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O Tempo – Dez anos após STF, Congresso não tratou de união homoafetiva
Criação de lei sobre o assunto tenderia a garantir maior segurança jurídica
Em 5 de maio de 2011, há exatos dez anos, o Supremo Tribunal Federal (STF), por 10 a 0, decidia pelo reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, em uma decisão considerada uma “virada de chave” na busca por direitos da população LGBTQIA+. De lá pra cá, porém, mesmo com a redução das desigualdades e a promoção da inclusão social, todos os esforços que asseguram esses direitos partiram do Judiciário, em especial do STF, enquanto o Legislativo não votou uma legislação sequer sobre o tema, o que, de certa forma, deixa a matéria sob risco de retrocessos, em caso de futuras mudanças de composição na Corte.
Para reforçar a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 2013, uma resolução com finalidade de proibir que cartórios vetassem o casamento ou a conversão de união estável em casamento de pessoas homoafetivas.
Nesse tempo, o número de uniões e casamentos homoafetivos cresceu no Brasil. Conforme dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), de maio de 2013 até abril de 2020, o Brasil já havia registrado mais de 52 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Segundo dados mais recentes do IBGE, 9.520 casais homoafetivos se uniram formalmente em 2018, representando um aumento de 61,7% em relação a 2017, ano em que 5.887 casais do mesmo sexo formalizaram a união.
“É importante que essas pautas sejam debatidas no Congresso, mesmo que elas não sejam aprovadas, porque elas provocam o debate dentro da sociedade civil e ajuda a criar mais consciência e a combater a LGBTfobia”, destacou David Miranda (PSOL-RJ), deputado federal e ativista.
Para o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), a possibilidade de que os direitos estejam amparados pela Constituição em legislações aprovadas pelo Congresso trazem mais segurança às pessoas detentoras das prerrogativas.
“Quando as pessoas não conhecem seus direitos ou não têm recursos para impugnar decisão ou manifestação homofóbica de membros do Judiciário ou do Ministério Público, essas decisões judiciais acabam prevalecendo, mesmo sendo contrárias ao entendimento do STF”, avaliou.
Para advogado e analista político Carlos Barbosa, uma legislação nesse sentido vai além da fixação dos direitos já adquiridos pela população.
“É também uma questão de reconhecimento identitário. A lei quando é positivada reconhece para um determinado grupo de pessoas uma série de prerrogativas e essas pessoas se sentem representadas no ordenamento jurídico”, pontuou.
No âmbito do Judiciário, para o presidente da Comissão de Direito Humanos e Minorias da Câmara, deputado Carlos Veras (PT-PE), dificilmente essa decisão sofreria retrocesso, mesmo com mudanças promovidas por novas indicações à Corte. “A matéria já se arraigou e promoveu um amplo debate. O STF não se deve deixar orientar pelas togas fundamentalistas que eventualmente venham a vestir alguns de seus integrantes nem pelos ventos conservadores que sopram das casas legislativas nos tempos atuais”, pontuou.
O professor de direito constitucional do Insper Diego Werneck também pondera, que embora, haja possibilidade em tese de reversão de qualquer decisão do Supremo, a matéria em si está fortemente ancorada e dificilmente seria revista. No entanto, o professor aponta para outras possibilidades.
“Mesmo sabendo que não consegue simplesmente reverter a decisão do Supremo, o Congresso pode testar os limites dessa unanimidade. Por exemplo, na questão da regulação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, podem criar uma lei que prevê proteção diferente. Eu acho que o STF hoje declararia inconstitucional, mas talvez uma nova maioria de ministros pode decidir diferente nos próximos anos”, explicou Wernerck.
Entendimento semelhante ao do professor de Teoria do Direito da UFMG Thomas Bustamante. Ele também enxerga maior possibilidade de retrocesso por outros caminhos que não pelo do STF.
“Acho que esses direitos podem retroceder por meio, por exemplo, de campanhas de promotores e policiais federeais conservadores para iniciar uma série de processos contra esses direitos, ou por decretos do governo federal ou legislações do Congresso supostamente regulamentando esses direitos, mas de uma forma contrária a determinação vigente”, destaca Bustamante.
Força das bancadas conservadoras impede o avanço das pautas
Desde a aprovação pelo STF do casamento entre pessoas do mesmo sexo, poucas foram as tentativas do Congresso em se votar projetos que falassem sobre os direitos da comunidade LGBTQIA+, sendo que, em alguns deles, o objetivo era reduzir esses direitos.
É o caso do Projeto de Lei Complementar 6.583/2013, que ainda não foi votado, e que busca prever o conceito de família como sendo apenas o reconhecido textualmente na Constituição (entre homem e mulher). O projeto aguarda deliberação do recurso na mesa diretora da Câmara dos Deputados.
Segundo o parlamentar David Miranda, com a atual configuração do Congresso, pautas que visam o direito à população LGBTQIA+ encontram barreiras até mesmo para serem postas em discussão. “Temos (no Congresso) um projeto ultraconservador, haja vista que nossas conquistas nos últimos dez anos não se deram na Casa do Povo e no STF, como casamento igualitário, criminalização da LBTfobia”, destacou.
O deputado federal Carlos Veras concorda com Miranda sobre a força da bancada conservadora no Congresso. O parlamentar destaca que a chamada bancada progressista cumpre o papel de colocar as pautas no momento certo “para não causar danos às causas que já avançaram.” Ele destaca alguns projetos sobre o tema em tramitação na Câmara.
“Destaco o PL 5.423/2020, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT/RS), que acrescenta o Artigo 60-A à Lei nº 6.015/ 1973, visando a garantir o registro público de dupla maternidade ou paternidade aos casais homoafetivos, que tiverem filhos e dá outras providências. Também merece destaque o PL 7.582/14, que relatei e conseguimos aprovar na CDHM, que tipifica os crimes de LGBTFobia”.
Já para o deputado mineiro Paulo Abi-Ackel (PSDB), “a radicalização política atual do Congresso poderia prejudicar a pauta”
“É preciso considerar também que esse tema merece ser discutido em um ambiente não radicalizado politicamente. E nesse momento há um extremismo exacerbado”, pontua.
Do lado da bancada conservadora, o deputado bolsonarista Cabo Junio do Amaral (PSL) critica a decisão do STF, pois segundo ele, feriu a autonomia do Congresso.
“Não legislar também é uma forma de legislar. Então, se o Congresso não quer votar nada a respeito, já está atuando para manter o ordenamento como era. Pouco me importa a decisão em si, mas como ela foi decidida e por quem ela foi decidida”, pontuou o parlamentar mineiro.
Falta de representativade também é barreira
A falta de representatividade também prejudica o andamento das pautas no Congresso, conforme destaca o deputado David Miranda. Para ele, mesmo no campo da esquerda a pauta não é levada com tanto afinco por parlamentares heterossexuais. “Quando morre um dos nossos e é levado em rede nacional, os aliados falam, assinam cartas, mas quando tem que ir lá brigar para os projetos entrarem em pauta para a gente conseguir debater eles não fazem”, destacou.
“Até na política utilizam dos nossos corpos, da nossa forma de amar para ter palanque, mas quando chegam nos lugares de poder, se não são LGBTQIA+, não lutam pela causa, não reivindicam esse espaço para passarmos leis nesse sentido”, completou.
Nesse sentido, ele destaca a necessidade de se aumentar a gama de parlamentares LGBTQIA+ no Congresso. “Só com quem sente na pele o que é a LGBTfobia, que mata, que expulsa as pessoas de casa, nesses espaços de poderes defende essas pautas”, completa.
Fonte: O Tempo