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Parecer – Criação e extinção de serventias extrajudiciais mediante ato administrativo do Tribunal de Justiça

03-05-2016

Parecer – Criação e extinção de serventias extrajudiciais mediante ato administrativo do Tribunal de Justiça

 

 

Por Clèmerson Merlin Clève, Professor em Direito Constitucional Titular da UFPR e da UniBrasil – Professor de Mestrado e Doutorado

 

Consulente: Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR

 

 

 

Assunto: Criação e extinção de serventias extrajudiciais mediante ato administrativo do Tribunal de Justiça.

 

 

 

 

Ementa: A criação, extinção e modificação de ofícios extrajudiciais, bem como criação de novos ofícios a partir de modificação de critérios de divisão territoriais, devem observar o princípio da reserva legal. Delegação e extinção de delegação de serviços notariais e de registros: competência, em princípio, do Poder Executivo. Negativa de liminar em ação direta de inconstitucionalidade não vincula análise de nova ADIn que possua causa de pedir diversa. A negativa de liminar não pode importar em presunção de legitimidade de norma jurídica já revogada.

 

I. Contextualização.

 

                                01. O Tribunal de Justiça  do Estado do Rio de Janeiro – TJ/RJ, através de ato emanado do seu Órgão Especial, editou, em 16 de Setembro de 2004, a Resolução n.º 12/04.

 

                                02. De acordo com os seus artigos, foram criadas, no Município do Rio de Janeiro, sob fundamento da comodidade, eficiência e menor onerosidade, 18 (dezoito) serventias extrajudiciais de registro de imóveis (art. 1º), passando a cidade a totalizar 29 (vinte e nove) ofícios, o que importou em substancial modificação das delegações até então existentes.

 

                                03. Com efeito, a partir da referida Resolução nota-se, pelo teor do art. 2º, que o território do Município do Rio de Janeiro, para fins de prestação dos serviços de registro de imóveis, ficou dividido em 29 (vinte e nove) circunscrições, definidas pelo critério geográfico de bairros, em substituição ao critério anterior, que se fundava na demarcação das antigas freguesias.

 

                                04. Por tal razão, determinou-se que os ofícios deverão se instalar nas sedes das novas circunscrições (art. 3º) e fixou-se prazo de 30 (trinta) dias para que os atuais Titulares de Registro de Imóveis optem por alguma circunscrição correspondente a um dos bairros abrangidos pela atual serventia (art. 4º,caput e § 1º). Caso haja conflito de interesses na opção, a resolução determina que o desempate se dará mediante observância do critério da antigüidade (art. 4º, § 3º), sendo que, ainda, a Corregedoria-Geral da Justiça deverá indicar os atuais titulares que, até o provimento de todas as circunscrições criadas, responderão pelas serventias que restarem vagas após o exercício das opções (art. 5º).

 

                                05. Com isso, em suma, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mediante simples ato administrativo, criou e extinguiu (determinando outras conseqüências daí derivadas) serventias extrajudiciais submetidas ao regime da Lei Federal n.º 8.935/94 e da Lei nº 6.015/73.

 

                                06. Referida medida, assinale-se, com peculiaridades diversas, havia sido adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, também por ato administrativo consubstanciado no Provimento n.º 747/2000, além de disciplinar questões vinculadas a acumulação e desacumulação de serventias, determinou a criação e extinção de novos ofícios de registro civil. Nada obstante, através do Provimento n.º 750/01, revogou-se o Provimento antes citado na parte em que disciplinava a extinção e criação de novas unidades e delegações.

 

                                07. Ainda assim, a Associação dos Notários e Registrados do Brasil – ANOREG/BR, entidade de classe de âmbito nacional, aforou a ADIn n.º 2415-9 contra os Provimentos do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

                           nbsp;     08. O Supremo Tribunal Federal, neste caso, por maioria de votos, denegou o pedido de liminar formulado sendo que, destarte, agora o feito aguarda o julgamento de mérito

 

 

II. A Consulta.

 

                                01. Perante o quadro descrito, e considerando, portanto, a iminência da realização dos efeitos da Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, consulta-nos, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR, mediante quesitos, o seguinte:

 

Primeiro: Diante da ordem constitucional brasileira pode-se considerar legítima a criação, extinção e modificação de ofícios extrajudiciais mediante ato administrativo emanado do Tribunal de Justiça? Ou a medida estaria submetida às exigência da reserva de lei?

Segundo: A qual autoridade compete a delegação das funções notariais e de registro?

Terceiro: A decisão denegatória de liminar na ADIn n.º 2415-9 pode servir de parâmetro para o julgamento de eventual ação direta de inconstitucionalidade proposta contra o ato do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro?

Quarto: A Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça fluminense, uma vez que outorga as novas delegações sob critério de bairros, e não freguesias, fere direitos adquiridos dos atuais delegatários? A medida (mudança do critério) poderia ser realizada por ato administrativo?

Quinto: A lei, a que se refere o art. 236, § 1º, da Constituição Federal, é exaustiva? Pode existir outra lei disciplinando outros conteúdos ali não abordados?

 

                                02. Essas são as questões que, de forma global, passam a ser enfrentadas.

 

 

III. Premissas.

 

                                01. A Constituição Federal de 1988, em grande parte, inovou, em relação ao sistema constitucional anterior, o regime jurídico aplicável aos titulares de serviços do foro extrajudicial, nomeadamente os notários e os oficiais de registro. Com efeito, estabelece a Lei fundamental, no art. 236, que:

 

“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

 

§ 1º.Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

 

§ 2º.Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

 

§ 3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”.

 

                               02. A Lei Federal n.º 8.935/94, como se sabe, regulamentou, embora não de forma exaustiva, o art. 236, da Constituição Federal. Em face disso, o disposto em legislação estadual a respeito dos serviços notariais e de registro, na medida em que colidir com a lei federal, em princípio, estará revogado ou, tratando-se de normas posteriores à promulgação da Carta Magna, será inconstitucional.

 

                               03. No quadro dos sistemas constitucional e infraconstitucional brasileiros as serventias judiciais e extrajudiciais desempenham importante papel para o bom andamento dos atos jurídicos processuais e para a segurança e controle dos atos negociais (José Maria de Almeida César e Irineu Antonio Pedrotti.Serviços notariais e de registro. São Paulo: Leud, 1996, p. 17 e seguintes). Substanciam verdadeiro mecanismo para conferir maior transparência, estabilidade e confiança a diversos aspectos e situações da vida jurídica dos cidadãos (Paulo Roberto de Carvalho Rêgo.O registro de títulos e documentos: um instrumento jurídico para segurança da sociedade. In: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3382, acesso em 23.09.2004, p. 2).

 

                               04. A Constituição Federal, tratando desses ofícios, como se anunciou, em seu art. 236, cuidou de dispor que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.

 

                               05. Afirmar que as atividades notariais e registrais são exercidas em caráter privado implica reconhecer, no mínimo, que nada obstante serem reguladas e fiscalizadas pelo Poder Público, (i)os titulares desses serviços não serão remunerados pelos cofres públicos, (ii)submetem-se, a partir da edição da lei, e preservadas as situações pretéritas, ao regime geral da previdência e que, (iii)por se tratarem de particulares, não ocupam cargos mas, sim, desempenham funções públicas, podendo eventualmente ser enquadrados na categoria geral de agentes públicos porém, jamais, na categoria de servidores ou funcionários públicos (Rosana Millen Zappa.O regime jurídico dos notários e registradores. Dissertação de mestrado aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, 2000, p. 44-50, inédito).

 

                               06. Em sendo assim, insta indagar qual o limite competencial do Poder Público, federal e estadual, em relação a tais serviços.

 

                               07. Sabe-se que a Constituição de 1988 adota, como princípio fundamental da República, a forma federativa de Estado (art. 1º,caput). A federação, como princípio estruturante que é, encontra-se inclusive protegida no rol das cláusulas pétreas, especificamente através do art. 60, § 4°, I, da Lei Fundamental. Isto implica dizer que, no Brasil, tem-se a convivência de diversas ordens políticas que, em campos próprios, atuam com relativa autonomia de governo, legislação, administração, finanças e tributosetecetera. A repartição constitucional rígida de competências é dado inafastável nas federações (Fernanda Dias Menezes de Almeida,Competências na constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 32). De modo que, sem a existência de um modelo específico e rígido de repartição de competências territoriais, não se poderá cogitar de Estado Federal.

 

                               08. Por esta razão é que uma das notas características da federação é a existência de diversos ordenamentos jurídicos vigentes, concomitante, sobre um mesmo território (José Afonso da Silva.Curso de direito constitucional positivo, 19ª ed., São Paulo : Malheiros, 2001, p. 479). E, nesta, é Hans Kelsen quem assevera que em toda federação haverá, pelo menos, a verificação de existência de três ordens jurídicas: uma nacional, uma federal e outras locais (Hans Kelsen.Teoria pura do Direito, 2ª ed., Coimbra: Martins Fontes, 1987, p. 328 e ss.). A primeira, reporta-se à ordem jurídica geral e as outras, a ordens jurídicas parciais.

 

                               09. Destarte, caberá à União produzir duas espécies de normatividades: uma de ordem parcial (mediante leis federais), que diz respeito apenas a seus interesses de pessoa jurídica de direito público interno; e outra de ordem geral (mediante leis nacionais), que diz respeito aos interesses de toda coletividade e de todos os entes federados.

 

                               10. Por certo, é a Constituição Nacional (federal) quem deverá definir o campo de atuação normativa de cada ente da federação, reservando um sítio de matérias nacionais, definidas no Texto Fundamental, que não poderá ser vulnerado pelas ordens parciais: trata-se das chamadas “normas centrais”.

 

                               11. Logo, vê-se que a Constituição Federal, ao mesmo tempo que garante autonomia aos entes federados, reserva um núcleo de matérias, de interesse comum ou geral, que somente poderá ser disciplinada pela União mediante normas centrais vinculantes de todas as esferas integrantes da federação (Raul Machado Horta.Estudos de direito constitucional, Belo Horizonte : Del Rey, 1995, p. 71).

 

                               12. A Constituição Federal de 1988, nesta linha, adota sistema de repartição de competências inspirado, simultaneamente, nos modelos alemão e americano. Todavia:

 

“O sistema de partilha de competências [no Brasil], como um todo, mais se aproxima do sistema alemão, com a previsão das competências legislativas e não legislativas da União em artigos distintos; com a separação, também, das competências comuns legislativas e não legislativas; com a previsão de delegação de competências legislativas da União aos Estados por lei federal; com a repartição vertical da competência legislativa concorrente cabendo as normas gerais à União e a legislação suplementar aos Estados” (Fernanda Dias Menezes de Almeida.Op. cit., p. 81).

 

                               13. Na técnica de repartição praticada no Brasil ainda se nota que a chamada competênciaresidual, exceto quanto aos impostos, cabe ao Estados. É o que se extrai do teor do art. 25, § 1°, da Carta Magna, quando preceitua que “são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição“.

 

                               14. No que tange com o tema em estudo, sobre tratar-se de serviços cuja titularidade material é, quantitativamente, em regra dos Estados-Membros, sendo que a União contracena apenas nos serviços notariais e registrais de Territórios e Distrito Federal, parece certo que, na seara legislativa, ocorre o inverso, observando-se nítida concentração de competências no sítio federal.

 

                               15. Com efeito, é de se notar que, de acordo com teor do art. 22, XXV, compete à União legislar, privativamente, sobre registros públicos. Em relação à natureza dos serviços, o art. 236,caput, já citado, da Lei Fundamental, afirma que as atividades registrais, assim como as notariais, serão exercidas por particulares mediantedelegação do Poder Público (regulamentação geral encontra-se, como também se afirmou, na Lei Federal n.º 8.935/94).

 

                               16. Quanto ao § 1º, do art. 236, tem-se que “lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário“. Encontra-se aqui, como se sabe, matéria reservada ao campo de atuação legislativa privativa da União Federal. Ao Estados-Membros, nesta seara, cabe, de um modo geral, tratar do exercício de fiscalização através do Poder Judiciário local.

 

                               17. Em relação ao § 2º, do art. 236, o constituinte nacional foi inequívoco ao dispor que “lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro” (competência esta plasmada no teor da Lei Federal n.º 10.169/2000). Logo, neste particular, tem-se competência concorrente em que a União Federal disciplina normas gerais e os Estado atuam em sede complementar ou sup
letiva.

 

                               18. Finalmente, no que tange com o § 3º, do art. 236 (“o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”), tem-se aí conteúdo cujo trabalho legislativo compete à União quanto aos serviços de Distrito Federal e Territórios e aos Estados-membros, observadas as regras definidas pela Lei Maior e pela Lei Federal n.º 8.935/94.

 

                               19. Esta distribuição competencial, nada obstante a concentração de disciplina no campo federal, não afasta, portanto, a atuação material e legislativa dos entes federados. Até porque, como se afirmou, a prestação material desses serviços concentra-se, em maior parte, no sítio estadual e, ainda, legislativamente, podem os Estados-membros dispor, como se disse, sobre parte da matéria no que for atinente com (i) organização e divisão judiciárias (art. 125, § 1º), (ii) implementação de meios de fiscalização pelo Poder Judiciário (art. 236, § 1º, segunda parte) e (iii) fixação de emolumentos, aqui de forma complementar ou supletiva.

 

                               20. Destarte, nota-se que, observadas as regras gerais definidas pela União Federal, a intervenção legislativa do Estado-membro, quanto às atividades notariais e registrais, é revestida, em princípio, de singela significação. Haverá de observar, sempre, a definição de conteúdo e de regime da Lei n.º 8.935/94, da Lei de Registros Públicos, das normas de previdência e das regras gerais envolvendo emolumentos e custas etc., verdadeiras normas centrais em relação às questões sob estudo.

 

 

IV. Regulamentação da atividade delegada notarial e de registro: o tratamento fixado pela Constituição e pela União Federal.

 

                                01. Estabelecidas tais premissas, cumpre investigar, em primeiro lugar, a natureza da delegação e o regime jurídico, constitucional e legal, ao qual se submetem os serviços notariais e de registro.

 

                                02. Conforme já se referiu, o art. 236,caput, da Constituição Federal de 1988, preceitua que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público“. Diante do preceito, como se pode interpretar a locução “por delegação do Poder Público”? Qual ente federativo tem competência para definir o regime da referida delegação?

 

                                03. Ora, de acordo com o que já restou assentado, em relação à matéria legislativa concernente à disciplina das atividades notariais e registrais, conquanto substanciarem serviços realizados eminentemente no plano estadual, nota-se relativa prevalência da normação federal. A manifestação legislativa estadual, basicamente, limita-se à disposição sobre parte da matéria no que for atinente com (i) organização e divisão judiciárias (art. 125, § 1º), (ii) implementação de meios de fiscalização pelo Poder Judiciário (art. 236, § 1º, segunda parte) e (iii) fixação de emolumentos em caráter complementar ou supletivo.

 

                                04. No caso sob estudo, uma primeira leitura aponta para a conclusão de que a competência para a disciplina geral da matéria não cabe ao Estados-membros e, sim, à União Federal, eis que não se está a transitar pelo campo de fixação de emolumentos, nem da implementação e meios de fiscalização e, tampouco, de organização e divisão judiciárias. Assim, a sistemática da distribuição de competência constitucional apontaria no sentido de que a titularidade legislativa para definir a natureza desses serviços e seu regime geral, repita-se, encontra-se no limite da atuação da União Federal. Daí, algumas conseqüências podem ser extraídas.

 

                                05. De acordo com o que se afirmou, a Lei n.º 8.935/94, é o ato legislativo federal que disciplina as regras gerais para os serviços notariais e registrais (Regnoberto Marques de Melo Junior.A instituição notarial no direito comparado e no direito brasileiro. Fortaleza: Casa de José de Alencar editorial, 1998, p. 232 e seguintes). Ela regulamenta, assim, o art. 236 da Constituição Federal.

 

                                06. Com tal premissa, de acordo com a sistemática desta lei, a quem competiria o provimento (delegação) das serventias extrajudiciais?

 

                                07. A resposta, neste quadrante, indica que a competência reside no âmbito de atuação do Chefe do Poder Executivo. Deveras, algumas razões demonstram a consistência da tese.

 

                                08. Em primeiro lugar, descarta-se a hipótese dessa competência caber ao Poder Judiciário em vista do veto do art. 2º, da Lei n.º 8.935/94, que assim pretendia dispor:

 

Os serviços notariais e de registro são exercidos, em caráter privado, por delegação do Poder judiciário dos Estados-Membros e do Distrito Federal“.

 

          &
nbsp;                     09. O veto presidencial, que não restou afastado pelo Congresso Nacional, fundou-se na inconstitucionalidade do dispositivo. Afinal, ocaput do art. 236 refere-se a “Poder Público”, e não Poder Judiciário. Com efeito, a fundamentação do veto, conquanto sucinta, assim dispõe:

 

“O art. 236 da Constituição Federal explicita que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do poder público não fazendo remissão a qualquer dos poderes.

De sua vez, o § 1º da mesma disposição constitucional explicita que a lei disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos seus notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos e definirá a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, o que deixa implícito que a este Poder não cabe a delegação, impondo-se o veto do dispositivo” (DOU II de 21.11.1994, Seção I, p. 17.515).

 

                                10. Nesta linha, comentando as razões do veto, Walter Ceneviva assevera:

 

As razões do veto examinaram de modo correto a impropriedade do texto aprovado. O Poder Judiciário fiscaliza, mas não delega. A Carta, ao tornar expresso que a competência do Poder Judiciário é para a fiscalização – não acrescentando qualquer outra, que aliás, também é estranha aos demais dispositivos constitucionais – estabeleceu a fronteira para a intervenção da Magistratura nos serviços notariais e de registro, acrescida da verificação disciplinar que dela decorre” (Walter Ceneviva.Lei dos notários e registrados comentada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27).

 

                                11. Logo, pelas próprias razões do veto, afasta-se a possibilidade de interpretação no sentido de que a competência da delegação seja do Poder Judiciário. Afinal, uma vez ocorrido o veto, conquanto a situação determine, em princípio, uma lacuna, o vazio, ao menos no plano normativo federal, não pode ser interpretado em detrimento da manifestação parlamentar. Com efeito, aqui, qualquer hermenêutica diversa não poderá substituir a preferência da opção manifestada no veto. A democracia, neste aspecto, impõe uma presunção em favor da deliberação da maioria, que não pode ser afastada sem razões inequívocas demandadas por imperativo de Justiça e igualdade (Robert Dahl.Democracy and its critics. New Haven: Yale University Press, 1989, p. 85).

 

                                12. Não fosse por isso, outras razões jurídicas impõem conclusão idêntica. Neste sentido, observe-se, por exemplo, que a partir da sistemática da Constituição de 1988, os notários e registradores deixaram de ser considerados servidores públicos e passaram a ser tratados como agentes delegados, ou seja, agentes públicos (Rosana Millen Zappa.Op. cit., p. 43).

 

                                13. Isto implica concluir que eles se submetem a regime jurídico diverso daquele definido como estatutário, ao qual estão submetidos os demais auxiliares da Justiça. Isto porque, tornando-se agentesdelegados destinados a “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º, da Lei n.º 8.935/94), tem-se que suas atividades precedem à judicial, e, assim, não podem ser consideradas “auxiliares” desta. Até porque (i) são serventiasextrajudiciais (e não judiciais), (ii) são exercidas em caráter privado (embora sob o rótulo da delegação) e, repise-se, (iii) apenas fiscalizadas pelo Poder Judiciário. Não integram a estrutura deste. Não são propriamente auxiliares deste, mas sim, mediante compreensão teleológica, garantem a segurança geral dos atos jurídicos praticados por particulares. A repercussão, logo, de seus atos, é extremamente importante.

 

                                14. Então, parece residir longe de quaisquer dúvidas a existência de uma distinção entre (i) os serventuários da Justiça, com vínculo imediato com o Poder Judiciário, nesta sede competente pelos provimentos originários e derivados, (ii) e os agentes delegados (notários e registradores), cujas atividades são repassadas aos particulares pelo Poder Público mediante delegação, são reguladas por lei específica (que não o Código de Organização e Divisão Judiciárias) e em relação às quais compete ao Judiciário, em princípio, apenas a fiscalização dos seus atos registrais e notariais.

 

                                15. Destarte, é de se compreender que a Constituição de 1988, mais uma vez, criou um regime jurídico próprio para os notários e registradores, cuja delegação decorre de atribuição do Poder Público, razão pela qual a legislação infraconstitucional, em vista das peculiaridades jurídicas dos serviços em questão, não conferiu a competência para tal delegação ao Poder Judiciário.

 

                                16. Assim, pela sistemática, tem-se por certo, diante da regulamentação federal da matéria, da natureza dos serviços, da inconfiguração de verdadeira atividade exterior ao Judiciário, da inexistência de uma “carreira” vinculada a esse Poder e do veto ao art. 2º, da Lei n.º 8.935/94, quea locução “por delegação do Poder Público”, docaput do art. 236, da Constituição de 1988, não pode ser compreendida como “delegação do Poder Judiciário”.

 

                               17. Tanto assim, prossiga-se, que, para fins previdenciários e de pessoal dos ofícios extrajudiciais, os exercentes dessas funções delegadas não ocupam cargos públicos – de
relação estatutária – mas sim desempenham atividade pública. Com isso, mais uma vez, longe de serem servidores públicos, os titulares (e seus funcionários) de serviços notariais e de registro podem, no máximo, ser considerados particulares em colaboração com a Administração Pública. Não perdem, portanto, a característica de agentes privados.

 

                               18. Então, afirmar que os titulares das serventias extrajudiciais recebem delegação do Poder Judiciário seria o mesmo que equipará-los, quanto ao regime da atividade, aos agentes ocupantes de cargo. E não é isso o que sucede. Isto porque, tratar um agente privado como se ocupante fosse de cargo público, implicaria retirar-lhe a natureza particular, implicando agressão ao disposto no art. 236,caput, da Constituição Federal.

 

                               19. Note-se, nesta linha de argumentação, mais uma vez, que a Constituição Federal, em várias passagens, demonstra adotar a distinção entre cargos, empregos e funções públicas. Observe-se, nesta linha, o teor do art. 37, I (“os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros…“), que discrimina expressamente essas diversas categorias. Não se trata, por óbvio, de utilização de palavras aleatórias. A distinção, nesta sede, decorre de regime jurídico diferenciado ao qual cada uma delas se submete. Em nível infraconstitucional a distinção também existe e, nesta linha, basta observar o teor do art. 2º, da Lei de Improbidade Administrativa (“reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce… mandato, cargo, emprego ou função…“).

 

                               20. Por cargo entende-se a mais simples e indivisível unidade de competência a ser expressa por um agente, prevista em número certo, com denominação própria, retribuída por pessoa jurídica de direito público e criada por lei, submetendo-se ao regime institucional ou estatutário (Celso Antônio Bandeira de Mello.Curso de direito administrativo, 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 139).

 

                               21. Os empregos públicos, por sua vez, “são núcleos de encargos de trabalho a serem preenchidos por agentescontratados para desempenhá-lo, sob relação trabalhista”. Sujeitam-se, ainda, “a uma disciplina jurídica que, embora sofra algumas inevitáveis influências advindas da natureza governamental da contratante, basicamente, é a que se aplica aos contratos trabalhistas em geral; portanto, a prevista na Consolidação das Leis do Trabalho” (idem, ibidem).

 

                               22. Função, finalmente, é expressão reservada àquelas atividades públicas desenvolvidas por particulares em colaboração com a Administração Pública. As funções são públicas; mas, porém, quem as exercem são pessoas ou entidades privadas e, assim, não ocupam cargo e nem emprego (Celso Antônio Bandeira de Mello.Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 8-9).

 

                               23. O art. 236,caput, da Constituição Federal, quando afirma que os serviços notariais e registrais são exercidos em caráter privado, certamente está a definir uma função. Tanto é assim que Celso Antônio Bandeira de Mello, ainda no regime da Constituição anterior, mas em lição cabível ao presente contexto constitucional, já afirmava o seguinte:

 

“Os serventuários públicos, isto é, titulares de escrivanias de justiça oficializadas e escreventes, são funcionários quando pagos total ou parcialmente pelos cofres públicos, ou apenas assimilados aos funcionários quando recebem tão-só custas e emolumentos diretamente dos usuários dos serviços. Quando a escrivania de justiça não é oficializada, seus titulares e empregados não são funcionários públicos nem se devem considerar a eles assimilados. Os titulares de tais ofícios sãoparticulares em colaboração com a Administração, na condição de delegados de ofício público” (idem, ibidem).

 

                                24. Portanto, dizer que a competência para delegação dessas funções caberia ao Poder Judiciário implicaria equiparar, neste campo, atividades exercidas sob regimes jurídicos absolutamente distintos, realizando inadmissível unificação de categorias que o constituinte originário quis, em verdade, distinguir. Nesta linha, aliás, também transita Ovídio Baptista da Silva, para quem o instituto notarial se caracteriza como um serviço público delegado, a ser exercido por profissionais do direito, na condição de agentes privados e, conseqüentemente, as pessoas investidas na função notarial não são funcionários do Estado e nem participam dos quadros do serviço público (Ovídio Baptista da Silva.O notariado brasileiro perante a constituição federal. In:www.registral.com.br, acesso em 11.02.2000, p. 9).

 

                                25. Aliás, ao que parece, não é por diverso motivo que o Supremo Tribunal Federal tem declarado a inconstitucionalidade de leis estaduais que impõem aposentadoria compulsória a notários e registradores, reconhecendo-os como integrantes de categoria apartada dos serventuários da Justiça, estes, sim, submetidos ao jugo do Poder Judiciário e do regime estatutário. E, na linha do raciocínio, tem-se, por conseqüência, também reconhecido que os Presidentes dos Tribunais de Justiça não podem decretar a aposentadoria compulsória desses agentes delegados e nem mesmo,como corolário, declarar a vacância das respectivas funções. Destarte,a contrario sensu, se os Presidentes dos Tribunais de Justiça não podem declarar a vacância, consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal, pelos mesmos motivos também lhes foge a competência para a delegação (provimento).

 

                                26. Note-se, nesta linha, a seguinte manifestação do Supremo Tribunal Federal:

 

“EMENTA: Notários e oficiais de registro: sujeição ou não à aposentadoria compulsória por idade, à vista da nova redação do art. 40 CF, cf. EC 20/98: impertinência da questão aos que completaram setenta anos antes da emenda constitucional.

1. A resistência dos titulares dos serviços notariais e de registro à aposentadoria compulsória por idade – à qual os entendia sujeitos a jurisprudência do STF -, se tem reputado plausível à vista da nova redação do art. 40 e § 1º da Constituição, ditada pela EC 20/98 (…)” (STF. Questão de Ordem em Petição n.º 2915-1, de São Paulo. Relator Min. Sepúlveda Pertence)

 

                               De forma ainda mais incisiva o Supremo Tribunal Federal definiu, na ADIn n.º 2.602, em sede de liminar, que “os notários e registradores não estão sujeitos a aposentadoria compulsória pelo implemento da idade de 70 (setenta) anos“. Em idêntico sentido: RE n.º 254.065-0/SP; RE n.º 178.236-6/RJ e ADIn n.º 575-8/PI e MSMC n.º 23831/DF.

 

                               Nas decisões exemplificativamente citadas, os argumentos para a declaração de inconstitucionalidade transitam pela distinção do regime jurídico de notários e registradores sob o manto da Constituição de 1988, seguindo a idéia de que a competência do Tribunal de Justiça, neste sítio, limita-se à atividade de fiscalização. Afinal, repise-se, não são verdadeiramente auxiliares da Justiça, não ocupam “cargo efetivo” e nem se submetem a uma carreira vinculada ao Judiciário.

 

                               Observe-se, assim, a decisão na ADIn 2602/MG:

 

“De outra parte, embora a citada Lei seja omissa quanto à competência para a declaração de vacância e para a outorga e/ou seu fazimento, o que é certo é que esses agentes delegados não podem ser considerados auxiliares da justiça, não tendo o Poder Judiciário competência normativa para editar recomendações, proibir, autorizar ou vedar qualquer comportamento desses agentes delegados, até porque o Poder Delegante não é ele” (STF – Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.602-0 – Minas Gerais – Rel. Ministro Moreira Alves – DJU 03/04/2003).

 

                               27. Na decisão citada, portanto, a fundamentação reconhece que os Presidentes dos Tribunais de Justiças não ostentam mais competência para determinar a aposentadoria compulsória de notários e registradores e, tampouco, podem declarar, via de conseqüência, a vacância dos respectivos ofícios. Insista-se:pode-se, então, dessumir-se que, pelas mesmas razões, fundadas na distinção de regime jurídico, falta aos Presidentes de Tribunais de Justiça a competência para a delegação (provimento).

 

                                28. Conclui-se, destarte, que a competência paradelegar função notarial e de registro, ao menos no plano federal, cabe ao Poder Público, compreendido este, para tal fim, como o Poder Executivo, eis que esta atribuição está afastada do âmbito competencial do Poder Judiciário.

 

                                29. É de ressaltar, por fim, que seria, por hipótese, sustentável, a tese de que, sob o manto da autonomia legislativa estadual (e nesta sede com fulcro na autonomia para dispor sobre organização e divisão judiciárias ou mesmo a residual), pudessem os Estados-Membros dispor de modo diverso, enunciando que o Poder Público competente para nomeação e declaração de vacância dos ofícios extrajudiciais é o Judiciário.

 

                                30. Nesta hipótese seria de se atentar que a opção, no plano local, por modelo diverso do adotado no âmbito federal, haveria de se manifestar, evidentemente, de forma expressa. Isso porque, dispondo a União de competência para regular a matéria, o campo de atuação estadual seria apenas o residual. Assim, em caso de silêncio do legislador estadual, haverá de prevalecer a opção central, manifestada pela União, e que neste sítio, pelas razões anteriormente apontadas, dá-se no sentido de que Poder Público é o Poder Executivo.

 

                                31. Nada obstante, uma vez o legislador estadual decline que tal competência haverá de ser do Poder Judiciário, a opção legislativa estadual, aqui também tributária do respeito ao princípio majoritário e da representação, deverá prevalecer.

 

                                32. Mas tal não sucede, deixe-se claro, no Estado do Rio de Janeiro. Afinal, demonstrou-se que, por decorrência do regime constitucional, notários e registradores não ocupam cargo, não são servidores efetivos e nem tampouco auxiliares da Justiça. E, nesta sede, o Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro limita-se, em seu art. 30, XIV e XV, a afirmar:

 

“Art. 30. Ao Presidente do Tribunal de Justiça, que é o chefe do Poder Judiciário, compete:

XIV – prover, em nome do Tribunal e na forma da lei, os cargos efetivos integrantes dos quadros de pessoal dos serviços auxiliares compreendidos pelas secretarias do Tribunal e da Corregedoria, o
s desta por indicação do Corregedor, baixando os atos respectivos de nomeação, promoção, acesso, transferência, readmissão, reintegração, aproveitamento e reversão.

XV – declarar, em nome do Tribunal e na forma da lei, a vacância dos cargos referidos no inciso antecedente, baixando os atos respectivos de exoneração, demissão, promoção, acesso e aposentadoria”.

 

                                Assim, como se nota, as disposições não se aplicam a notários e registradores, que, como se demonstrou, na reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nem ocupam cargos efetivos e nem integram o quadro de “serviços auxiliares”.

 

                                33. Nada obstante, ainda que se entenda em sentido diverso, ou seja, ainda que se sustente que oficiais notariais e de registro, para esta finalidade, ou ocupam cargo efetivo ou integram o quadro de serviços auxiliares, para que houvesse nomeação, seria preciso que antes os cargos fossem criados por lei. E isso até mesmo por exigência da própria legislação estadual que, através da Lei Estadual n.º 2.085-A, de 05 de Setembro de 1972, dispõe:

 

“Art. 1º. Os servidores da Justiça, pela natureza das funções que lhes são cometidas por esta lei, distinguem-se em serventuários e funcionários.

Art. 2º. São serventuários os ocupantes de cargos criados por lei, com denominação própria, e em número certo, cujas atribuições dizem respeito diretamente à atividade judiciária.

Art. 3º. São funcionários os ocupantes de cargos criados por lei, com denominação própria e em número certo, cujas atribuições são precipuamente de natureza administrativa.

 

                                Adiante, no art. 6º, define-se que oficiais notariais e registradores são espécies de serventuários titulares.

 

                                Assim, portanto, no Estado do Rio de Janeiro, ou se entende que, em vista de vazio normativo, aplica-se a opção federal, de modo a compreender-se o Poder Executivo como delegante de funções notariais de registro, ou, caso se compreenda que se tratem de funções auxiliares, aí seriam ocupantes de cargos demandantes de criação pela via da lei, conforme exigência constitucional e da própria legislação estadual. Estar-se-ia, então, diante do debate da reserva de lei.

 

 

V. Delegação de função, legalidade e reserva de lei.

 

                                01. Estabelecido que as atividades notariais e de registros são exercidas em caráter privado mediante delegação, e assim os seus titulares não são equiparáveis a servidores e empregados públicos, nem submetem-se ao regime jurídico estatutário, tampouco são verdadeiros auxiliares da Justiça (por decorrência da natureza do serviço exercido), cabe indagar se tais funções (e aqui, portanto, não se está falando das próprias delegações mas do plexo de competências as precedem) podem ser criadas mediante ato administrativo, tal como sucedeu com a Resolução nº 12/04, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

 

                                02. Aceite-se, desde já, que o Estado, no exercício de sua função administrativa,

 

“intervém nos atos e fatos da vida particular para lhes conferir certeza e segurança jurídica, ora diretamente, ora credenciando ou delegando a particulares esta função. Tal é a situação dos tabelionatos e cartórios” (Celso Antônio Bandeira de Mello.Prestação de serviços públicos e administração indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 1987, p. 17).

 

                                Assim, os agentes delegados,

 

“são particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviços públicos e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios e cartórios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que exercem delegação para alguma prática estatal ou serviço de interesse público” (Hely Lopes Meirelles.Direito administrativo brasileiro, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 76).

 

                                03. Nesta linha, é de se aceitar, igualmente, pelo teor da atividade que desempenham (atividade de “organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, conforme art. 1º, da Lei n.º 8.935/94), que se está diante do desempenho de atividade jurídica e não material, como ocorre com os serviços públicos (O. A. Bandeira de Mello.Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, Volume II, 1974, p. 364).

 

                                04. Com isso, por estar-se diante de plexo ou feixe unitários de competências públicas, o modo como surgem e se extinguem somente pode ocorrer através de lei.

 

                                05. Nesta linha, aliás, o Ministro Sepúlveda Pertence, embora com algumas difere
nças no tratamento terminológico, já se manifestou:

 

“Não posso negar a relevância da argüição de inconstitucionalidade. Os ofícios do notariado e dos registros públicos são órgãos do estado, na medida em que instrumentos do desempenho de funções públicas; organismos dotados de fé pública, está dito, hão de ser serviços estatais. Não importa que por essa sobrevivência inqualificável no setor dos tempos de patrimonialização do Estado, como preceitua esse melancólico art. 236 da Constituição, se cuida de funções públicas exercidas em caráter privado por delegação do Poder Público.

Porque são públicos, é que, para exercê-los em caráter privado, dependem, os titulares dos cartórios, da delegação do Estado. São, pois, órgãos da administração. E assim, à primeira vista, a mim me parece que a instituição de ofícios é objeto de reserva de lei no art. 48, inciso, XI, da Constituição: trata-se da criação de órgãos públicos.

Tenho dificuldade também, por ora, com todo respeito pelo voto do eminente Relator, de extrair da Lei Federal – quando proíbe a descentralização territorial de cada ofício – a criação de órgãos públicos estaduais ou a autorização para criá-los por ato administrativo” (Min. Sepúlveda Pertence. ADIn n.º 1583).

 

                                06. Logo, para uma melhor análise da questão, justificando a impossibilidade de criação de funções extrajudiciais mediante ato administrativo, há que se compreender a hipótese sob dois prismas: legalidade e reserva de lei.

 

                                07. Neste sítio, a doutrina nacional, através da pena de José Afonso da Silva, em passagem de referência inafastável, sustenta:

 

“A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade e o da reserva de lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou à atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal. Embora às vezes se diga que o princípio da legalidade se revela como um caso de reserva relativa, ainda assim é de reconhecer-se diferença entre ambos, pois que o legislador, no caso da reserva de lei, deve ditar uma disciplina mais específica do que é necessário para satisfazer o princípio da legalidade.

Em verdade, o problema das relações entre os princípios da legalidade e da reserva de lei resolve-se com base no Direito Constitucional positivo, à vista do poder que a Constituição outorga ao Poder Legislativo. Quando essa outorga consiste no poder amplo e geral sobre qualquer espécie de relações, como vimos antes, tem-se o princípio da legalidade. Quando a Constituição reserva conteúdo específico, caso a caso, à lei, encontramo-nos diante do princípio da reserva legal. Por isso é que Christian Starck, examinando a questão em face da Constituição da República Federal da Alemanha, esclarece que, junto à reserva geral, ela reconhece uma série de reservas particulares.

(…)

É absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como:a lei regulará, alei disporá, alei complementar organizará, alei criará, alei poderá definir etc.

É relativa a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é em parte admissível a outra fonte diversa da lei, sob condição de que esta indique as bases em que aquela deva produzir-se validamente. Assim é quando a Constituição emprega fórmulas como as seguintes:nos termos da lei,no prazo da lei,na forma da lei, com base na lei, segundo critérios da lei etc.

São, em verdade, hipóteses em que a Constituição prevê a prática de ato infralegal sob determinada matéria, impondo, no entanto, obediência a requisitos e condições reservados à lei. Por exemplo, é facultado ao Poder Executivo, por decreto, alterar alíquotas dos impostos sobre importações, exportação, produtos industrializados e operações de crédito etc., atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei (art 153, § 1º)” (José Afonso da Silva.Curso de direito constitucional positivo, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 425 e seguintes).

 

                                08. Assim, num Estado Democrático de Direito (art. 1º, da Lei Fundamental de 1988), particulares e Poder Público submetem-se à legalidade. Devem observância à lei e ao Direito, como um todo (Jorge Reis Novais.Contributo para uma teoria do estado de direito – do estado de direito liberal ao estado social e democrático de direito, Coimbra: Coimbra, 1987, p. 89 e seguintes). Em outras palavras, na legalidade, demanda-se a atuação conforme a lei, ainda que se trate de ato privado ou infralegal. De maneira diversa, o princípio da reserva legal impões não apenas um agir conforme lei mas, antes, um agir através da lei, pela lei.

 

                                09. Deveras, neste sentido, J. J. Gomes Canotilho anota, em relação à legalidade (por ele designada como princípio da prevalência da lei), que:

 

“Historicamente, o princípio da primazia ou prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) foi entendido com uma tripla dimensão:

(1)           a lei é o acto da vontade estadual juridicamente mais forte. Conseqüentemente:

(2)           prevalece ou tem preferência sobre todos os outros actos do Estado, em especial sobre os actos do poder executivo (regulamentos, actos administrativos);

(3)           detém a posição de <<topo da tabela>> da hierarquia das normas, ou seja, desfruta de superioridade sobre todas as outras normas de ordem jurídica (salvo, como é óbvio, as constitucionais).

O princípio da preferência da lei comporta uma dimensão positiva e uma dimensão negativa:

(1) dimensão positiva: traduz-se na exigência de observância ou de aplicação da lei;

(2) dimensão negativa: implica a proibição de desrespeito ou violação da lei” (J. J. Gomes Canotil
ho.Direito constitucional, 5ª ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 796-7).

 

                                Quanto à reserva de lei, em seguida, assinala:

 

“Através do conceito dereserva de lei (Vorbehalt des Gesetzes) pretende-se delimitar um conjunto de matérias ou de âmbitos materiais que devem ser regulados por lei (<<reservados à lei>>). Esta <<reserva de matérias>> para a lei significa, logicamente, que elas não devem ser reguladas por normas jurídicas provenientes de outras fontes diferentes da lei (exemplo: regulamentos). Ainda que por outras palavras: existe reserva de lei sempre que a Constituição prescreve que o regime jurídico de determinada matéria seja regulado por lei e só por lei, com exclusão de outras fontes normativas. A esta dimensão da reserva de lei acresce uma outra: a de que o poder executivo carece de um fundamento legal para desenvolver suas actividades (reserva de lei como teoria da dependência do executivo perante o legislativo).

A reserva de lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra positiva.

(1) dimensão negativa: nas matérias reservadas à lei está proibida a intervenção de outra fonte de direito diferente da lei (a não ser que se trate de normas meramente executivas da administração).

(2) dimensão positiva: nas matérias reservadas à lei esta deve estabelecer ela mesmo o respectivo regime jurídico, não podendo declinar a sua competência a favor de outras fontes” (J. J. Gomes Canotilho.Op. cit., p. 798-9).

 

                                Em idêntica linha, aliás, cite-se também Manuel Afonso Vaz, para quem o “verdadeiro alcance dareserva de lei, como expressão doprincípio da legalidade, ultrapassa a distribuição orgânico-funcional do poder legislativo e questiona as relações da lei perante outros actos estaduais não legislativos” (Manuel Afonso Vaz.Lei e reserva da lei – a causa da lei na constituição portuguesa de 1976, Porto: Universidade Católica Lusitana, 1992, p. 34). Cite-se, ainda, no Brasil, Geraldo Ataliba, que neste sentido, referindo-se a tais institutos (ambos sob o manto geral do princípio da legalidade), fala em subordinação positiva e subordinação negação dos Poderes Públicos ao Direito. Enquanto a formulação negativa da legalidade sublinha a prevalência dos atos do Legislativo sobre os atos do Executivo e, em particular, da administração, a formulação positiva assinala o caráter de subordinação daquela à lei, como verdadeira garantia dos particulares contra intervenções na esfera de direitos fundamentais, a não ser que estas se operem em virtude de lei (Geraldo Ataliba.Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n.º 97, 1969, p. 67 e seguintes).

 

 

VI. Inobservância da reserva de lei.

 

                                01. A partir das considerações expostas é possível demonstrar, conforme já foi adiantado, que a criação e extinção de funções notariais e de registro apenas pode decorrer pela via da lei e, assim, tratam-se de matérias  submetidas ao princípio da reserva legal.

 

                                02. Com efeito, pode-se afirmar que determinada disciplina encontra-se vinculada ao princípio da reserva legal e, portanto, apenas pode ser delimitada e veiculada pela via da lei, a partir da leitura do sistema constitucional positivo.

 

                                03. Nada obstante, no regime da teoria dos atos legislativos, a doutrina costuma firmar entendimento no sentido de que, em geral, a organização da administração, como sucede no caso sob estudo, já se submete ao princípio da reserva de lei. Com efeito:

 

Reserva de lei e organização da administração.

É este outro campo em que o alargamento da reserva de lei é discutido. Na doutrina tradicional, entendia-se ser opoder de organização matéria reservada ao executivo, não se justificando qualquer autorização legal. Hoje, há também quem continue a defender a mesma posição, até porque o executivo assenta, nas modernas estruturas constitucionais, na legitimidade democrática. Todavia, na medida em que os actos de organização influam sobre a posição jurídica de terceiros, isto é, deixem de ter apenas um âmbito interno e repercutam os seus efeitos externamente, eles carecem de fundamento legal” (J. J. Gomes Canotilho.Op. cit., p. 804).

 

                                04. Nesta linha, ainda doutrinária, é de se aceitar que a criação e extinção de serventias extrajudiciais, seja porque afetam, como no caso em apreço, os titulares já em exercício nos ofícios existentes, seja porque afetam, pela finalidade dos atos praticados, os próprios cidadãos, substancia ato de organização que influencia posição jurídica de terceiros. Assim, inequivocamente, submete-se às exigências da reserva legal, não podendo ser realizada mediante ato administrativo.

 

                                05. Não fosse por isso, o próprio teor do art. 236, § 1º, da Constituição Federal, não deixa margem de dúvidas de que a criação e extinção de ofícios extrajudiciais notariais e de registro submetem-se à reserva de lei. Com efeito, o enunciado é claro ao afirmar que “Lei regulará as atividades…”.

 

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sp;      06. Aqui, não importa se de afetada ao plano federal ou estadual, a regulamentação pela via da lei abrangerá a definição de competências, inclusive territorial e geograficamente consideradas, dos ofícios extrajudiciais, eis que o âmbito de atuação individual de cada um depende, unitariamente, desta caracterização. Rememore-se, neste sentido, o vernáculo:

 

“REGULAÇÃO. Deregular, do latimregulare (dispor, ordenar), designa a série de atos e formalidade pelos quais se dispõe ou se ordena omodo de ser ou aforma para execução de alguma coisa.

É, assim, aordenação ouregração das condições impostas para a realização ou execução de alguma coisa” (De Plácido e Silva.Vocabuário jurídico, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 1331).

 

                                07. Não fosse, ainda, pela expressa exigência de que as atividades em questão devam ser reguladas por lei (e, repita-se, a criação e extinção de serventias encontram-se no sítio da regulamentação demandada pela Constituição Federal), a observância da reserva legal ainda decorreria, para aqueles que entendem que a disciplina está afeta ao campo da organização judiciária, do teor do art. 99,caput (autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário) combinado com o art. 96, II, “d” (competência parapropor ao Poder Legislativo a alteração da organização e divisão judiciárias), ambos da Constituição de 1988.

 

                                A leitura sistemática desses dispositivos leva à consideração de que, em se tratando a criação e extinção de ofícios extrajudiciais, de matéria de organização e divisão judiciárias, a disciplina deverá necessariamente decorrer pela via da lei, embora com reserva de iniciativa ao Poder Judiciário.

 

                                08. Por outro prisma, admitindo-se a hipótese das atividades desempenhadas por notários e registradores serem revestidas pela forma dos cargos – o que ora se aceita por mera hipótese argumentativa -, (i) ou deverão ser compreendidas como decorrentes de cargos “auxiliares da Justiça”, hipótese em que se retoma a exigência da reserva legal pela via do art. 96, II, “b”, da Constituição de 1988, ou (ii) deverão ser compreendidas como decorrentes de cargos criados na forma exigida pelo art. 48, X, da Constituição Federal (competência privativa do Congresso Nacional para dispor sobre “criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas“).

 

                                Nesta linha já se filiaram, por exemplo, os Ministros Sepúlveda Pertence (na já citada ADIn n.º 1583), Marco Aurélio (também na ADIn n.º 1583) e Néri da Silveira. Este último, aliás, é bastante claro:

 

“À vista do disposto no art. 236,caput, da Constituição, não tenho como suscetível de dúvida que os serviços notariais e de registro são de natureza pública; são serviços públicos.

Como antes se observou, a Constituição não despiu os serviços notariais e de registro do caráter inerente ao serviço público.

Não parece, destarte, possível entender que esses agentes hajam deixado de ter condição e qualificação, de servidores públicos, tal como sucedia no regime constitucional precedente. As serventias, como cargos públicos, são criadas em lei…” (Ministro Néri da Silveira. Recurso Extraordinário n.º 178.236).

 

                                Logo, igualmente por este raciocínio, não serão os atos administrativos os veículos competentes para a criação e extinção de serventias extrajudiciais.

 

                                09. Mediante outra abordagem, prossiga-se, poder-se-ia sustentar a demanda da vinculação ao princípio da reserva legal, no sítio sob análise, por decorrência do art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal, onde se preceitua que “lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos (…) bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão“.

 

                                10. De outro lado, no plano da Constituição Estadual do Rio de Janeiro, também é possível extrair, sob certa leitura, a demanda de que a criação e a extinção de ofícios extrajudiciais está submetida ao princípio da reserva legal. Isto porque, em seu art. 161, I, “d”, enuncia-se competência do Tribunal de Justiça parapropor à Assembléia Legislativa a alteração da organização e da divisão judiciárias, certamente por se tratarem de unidade técnicas e administrativas que encerram competências jurídicas.

 

                                11. Aliás, no Estado do Rio de Janeiro, a matéria sempre foi disciplinada na sede da Lei de Organização e Divisão Judiciárias, como se percebe pela leitura do art. 27, do Código em vigência. Foram, assim, os ofícios extrajudiciais da cidade do Rio de Janeiro, criados por lei, observando-se o critério territorial das freguesias, pouco importando que tenha sido editado na época pelo próprio Tribunal, então e em face da Emenda 1/69, competente para verdadeiramente legislar sobre a matéria. Assim, uma vez criados por lei, e outra vez demandada, como se demonstrou, a regulamentação, no quadro da Constituição de 1988, também por lei, não seria prudente aceitar a intervenção neste sítio pela simples via administrativa.

 

                                Aliás, em se considerando, para este fim, ainda, que oficiais notariais e de registro são verdadeiros auxiliares da Justiça, como ainda se referiu em tópico anterior, há se de levar em conta que a E isso até mesmo por exigência da própria legislação estadual que a Lei Estadual n.º 2.085-A, de 05 de Setembro de 1972, enuncia que tais cargos (compreendidos os notários e registradores) somente podem ser criados por lei.

 

                                Logo, pelas diversas razões enunciadas, é certo que ao desmembrar, extinguir (ainda que indiretamente) e criar novas serventias pela via administrativa, laborou, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em inconstitucionalidade.

 

                                12. Não custa salientar, por fim, que mesmo através da via da lei, a regulamentação, no plano estadual, há que observar (salvo no campo em possui autonomia para disposição diversa), e agora por força dos princípios da constitucionalidade e da legalidade, as normas centrais definidas pela Lei n.º 8.935/94, bem como regras e princípios (e aqui sem autonomia para disposição contrária) decorrentes do regime da Constituição Federal.

 

 

VII. Princípio da legalidade.

 

                                01. O princípio da legalidade, como se demonstrou anteriormente, traduz-se na exigência de observância ou de aplicação da lei, em sua dimensão positiva e, na negativa, implica a proibição de desrespeito ou violação da lei.

 

                                02. Deste modo, ainda que se considere que os ofícios possam sofrer disciplina normativa estadual, sob o signo de tratar-se de matéria de organização ou divisão judiciárias, ou que se considere que possam ser extintos ou criados pela via administrativa infralegal, como sucedeu no Estado do Rio de Janeiro, a observância ao princípio da legalidade se impõe.

 

                                03. Isto porque, uma vez disciplinada a prestação desses “serviços” por lei estadual, nem por isso a autonomia do Estado-membro poderá superar, por decorrência do sistema constitucional de distribuição de competências, a normatividade geral elaborada pela União através da Lei Federal n.º 8.935/94.

 

                                04. Da mesma maneira, se disciplinada a criação e extinção desses ofícios pela via administrativa, bem por se tratar de exercício de mister infralegal, a vinculação às disposições da Lei dos Notários e Registradores mostra-se inafastável.

 

                                05. Neste caminho, pela leitura do disposto no art. 5º, combinado com os arts. 26 e seu parágrafo único, 44 e 49, todos da Lei Federal n.º 8.935/94, percebe-se que, em todos os momentos, o legislador impôs respeito às delegações já existentes, ao prever, por exemplo, a persistência das acumulações de atribuições, as suas extinções, as desacumulações, desmembramentos, anexações ou extinções de delegações até a vacância.

 

                                06. Assim é, diga-se de passagem, porque a delegação, neste caso, equivale a uma espécie de concessão (embora delegada por concurso, em vista da peculiaridade da atividade), e não simples permissão, situação em que o vínculo seria precário e independeria de autorização legislativa.

 

                                07. Não sem razão, portanto, compreende-se a preocupação do art. 16, § 4º, da Constituição Estadual fluminense, que enuncia o seguinte: “Ficam mantidos os atuais serviços notariais e de registro existentes no Estado, enquanto não forem disciplinadas em lei as disposições do art. 236 da Constituição da República“. Logo, considerando que a Lei n.º 8,935/94, não dispôs sobre a questão de critérios para criação de novas serventias extrajudiciais, o regime em vigência, por força da Constituição Estadual, há de ser mantido.

 

                                08. No quadro que se vem delineando, assim, é imposição desenvolver, ainda que brevemente, algumas questões.

 

                                09. Inicialmente, é de se arrazoar que, uma vez descartada a hipótese de submissão dos ofícios extrajudiciais à estrutura do Poder Judiciário, seja pelo regime jurídico constitucional ou pela natureza da atividade, é certo que os particulares investidos nessas funções não se submetem ao regime jurídico estatutário (Gilberto Valente da Silva.Breves anotações à lei 8.935/94, In: JACOMINO, Sérgio – Coord.Registro de imóveis – estudos de direito registral imobiliário. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1997, p. 154 e seguintes).

 

                                10. Desta feita, como conseqüência, seria de se admitir a proteção ao direito adquirido às delegações na forma como foram realizadas, admitindo-se a incidência de eventuais alterações perpetradas em âmbito n
ormativo estadual apenas para o futuro, quando se declarasse a vacância dos atuais titulares delegados. Esta tese, conquanto já afastada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não é propriamente pacífica, de modo que o novo regime jurídico de notários e registradores perante a Constituição Federal de 1988 poderá servir de supedâneo para novo debate da hipótese.

 

                                11. No que tange com a extinção das delegações existentes (ainda que de forma indireta) mediante a criação de 29 (vinte nove) ofícios a partir de novo critério de distribuição territorial (utilização de referencial de bairros em detrimento das freguesias), ainda que fosse possível superar a questão levantada atinente com a inobservância da exigência de reserva legal, nota-se que o ato administrativo editado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ignora totalmente requisitos demandados pela Lei Federal n.º 8.935/94.

 

                                Com efeito, percebe-se, do teor do art. 38, de referido diploma legal, que expressa verdadeira norma central, que “o juízo competente zelará para que os serviços notariais e de registro sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desses serviços, observados, também, critérios populacionais e sócio-econômicos, publicados regularmente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística“.

 

                                12. O dispositivo vem à tona, neste momento, porque os motivos elencados para a edição da Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, são os motivos definidos no art. 38, da Lei n.º 8.935/94. Quais sejam: a implementação de celeridade (rapidez), eficiência e barateamento do preço (modicidade) dos atos jurídicos. Logo, aqui, verifica-se a vinculação do ato administrativo aos motivos que ensejaram sua edição (Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez.Curso de direito administrativo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 478-9).

 

                                13. Nada obstante, embora houvesse exigência legal neste sentido, o ato administrativo emanado do Tribunal de Justiça não foi, em momento algum, precedido de levantamento de dados populacionais e sócio-econômicos a partir de critérios definidos pelo IBGE, nem estudos de viabilidade econômico-financeira. Tampouco garante a eficiência ou modicidade anunciadas. Aquela, porque a fragmentação das serventias não importa, necessariamente, na melhoria da qualidade técnica, que depende da aptidão e experiência profissional do delegatário, bem como da utilização de equipamentos de moderna tecnologia. A segunda, porque o valor das custas é definido por tabela, com padrões gerais e uniformes, que independem da localização das serventias e da multiplicidade das áreas territoriais das suas correspondentes atribuições.

 

                                14. Assim, inobservados os requisitos e procedimentos legais, o ato administrativo encontra-se revestido de ilegalidade, ferindo o disposto nocaput do art. 37, da Constituição Federal, razão pela qual, também por esta fundamentação, pode suscitar fulminação pela via da ação direta de inconstitucionalidade.

 

                                15. Saliente-se, por fim, que em se considerando que a Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça fluminense, representa verdadeira hipótese de extinção das delegações atuais para instauração de novas, aqui se tem outra ilegalidade do ato administrativo sob estudo eis que, no regime da Lei Federal n.º 8.935/94, a delegação só se extingue (art. 39) pela morte, aposentadoria facultativa, invalidez, renúncia, perda e descumprimento comprovado da gratuidade estabelecida por lei federal. A perda da delegação, por sua vez, somente pode decorrer (art. 35) de sentença judicial transitada em julgado ou de decisão decorrente de processo administrativo instaurado pelo juízo competente. Em sendo assim, verifica-se que o ato administrativo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro verdadeiramente criou hipóteses de extinção da delegação não previstas na lei.

 

 

VIII. A ADIn n.º 2415-9.

 

                                01. Por fim, cumpre salientar que o ato administrativo substanciado na Resolução n.º 12/04, foi precedido de ampla discussão interna no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

 

                                02. Nos diversos documentos fornecidos pelo consulente para estudo e análise da questão, aparece, de forma insistente, o argumento de que seria pacífico, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que a criação e extinção de ofícios notariais e de registro não estariam submetidas à observância do princípio da reserva legal.

 

                                03. Para isso fez-se referência, sempre, à ADIn n.º 2415-9/SP, aforada pela ANOREG/BR, onde se impugnava o Provimento n.º 747/2000, alterado pelo Provimento n.º 750/2001, ambos editados pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, cujo pedido de liminar foi denegado por maioria de votos (6 X 5) no Supremo Tribunal Federal.

 

                                04. Considerando que o Provimento n.º 747/2000, tratava de acumulação e desacumulação de serviços de notas e registros no interior daquele Estado da federação, além da criação e extinção de unidades de re
gistro civil, interpreta, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a negativa de liminar  pelo Supremo Tribunal Federal representa, em verdadeiro adiantamento do mérito, coisa julgada com eficáciaerga omnes no sentido de que a Corte Maior estaria autorizando a criação e extinção de ofícios extrajudiciais pela via administrativa.

 

                                05. Nada obstante, leitura atenta da petição inicial da citada ação direta de inconstitucionalidade dá conta de que o Provimento n. 750/2001 revogou o Provimento n.º 747/2000 exatamente nos dispositivos que criaram e extinguiram ofícios de registro civil.

 

                                06. Assim, esclarecida esta situação no item II, da petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, pediu-se a suspensão da aplicação do Provimento n.º 747/2000.

 

                                07. Este quadro impõe a conclusão de que a questão da criação e extinção de serventias por ato administrativonão integrou a causa de pedir da ação direta de inconstitucionalidade utilizada como parâmetro para a auto-atribuição competencial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Aliás, por isso, sequer foi objeto de impugnação, que ficou limitado ao ataque à reorganização das delegações mediante acumulação e desacumulação de serviços.

 

                               08. Logo, não há que se compreender que a negativa da liminar, nesta específica situação, importe em adiantamento do mérito. Até porque a questão não foi especificamente analisada pelo Supremo Tribunal Federal e, também porque, na impugnação aos atos da Corregedoria do Estado de São Paulo, foram arrolados mais de seis fundamentos para a inconstitucionalidade.

 

                               09. Há que se considerar, ainda, que a decisão denegatória da liminar, na ação direta de inconstitucionalidade, apenas mantém a presunção de constitucionalidade do ato impugnado. E aqui, repita-se, uma vez que foi revogado pelo Provimento n.º 750/2001, não há que se presumir a constitucionalidade de um ato que não mais subsiste no sistema jurídico.

 

                               10. Com isso, é forçoso concluir que a decisão denegatória de liminar na ADIn 2415-9/SP, não serve de parâmetro para justificar a Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e nem poderá servir de paradigma para julgamento em caso de eventual propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra a normativa do Judiciário fluminense.

 

                               11. Considere-se, ademais, como distinção entre as situações, o fato de que, em São Paulo, o Provimento n.º 747/2000 abrangeu apenas, em vista do respeito ao direito adquirido, as serventias vagas, o que não ocorre no caso do Rio de Janeiro. Ademais, na hipótese de São Paulo, não restaram alterados os critérios de delimitação territorial de atuação.

 

 

X. Resposta aos quesitos.

 

                                Diante do exposto, é possível lançar as seguintes respostas aos quesitos:

 

 

Primeiro: Diante da ordem constitucional brasileira pode-se considerar legítima a criação, extinção e modificação de ofícios extrajudiciais mediante ato administrativo emanado do Tribunal de Justiça? Ou a medida estaria submetida às exigências da reserva de lei?

 

                                Não. A criação, extinção e modificação de ofícios extrajudiciais, mediante ato administrativo, são providências inconstitucionais, eis que submetidas à exigência de observância do princípio da reserva legal.

 

 

Segundo: A qual autoridade compete a delegação e extinção das funções notariais e de registro?

 

                                A competência para delegar e extinguir delegação de serviços notariais e de registro encontra-se no plexo de funções do Chefe do Poder Executivo, no plano federal. No âmbito estadual, embora fosse possível definição em sentido contrário, no Estado do Rio de Janeiro o cotejo normativo local também aponta, pela interpretação proposta, no sentido de que tal atribuição seja do Poder Executivo.

 

 

Terceiro: A decisão denegatória de liminar na ADIn n.º 2415-9 pode servir de parâmetro para o julgamento de eventual ação direta de inconstitucionalidade proposta contra o ato do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro?

 

                                Não. A negativa de provimento liminar na ADIn n.º 2415-9/SP, não pode servir de parâmetro para o julgamento de eventual ação direta de inconstitucionalidade proposta contra o ato do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que extinguiu e criou serventias extrajudiciais eis que o suposto precedente não teve esta matéria como objeto de impugnação. Ademais, a negativa da liminar apenas mantém a presunção de constitucionalidade do ato impugnado. No caso, como a criação e extinção de serventias no Estado de São Paulo foram revogadas por força do Provimento n.º 750/2001, não há que se cogitar de presunção de legitimi
dade de um ato revogado.

 

 

Quarto: A Resolução n.º 12/04, do Tribunal de Justiça fluminense, uma vez que outorga as novas delegações sob critério de bairros, e não freguesias, fere direitos adquiridos dos atuais delegatários? A medida (mudança do critério) poderia ser realizada por ato administrativo?

 

                                Sim. Isto porque a nova sistemática de delimitação geográfica importou, na prática, em revogação das delegações então existentes. Assim, por se tratar de funções exercidas em caráter privado, conquanto por delegação do Poder Público, haveriam que ser respeitados os direitos adquiridos do delegatários, o que se extrai do regime da Lei federal n.º 8.935/94. Ademais, tal providência somente seria admissível com a observância do princípio da reserva de lei, jamais mediante ato administrativo.

 

                                S.m.j.

                                É o parecer.

 

                                Curitiba, Setembro de 2004.

 

CLÈMERSON MERLIN CLÈVE

Professor Doutor em Direito Constitucional

Titular da UFPr e da UniBrasil

Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado