Notícias

Parecer – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao STF em nome da Anoreg-BR

06-05-2016

Por Romeu Felipe Bacellar Filho, Professor Titular da PUC-PR e da UNFPR, Doutor em Direito do Estado. Advogado

“Dizer-se, a esta altura, que a passagem de um para outro cargo da mesma carreira somente é possível pela via do concurso público á afastar as perspectivas do servidor quando do ingresso no serviço público, esvaziando-se o significado do artigo 39 da Constituição Federal no que, ao prever a adoção do regime jurídico único, alude ao implemento do plano de carreira.” (MARCO AURÉLIO DE MELLO, Ministro do STF)

O SINOREG/SP solicita, o que muito nos honra, a emissão de parecer envolvendo o ajuizamento de Argüição Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal em nome da ANOREG/BR.

Diante da urgência da consulta, cumpre desenvolver uma exposição discursiva capaz de dar conta de quesitos que seriam presuntivamente formulados. De qualquer modo, a manifestação é abreviada e objetiva em atenção à circunstância antes referida.

A ANOREG/BR, na qualidade de entidade representativa da Classe de Notários e Registradores em todo o Brasil, promovendo-lhes a união em defesa de direitos, prerrogativas e interesses legítimos e representando-os em juízo ou fora dele, em qualquer instância ou tribunal (art. 2º dos Estatutos Sociais – doc. anexo), sentiu-se agredida com a publicação do Provimento nº 612/98, de 25 de outubro de 1998, publicado no Diário Oficial/Poder Judiciário do Estado de São Paulo de 20.10.1998, subscrito pela cúpula do Tribunal de Justiça do Estado, no exercício de função administrativa.

O ato em questão, ao prever em seu art. 3º, combinado com o art. 6º, que os concursos de provimento e deremoção de notários e registradores dar-se-á por concurso público de provas e títulos arroga-se função legislativa, inovadora da ordem jurídica. Com efeito, a Constituição Federal em seu art. 236, após expressa menção de que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público em seu § 1º, de modo iniludível prescreve que “lei regulará as atividades” desses agentes delegados.

Na esteira do mandamento constitucional em apreço, a Lei nº 8.935, nos arts. 14 e 16 faz expressa distinção entre o provimento (concurso público) e a remoção (concurso), sendo certo que, para espancar qualquer dúvida porventura existente, o legislador federal em modificação adicionada pela Lei nº 10.506, de 9 de julho de 2002, dando nova redação ao art. 16, esclareceu, extreme de dúvida, que a remoção exige apenasconcurso e não mais submissão à prova escrita de conhecimentos. Na seqüência, o Poder Legislativo de São Paulo fez editar a Lei Estadual nº 12.227, de 11 de janeiro de 2006, dispondo sobre o tema em perfeita harmonia com a lei de regência (nº8.935/94 e alteração posterior). Esta lei, modificando substancialmente o critério até então utilizado pelo Judiciário, confirma o império da lei sobre o ato administrativo regulamentar.

Assim, de plano, objetivou a ANOREG/BR – cuja legitimidade para a propositura da argüição é indubitável – evidenciar que a sua preocupação presente e futura diz respeito, exclusivamente, à preservação da ordem jurídica que se mostra agredida com a absurda possibilidade do Conselho da Superior da Magistratura do Estado de São Paulo editar ato normativo, estigmatizado por inconstitucionalidade, e, no que respeita à presente medida, ofendendo preceito fundamental.

Alguns agentes delegados sob o pretexto de buscar a preservação do postulado constitucional da exigência do concurso público, apoiando a iniciativa do Judiciário paulista, insurgem-se contra a investidura de agentes delegados, mediante o instituto da remoção, sem concurso público, de provas e títulos, pressupondo, desautorizadamente, a ocorrência de prejuízo aos destinatários dos serviços prestados por esses agentes e, em conseqüência, ao interesse público.

Pretendem, assim, a manutenção do Provimento nº 612/98, de 25 de outubro de 1998, publicado no Diário Oficial/Poder Judiciário do Estado de São Paulo de 20.10.1998.

 Com a devida vênia, não parece que assim deva ser. Notadamente em função de manifestações bombásticas, embora sem respaldo,especificamente no tocante a servidores públicos, arrasta-se, pelo País um manancial de equívocos, reprobatórios do sistema demérito no Serviço Público. Afinal, os institutos de movimentação funcional, neste incluído o da remoção, é meio legítimo para a sedimentação da valorização do servidor público ou do agente delegado, originariamente admitido por concurso público, dentro de uma mesma carreira, valorização esta, implicitamente prevista no artigo 24 do A.D.C.T., da Constituição Federal.

Parecendo querer por fim a esse absurdo entendimento, que vem assumindo proporções inconseqüentes, pelo modo genérico com que o assunto é tratado, de que a ascensão funcional é inconstitucional, o eminente Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no Agravo de Instrumento nº 161.542-7, de Santa Catarina, discorrendo sobre o voto proferido pelo insigne Ministro Moreira Alves, na Ação de Inconstitucionalidade nº 231-RJ, assevera:

“Ocorre que no precedente citado ficou bem explícito que a necessidade de concurso diz respeito a investidura em cargo situado em carreira diversa. Ora, na espécie, conforme ficou esclarecido com a transcrição do despacho que importou no indeferimento do pedido do Agravante, pretendeu-se o acesso dentro da carreira do magistério, em virtude se haver alcançado nova habilitação profissional. Consoante salientado pelo proficiente constitucionalista e administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello, o inciso II, do artigo 37, da Carta está jungido ao provimento originário e autônomo que, tecnicamente, denomina-se nomeação , não alcança a forma de provimento derivado, tendo em vista cargos situados em uma mesma carreira, que é a revelada pelo acesso. Os extremos são condenáveis. Outrora a mercê da alusão inserta na Carta ao primeiro provimento, procedia-se ao apadrinhamento de servidores, sob o pretexto de pretender-se corrigir desvio de função. Hoje, exacerba-se mais uma vez o texto constitucional, sustentando-se a abolição do acesso, ainda que os cargos estejam compreendidos na mesma carreira. Como venho afirmando, o artigo 39 da Constituição Federal, isso para  não se potencializar o princípio implícito atinente aos servidores, encerra a adoção do estímulo à carreira e este não pode ficar restrito à simples movimentação consideradas referências ou níveis. Alcança o acesso a cargo compreendido na carreira, estimulando os servidores ao constante aperfeiçoamento.(…)” (in Diário da Justiça da União, 1º de agosto de 1.994, nº 145, Seção I, pág. 18529)

A hipótese jurisprudencial que, a rigor não teria aplicabilidade ao caso em debate serve para demonstrar que, mesmo em se tratando de servidor público, mostra-se admissível a ascensão funcional (que por vezes implica em alteração de cargo e promoção) é inadmissível a submissão dos candidatos a uma nova provação.

Desde que a primeira investidura (originária) seja levada a efeito por concurso público, as demais movimentações ocorridas na carreira, denominadas provimentos derivados dispensam a realização de submissão à prova de conhecimentos, pela circunstância, absolutamente inobjetável de que o candidato por ocasião do provimento originário já demonstrou os seus conhecimentos e aptidão para o exercício da função. Relembre-se, que os notários e registradores, eventualmente candidatos à remoção, não foram admitidos originariamente de modo arbitrário, com ofensa ao princípio da impessoalidade, ou em decorrência de práticas viciadas pelo fisiologismo ou pelo nepotismo. Ao contrário foram todos aprovados, sem favor algum, mas em virtude concurso público de provas e de provas e títulos em suas investiduras originárias.

Adilson Abreu Dallari, por exemplo, (Regime constitucional dos servidores públicos, 2a. Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 38) preleciona com todas as letras:

“Quanto ao provimento derivado de cargos escalonados em carreira também não haverá maior problema, pois é de sua natureza o provimento mediante concurso interno. Nestes casos existe uma impossibilidade lógica de realização de concurso público, mas a única forma de se atender aos princípios da isonomia e da impessoalidade é a realização de concurso interno. O que não se pode admitir é a escolha pessoal, subjetiva, livre, da mesma forma que não se pode tolerar a utilização, em caráter exclusivo, de formas automáticas, como é o caso do tempo de serviço, em que não há disputa, competição e, portanto, não há concurso”.

Por seu turno, o não menos consagrado Celso Antônio Bandeira de Mello (Regime Constitucional dos Servidores da Administração direta e indireta. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, págs.. 44/5),  anota o seguinte:

“Embora o art. 37, II, estabeleça que a investidura em cargo público depende de aprovação prévia em concurso público, obviamente está a se referir de modo exclusivo, ao provimento originário e autônomo, que tecnicamente se denomina nomeação. Isto é: ao provimento que independe de qualquer relação anterior que o eventual candidato à  investidura tenha ou haja tido com o serviço público. Isto  porque inúmeras outras formas de provimento prescindem de concurso público, pois a investidura no cargo precede alguma anterior relação  que o provido tem ou teve com o serviço público. Por isso é que não são investiduras autônomas, originárias, mas derivadas, já que promanam, derivam de situação precedente, tudo conforme exposto no Capítulo I, nº 21 a 24. É  o caso da promoção, do acesso, da transferência, da reintegração, da readmissão, da reversão e do aproveitamento, todas elas formas através das quais  alguém vem a ser investido em dado cargo público e não necessita efetuar novo concurso”.

Esta é a posição, afinal, defendida pelo Ministro Marco Aurélio Faria de Mello (ADin 231, Acórdão publicado na RDA 191:121) que, de forma lúcida, entre outros argumentos de igual importância, teve ocasião de demonstrar que:

” No entanto, ao que tudo indica, o Requerente receia a ocorrência de desvios de finalidade e, considerados os fatos condenáveis do passado, reveladores de apadrinhamentos, ataca com veemência o instituto da ascensão funcional consagrado em preceito da Carta do Estado. A ênfase emprestada aos aspectos negativos da ascensão traz à minha memória o exemplo da extirpação da doença pela morte provocada  provocada daquele que se encontre acometido. Implica o esvaziamento completo de algo que a experiência revela ser inerente ao serviço público e que até mesmo mereceu especial atenção do legislador constituinte de 1988. Refiro-me à carreira, no que prevista, como de adoção obrigatória, no âmbito da União dos Estados e dos Municípios – artigo 39.

Carreira e ascensão coabitam o mesmo teto. São irmãs siamesas. Sem a segunda não se tem a primeira,  ficando os servidores impossibilitados de alcançar cargos mais elevados, o que não conduz, com a necessidade de estimular-se o aprimoramento indispensável à prestação de bons serviços pela administração pública.”

A Constituição Federal, muito embora promova as necessárias distinções entre agentes administrativos (servidores públicos em geral) e agentes delegados (de que são espécies os notários e registradores), segue uma simetria ideal. Para ambas as figuras jurídicas erige o concurso público como forma democrática e universal de ingresso (investidura originária ou provimento inicial). O texto constitucional, a seu turno, propiciador da valorização da função pública não condena a possibilidade de movimentação na carreira, acolhendo, simetricamente, as denominadas investiduras ou provimentos derivados.

A remoção, como dito, espécie de provimento derivado, não impende a realização de concurso público de provas e títulos, tal como preceituado no Provimento atacado pela ação da ANOREG/BR. Com efeito, a Constituição Federal ao referir-se ao instituto em questão alude apenas e tão somente à concurso. E a Constituição, convenha-se não contém palavras inúteis. Se a intenção do constituinte fosse a de exigir (ou repetir) a prova de suficiência de conhecimentos, tal intenção restaria expressamente consignada.

Seria desarrazoado e profundamente injusto imaginar que, para disputar uma remoção o agente delegado interessado fosse compelido a submeter-se, de novo, a uma prova de conhecimentos, que, por vezes contém questionamentos afastados da experiência e aculturamento sedimentados na atividade notarial e de registro, privilegiando os recém saídos dos bancos das faculdades. Além disso, o pior estaria reservado para uma hipótese de reprovação. Como justificar essa circunstância perante a opinião pública? E a cordilheira de atos praticados em sua serventia, por um candidato eventualmente reprovado na prova de conhecimentos? Teriam que ser revistos? Talvez fosse cabível até uma ação popular  com base no art. 4º, inciso  I, da Lei nº 4.717/65, fundamentada na ausência de habilitação do candidato, pleiteando-se a desconstituição de sua investidura anterior.

Essa e outras circunstâncias aligeiradamente arroladas são conducentes à não aceitação do Provimento nº 612/98, de 25 de outubro de 1998, publicado no Diário Oficial/Poder Judiciário do Estado de São Paulo de 20.10.1998, subscrito pela cúpula do Tribunal de Justiça do Estado, no exercício de função administrativa, absolutamente inconstitucional e ilegal. É importante salientar, por derradeiro, que a ANOREG/BR, quando deliberou pelo ajuizamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pelos próprios desdobramentos consectários, defende uma tese que, se derrotada, contribuirá decisivamente para, num primeiro momento, turbar de modo irremediável o seio da atividade delegada e, na seqüência, instigando a discórdia na classe, fazendo prevalecer o desânimo ocasionado pela imposição de competição desarrazoada (que não leva em conta a eficiência e o mérito) e mostra-se reveladora de um horizonte sem expectativas.  Finalmente, a atitude impugnada, se exitosa,  constituir-se-ia em fator de incentivo à tomada de atitudes por outros Tribunais Estaduais do País, fulminando a valorização do agente delegado.

É a manifestação que me incumbia proferir.

Em, 15 de março de 2006.

Romeu Felipe Bacellar Filho

Professor Titular da PUC/PR

Professor da UNFPR

Doutor em Direito do Estado