma inventariante tentou acessar, por meio de ofício à Apple, o conteúdo de aparelhos eletrônicos deixados pelo falecido.

A ministra Nancy Andrighi ressaltou que o direito sucessório deve garantir que a impossibilidade de acesso aos bens digitais, devido à falta de senhas compartilhadas com os herdeiros, não prejudique a transmissão do patrimônio. No entanto, ela observou que nem todos os bens digitais são transmissíveis; aqueles que possam violar direitos de personalidade, como a intimidade e a vida privada do falecido ou de terceiros, devem ser preservados.

 

Novas teses sobre a impenhorabilidade do bem de família

Novos entendimentos sobre a proteção legal do bem de família também marcaram o primeiro semestre do tribunal. A Quarta Turma adotou a tese de que o único imóvel residencial do espólio, ocupado por herdeiros do falecido, continua protegido como bem de família e, por isso, não pode ser penhorado para garantir dívida deixada pelo autor da herança. Para o colegiado, a transmissão hereditária, por si só, não tem o efeito de afastar a natureza do bem de família, se mantidas as características de imóvel residencial próprio da entidade familiar.

De acordo com o ministro Antonio Carlos Ferreira, relator do recurso, os herdeiros respondem pelas dívidas do falecido dentro dos limites de suas partes na herança, mas isso não afasta a proteção do bem de família.

“Se os herdeiros se sub-rogam na posição jurídica do falecido, naturalmente também recebem as proteções legais que amparavam o autor da herança, entre elas a impenhorabilidade do bem de família”, Ministro Antonio Carlos Ferreira.

A temática também esteve presente na pauta da Segunda Seção, que, sob o rito dos recursos repetitivos, fixou duas novas teses ao julgar o Tema 1.261. Na primeira, ficou definido que a exceção à impenhorabilidade do bem de família, nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade família, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar.

A segunda tese estabeleceu que, em relação ao ônus da prova: a) se o bem foi dado em garantia real por um dos sócios da pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus de comprovar que o débito da sociedade se reverteu em benefício da família; e b) caso os únicos sócios da pessoa jurídica sejam os titulares do imóvel hipotecado, a regra é a penhorabilidade do bem de família, competindo aos proprietários demonstrar que o débito da sociedade não se reverteu em benefício da família.

De acordo com o ministro Antonio Carlos Ferreira, o devedor que tenta excluir o bem da execução da dívida, após dá-lo como garantia, apresenta comportamento contraditório incompatível com o princípio da boa-fé. “Admitir que a defesa seja oposta em toda e qualquer situação implicaria o esvaziamento da própria garantia que constituiu o fundamento que conferia segurança jurídica e suporte econômico à contratação posterior”, esclareceu o relator.

 

Vendedor de imóvel pode responder por obrigações posteriores à posse do comprador

Ainda no âmbito da Segunda Seção, em abril, o STJ confirmou a legitimidade passiva concorrente entre vendedor e comprador em ações de cobrança de taxas de condomínio referentes ao período posterior à imissão na posse do imóvel pelo comprador, quando o contrato de compra e venda não foi registrado em cartório. Com esse entendimento, o colegiado adotou no Tema 886 teses compatíveis com o caráter propter rem da dívida condominial.

A ministra Isabel Gallotti, relatora, observou que o condomínio – credor de obrigação propter rem – não pode ficar sujeito à livre estipulação contratual de terceiros: “A obrigação propter rem nasce com a titularidade do direito real, não sendo passível de extinção por ato de vontade das partes eventualmente contratantes, pois a fonte da obrigação é o próprio direito real sobre a coisa”.

 

Direito real de habitação pode ser estendido em favor de filho incapaz

Considerando que a proteção das vulnerabilidade é uma premissa do direito privado atual, a Terceira Turma decidiu, em outubro, que o direito real de habitação, assegurado por lei ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, pode ser estendido a filho incapaz.

“Deve-se permitir a ampliação do direito real de habitação em benefício do herdeiro com vulnerabilidade, a fim de garantir-lhe o direito social à moradia, privilegiando-se sua proteção e dignidade”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi, para quem, em caso de eventual conflito entre o direito de propriedade dos herdeiros capazes e o direito de moradia do herdeiro incapaz, deve prevalecer o segundo.

 

Garantido o direito ao gênero neutro no registro civil

Em outro julgamento de bastante repercussão, a Terceira Turma confirmou, em maio, o compromisso do tribunal com a diversidade ao considerar que é possível retificar o registro civil para fazer constar o gênero neutro. Naquela oportunidade, o colegiado entendeu que o direito à autodeterminação de gênero e à identidade sexual está intimamente relacionado ao livre desenvolvimento da personalidade.

A ministra Nancy Andrighi destacou que, apesar de não existir legislação específica sobre o tema, não há razão jurídica para a distinção entre pessoas transgênero binárias – que já possuem o direito à alteração do registro civil, de masculino para feminino ou vice-versa – e não binárias, devendo prevalecer no registro a identidade autopercebida pelo indivíduo.

“Seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade binária e não binária, uma vez que em ambas as experiências há dissonância com o gênero que foi atribuído no nascimento, devendo prevalecer a identidade autopercebida, como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana”, refletiu a ministra.

“Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei”, Ministra Nancy Andrighi.

 

 

Fonte: STJ