Notícias
Pedido do TJMA gera parecer favorável à inclusão de sobrenomes por raça, etnia e religiosidade
Em pedido do Comitê de Diversidade do TJMA ao CNJ, parecer do MPF defende que afrodescendentes podem incluir em certidões sobrenomes que remetam à raça, etnia ou religiosidade
Entendimento da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), defende que pessoas afrodescendentes podem pedir aos cartórios a alteração de certidões de nascimento e casamento para incluir sobrenomes que remetam à raça, etnia, religiosidade ou ancestralidade africanas, inclusive com a supressão do nome de família originalmente atribuído. O posicionamento consta no despacho assinado pelo Grupo de Trabalho “Liberdades: Consciência, Crença e Expressão”, enviado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em requerimento apresentado pelo Comitê de Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (TJMA), quanto à edição de ato normativo visando a averbação, nos assentos de nascimento de pessoas afrodescendentes, a pedido da pessoa interessada, de sua raça, etnia e ou religiosidade no sobrenome.
Para o GT, a alteração do sobrenome de pessoas afrodescendentes atende ao princípio da dignidade do ser humano e garante o direito à personalidade, “diante do notório apagamento da cultura e ancestralidade africana pelo processo da escravização no Brasil”.
A análise pela PFDC foi solicitada pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, que analisa o pedido do Comitê de Diversidade do TJMA.
No documento que originou o entendimento do Ministério Público Federal (MPF), enviado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Coordenação do Comitê de Diversidade do TJMA esclarece que a solicitação foi apresentada a partir da escuta e diálogo com o orientador educacional Adomair da Silva, que pretende mudar o nome para Adomair Oluwafemi Ogunbiyi, com origem na cultura do Povo Yoruba, da Nigéria, podendo, assim, retirar dos seus documentos o nome de família “da Silva”.
O coordenador do Comitê de Diversidade do TJMA, juiz Marco Adriano Ramos Fonsêca, ressalta o alcance social da iniciativa, em uma sociedade permeada por diversos tipos de preconceitos, destacando que o Maranhão é o segundo estado com a maior população negra do país, proporcionalmente 76% dos habitantes, sendo a segunda maior população quilombola.
“Esta proposição tem o potencial de promover o acesso à justiça na perspectiva de promoção do direito à identidade e do direito à reivindicação da ancestralidade, enquanto direito da personalidade e integrador do mínimo existencial, e efetivamente concretiza um aprimoramento da prestação jurisdicional e uma ação histórica alinhada ao Pacto Nacional pela Equidade Racial no Poder Judiciário Brasileiro”, avalia o magistrado.
O combate ao racismo é um dos eixos de atuação da Política de Diversidade do Judiciário maranhense, também promovida por meio de eventos temáticos. No III Seminário Diversidade e Antidiscriminação, realizado em novembro de 2023 pelo Comitê de Diversidade, o “Direito à Identidade e Ancestralidade Africana” foi abordado pelo pedagogo Adomair da Silva com a mediação da coordenadora adjunta do Comitê de Diversidade, juíza Elaile Carvalho.
Adomair (foto abaixo, com a juíza Elaile Silva) observa que o Comitê de Diversidade do TJMA acolheu uma reivindicação iniciada em 1984, em São Paulo, a partir de uma consulta jurídica realizada à época. Mesmo que o entendimento do MPF ainda seja uma primeira vitória referente à sua proposição, com caminhos a percorrer, ele entende ser um grande passo na reparação histórica a milhões de afrodescendentes. “Somos gratos pelo empenho do juiz Marco Adriano e da juíza Elaile Carvalho pela sensibilidade e acolhida do caso com o diálogo que iniciou em 2022”, reforçou.
Elaile Carvalho destaca a importância do processo de escuta do Comitê e do relato do educador Adomair da Silva, que já havia ajuizado uma ação com a solicitação da alteração de seu sobrenome, tendo sido o pedido negado por impossibilidade legal. “Ao ouvir o caso, para garantir a identidade cultural e resgatar o apagamento histórico do povo africano devido à escravização, o Comitê de Diversidade resolveu provocar o CNJ sobre o assunto”, afirmou a juíza.
AMPARO LEGAL
O que diz a lei – No despacho, o GT analisa dispositivos da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73). O artigo 55 da norma permite o acréscimo de sobrenome de ascendentes, além dos genitores, a pedido do interessado, o que demonstra a preocupação da lei em honrar a ancestralidade das pessoas. É possível, por exemplo, incluir sobrenomes de avós, bisavós, tataravós mediante a apresentação da documentação necessária.
Já o artigo 56 garante a possibilidade de alteração do prenome, inclusive de forma “imotivada” e extrajudicialmente, depois que a pessoa atinge a maioridade civil, aos 18 anos. Para dar segurança jurídica ao processo, a lei determina que fiquem resguardados os registros necessários quanto ao nome anterior e números de documentos de identificação. Em caso de suspeita de fraude, falsidade ou má-fé, o oficial de registro civil pode recusar a alteração do nome.
No artigo 57, a Lei de Registros Públicos traz a possibilidade de alteração de sobrenomes diretamente perante o oficial de registro civil, com a apresentação das certidões necessárias. O artigo prevê a possibilidade de inclusão de sobrenomes familiares, exclusão de sobrenome de cônjuge, inclusão ou exclusão de sobrenomes em função da alteração das relações de filiação. Até mesmo enteados podem pedir a inclusão do nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta nos registros de nascimento e casamento, se houver concordância de todas as partes e motivo justificável.
Para o GT, a lei reflete a importância do prenome e do sobrenome para individualização da pessoa e identificação de suas origens, valorização de seus ancestrais e de sua cultura. “O nome pode afetar a autoestima do indivíduo, bem como criar-lhe problemas psicológicos e de identificação, sendo justo o direito de ser modificado a pedido”, defende o documento. A norma traduz também a preocupação com a preservação dos sobrenomes que identifiquem a família do indivíduo.
CONEXÃO ANCESTRAL
No caso dos afrodescendentes, o GT lembra que, por causa do regime de escravização, eles tiveram suas origens, seus nomes e sua história apagados, inclusive por atuação estatal, o que gerou a ruptura dessas pessoas com seus sobrenomes de família africanos. Portaria editada pelo Ministério da Fazenda em 1890, logo após a chamada “abolição da escravatura”, determinou a destruição dos registros existentes relativos às pessoas escravizadas. Ao mesmo tempo, os afrodescendentes receberam os sobrenomes daqueles que se diziam seus “proprietários”, um legado do processo de escravização que permanece até os dias de hoje.
Sendo assim, o GT argumenta que é compreensível que essas pessoas não se identifiquem com o sobrenome que carregam. Ao mesmo tempo, “nesse contexto, é manifesta a dificuldade que os afrodescendentes teriam para comprovar documentalmente seus sobrenomes ancestrais de família, nos termos do artigo 55 da Lei, tendo em vista que seus ancestrais foram escravizados centenas de anos atrás, o que representa dificuldades invencíveis não apenas para conhecer esses sobrenomes, mas também para obter a documentação referente”, explica o documento.
Para o grupo de trabalho, o ato normativo a ser editado pelo CNJ deve prever a possibilidade de que, na falta de documentação que comprove o sobrenome ancestral (o que vai ser a regra na grande maioria dos casos), os cartórios usem elementos referentes à raça, à etnia ou à religiosidade no novo sobrenome, conforme requerimento da parte interessada. Isso porque “o resgate e aprofundamento da conexão ancestral dos afrodescendentes sabidamente se dá, em grande parte, por meio das religiões advindas da cultura africana, com seus mitos, rituais, danças e músicas”. O despacho cita uma série de julgados em que o Poder Judiciário reconhece que a imutabilidade do nome não é absoluta e que autorizam a inclusão de sobrenomes para honrar a ancestralidade dos requerentes.
EXCLUSÃO DE SOBRENOME
No caso da retirada em definitivo do sobrenome original, situação que poderia representar dificuldade, uma vez que a jurisprudência não é pacífica, o GT explica que bastaria manter os registros e averbações nos assentamentos de nascimento, como já acontece nos casos expressamente previstos em lei, preservando inclusive a numeração original dos documentos. Isso manteria a constância das informações públicas de identificação civil e fiscal, permitindo a consulta sempre que preciso, sem a necessidade de que o nome de família original conste dos novos documentos expedidos.
“Parece um imperativo constitucional decorrente do enfrentamento ao racismo, do repúdio à escravização, de garantia da dignidade humana, e dos direitos de personalidade, garantir a possibilidade de, por uma vez, permitir a alteração do sobrenome de pessoas negras e seus descendentes, com inclusão, bem como de exclusão de sobrenomes, de forma a ajustar essa identificação personalíssima à ancestralidade e cultura do requerente”, conclui o documento.
O GT defende que, caso o ato normativo a ser editado pelo CNJ não preveja a exclusão do sobrenome original dos documentos, o assunto seja levado ao Congresso Nacional e à Presidência da República, para análise e eventual adoção de norma legal a permitir a supressão do nome de família inicialmente atribuído.
Fonte: TJMA