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O herdeiro ilegal – por Leandro Reinaldo da Cunha
Uma afirmação constante em meus estudos, escritos e palestras é que é impossível se pensar em qualquer questão que envolva a vida de um ser humano em que um elemento vinculado à sexualidade não esteja, direta ou indiretamente, associado, podendo se fazer presente até mesmo antes do nascimento, com a definição de enxoval e nome do bebê1.
A sexualidade, “compreendida como uma ideia ampla e abrangente que se refere a toda sorte de manifestação vinculada ao sexo, em concepção que se espraia desde as características física do indivíduo até a percepção quanto ao seu gênero e destinação de atração sexual”2, está presente em um amplo espectro de direitos, impondo a necessidade de que todos venham a se apoderar dos conceitos que a circundam.
Contudo, por ser algo que faz parte da vida de todas as pessoas, muitas vezes acaba recebendo menos atenção do que seria necessário, inserindo-se em um perigoso campo no qual muitos sentem que não precisam de qualquer conhecimento específico, bastando aquilo que assimilou durante toda a sua história.
Esse menosprezo por algo que pode ter desdobramentos tecnicamente tão relevantes, acaba fazendo com que algumas situações sejam manifestamente ignoradas, permitindo que se estabeleça uma insegurança jurídica que se origina de uma falta de atenção a aspectos científicos consolidados.
É parte integrante da tradição jurídica, seja na doutrina ou na elaboração de normas, uma repetição de conceitos sem muito senso crítico, ignorando muitas vezes questões plenamente conhecidas já de muito tempo, o que deságua em situações teratológicas3.
No presente texto trarei um fato inusitado que tem relação com a sexualidade de uma forma muito mais primal do que os parâmetros que normalmente norteiam essa coluna. E a mera leitura atenta da legislação vigente bastaria para se perceber a perigosa lacuna existente.
Desde meados do século passado existe uma compreensão cientifica sólida de que há um lapso temporal entre a prática do ato sexual e a concepção do ser humano, de sorte que hoje há um entendimento firmado de que pode se passar ao menos 5 dias entre uma relação sexual e uma gravidez dela decorrente.
Sob uma perspectiva jurídica essa informação mostra-se relevante segundo o preceito de que quando se dá a nidação é que se tem a figura do nascituro, ou seja, no momento em que ocorrer a implantação do óvulo fecundado na parede do útero é que se entenderá que existe uma “pessoa em potencial”.
Nos termos dispostos no art. 2º do CC, a partir do momento em que essa pessoa for considerada concebida será a ela garantidos direitos, desde que venha a nascer com vida. A compreensão da condição de nascituro é uma das primeiras informações apresentadas aos estudantes de direito na faculdade, de forma que são introduzidos no complexo universo das relações biojurídicas tão logo começam a aprender Direito Civil e quase nunca se dão conta disso.
No entanto, após esse contato precoce com essa questão que impõe a análise de elementos das ciências biológicas associados a aspectos jurídicos, o tema apenas retorna para a esfera de atenção dos estudantes no final do curso, quando passam a estudar Direito das sucessões, salvo as raras hipóteses em que tem contato com a figura da doação em favor de nascituro (art. 542 do CC).
Em sede de sucessão, retoma-se a compreensão do que venha a ser o nascituro para se afirmar, com base no art. 1.798 do CC, que “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.
Dessa forma, a conclusão que se apresenta é que se o nascituro estiver na linha sucessória do falecido ele haverá de ser entendido como herdeiro, desde que venha a nascer com vida. O exemplo para fechar com chave de ouro a explicação do dispositivo legal é: “Se a mulher estiver grávida e o pai da criança vier a falecer, o bebê tem direito à herança caso venha nascer com vida”.
Hermenêutica básica.
Contudo existe uma questão científica elementar que pode gerar um enorme problema prático: não existem meios técnicos a afirmar com precisão o exato momento em que se deu a tal nidação, de sorte que não se sabe exatamente em que momento se deixa de ser um óvulo fecundado e passa-se a um nascituro. E a distinção entre uma coisa e outra é o que define se há ou não direitos sucessórios.
Acredito que a construção do texto já tenha levado o leitor à questão que pretendo trabalhar. Mas para não correr qualquer risco, é melhor expô-la expressamente: Se o sujeito vier a falecer logo após a relação sexual não haveria nidação, ato contínuo, não teria nascituro e, portanto, aquela pessoa não teria vocação hereditária.
Por mais que possa parecer uma situação de difícil caracterização prática, basta se considerar que um estudo alemão que analisou 32 mil mortes súbitas, num período de 33 anos, constatou que 0,2% dos casos se deu durante a atividade sexual, vitimando, em sua absoluta maioria, homens (92,6% dos casos)4.
Contudo sequer há a necessidade de que tenha acontecido algo tão específico, bastando que esse sujeito tenha falecido na janela temporal entre a prática do ato sexual e a nidação que, como exposto, pode ser consideravelmente ampla. Basta que se esteja no âmbito do possível para que seja necessário se ponderar a sua ocorrência.
Note que aqui não se está tecendo qualquer tipo de discussão acerca da filiação, a qual pode ser presumida caso o falecido seja casado com a mulher que deu a luz à criança (art. 1.597 do CC). E mesmo que não incida as previsões legais de presunção, um simples exame de DNA seria o suficiente para estabelecer a relação de parentesco entre o falecido e seu filho.
Contudo estamos diante de uma situação delicada e que pode trazer consequências jurídicas bastante sérias. Mesmo que seja, inquestionavelmente, filho do falecido não possui vocação hereditária, já que não estava concebido quando da abertura da sucessão. Afirmar que o filho do falecido não teria direito à herança ofende a compreensão ordinária que orienta o direito das sucessões, especialmente em se considerando que não há aqui qualquer menção a hipóteses de exclusão do herdeiro (indignidade ou deserdação).
Tal tema ganhou muita atenção a partir das técnicas de reprodução humana assistida que geram a possibilidade de uma inseminação artificial post mortem5, exigindo uma atenção daqueles que lidam com essa área do direito.
Desde a CF/88 é possível se encontrar uma solução para tal conflito, ante a premissa existente no art. 227, § 6º, que veda a existência de distinção entre filhos. Com isso pode-se asseverar que, ainda que o CC tenha deixado uma lacuna em que um filho não teria direito à herança do pai, a CF/88 afasta o risco de que isso venha a ocorrer, ante a uma interpretação sistemática, lastreada na necessidade de que a legislação infraconstitucional com ela não conflite.
Porém a solução baseada na CF/88 não consegue resolver outras situações idênticas em que não se esteja a discutir sobre a herança do pai daquele sujeito, como no caso em que o autor da herança seja um outro parente.
Para elucidar, considere que uma determinada pessoa venha a falecer sem deixar descendentes, ascendentes ou cônjuge/companheiro, o que faria com que sua herança fosse destinada a seus colaterais. Imagine que, nessa circunstância, o sujeito tivesse como único parente um irmão (parentesco de 2º grau) que faleceu um dia antes do seu passamento, cuja esposa venha a descobrir que está grávida, decorrente de uma relação havida com seu cônjuge na noite anterior à sua morte.
Evidentemente que será possível se demonstrar que essa criança é filha do irmão do autor da herança (sobrinha do morto, portanto), contudo sendo demonstrado que a relação sexual que culminou na gravidez ocorreu anteriormente à morte, constata-se que esse sobrinho não era um nascituro quando da abertura da sucessão de seu tio, o que retiraria dele a vocação hereditária.
Valendo-me de uma “neurose de clareza” similar àquela que sempre expressa o meu colega de Universidade Federal da Bahia Pablo Stolze Gagliano, coloco a hipótese de forma ilustrativa:
- Antônio falece um dia depois de seu irmão Benedito;
- Benedito era casado com Carla;
- Após o falecimento de Benedito, Carla descobre que engravidou da relação sexual que teve com Benedito ocorrida na noite anterior à morte dele.
- Carla dá a luz a Denise, sua filha com Benedito.
- Denise é a única parente viva que Antônio possui
No exemplo aqui apresentado Denise não teria direito à herança e todo o patrimônio de Antônio seria direcionado ao Poder Público, pois configuraria uma hipótese de herança jacente que, após a vacância, passaria a incorporar o Erário.
Importante se considerar que no caso da sobrinha do falecido não é possível valer-se da previsão constitucional do art. 227, § 6º para que ela venha suceder o de cujus, impondo-se a simples aplicação do disposto no art. 1.789 do CC que estabelece a vocação hereditária.
No entanto, na prática, desconheço a existência de um processo em que se tenha discutido a falta de vocação hereditária desse sobrinho. Provavelmente a ele será destinada a herança do falecido. Pode-se pensar em inúmeras outras circunstâncias similares nas quais é bem plausível que sua condição de herdeiro não seria questionada, como, por exemplo, quando estivesse concorrendo com outros sobrinhos do falecido ou como detentor de direito precedente sobre outros parentes colaterais de 3º (tios) ou 4º graus (primo, tio-avô ou sobrinho-neto).
Coerente que o legislador ao elaborar o CC de 1916 não tivesse como considerar tal hipótese em razão do estado da arte relativo às questões atinentes à reprodução humana naquela época, contudo já não se pode dizer o mesmo com relação ao texto atualmente vigente, ainda que seja um projeto dos anos 1970, mas cuja vigência se inicia nesse século.
Preocupante constatar que nem mesmo o atual projeto de reforma do CC em trâmite se atentou ao tema, conferindo ao art. 1.798 redação que apenas se atém às hipóteses de inseminação artificial post mortem, ainda que se possa tentar resolver o problema aqui exposto ante a uma interpretação ampliativa do disposto no § 1º proposto, que determina que “Aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até cinco anos a contar dessa data, é reconhecido direito sucessório”.
Contudo a expressão “gerados” que consta do referido parágrafo está associada a “gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem” que consta do caput, revelando que o lapso temporal entre a relação sexual e a nidação não estava no foco do ajuste proposto pela reforma.
A inquietação que procuro compartilhar no presente texto é que é possível que um parente do falecido possa ser tido como um herdeiro sem ser, configurando-se como um “herdeiro ilegal” que apesar de ser um parente do autor da herança não possui direitos sucessórios por questão de horas ou dias, por não poder ser considerado como nascituro quando da abertura da sucessão, mas que provavelmente acabará recebendo a herança por não se ter a devida atenção aos preceitos legais previstos.
Se esse sobrinho nascer dentro de um período em que se tenha por “plausível” que sua mãe já estivesse grávida quando do falecimento do tio, dificilmente se aventará quanto a sua vocação hereditária, mormente por se tratar de um colateral do falecido que consta do conjunto de herdeiros previstos no art. 1.829 do CC.
De outra sorte, se ele nascer 1 ano após a morte do tio, ninguém cogitará a possibilidade de que ele seja seu herdeiro.
Assim o que questiono é: na primeira hipótese não se discutirá a vocação hereditária desse indivíduo por entender que ele tem efetivamente direitos sucessórios ou por não ter ciência da vedação que o apartaria da herança? Se a compreensão é a de que ele teria direito à herança, qual seria o fundamento legal?
Ainda que essa seja uma situação hipotética extrema, na qual é necessária a concomitância de dois falecimentos próximos (a), a ausência de herdeiros necessários (b), a existência de um parente que por pouco tempo não poderia ser considerado um nascituro quando da abertura da sucessão (c), ela apresenta um fundo técnico bastante relevante e que pode mudar todo o curso de uma sucessão. E tudo isso por uma questão de caráter científico que aparentemente segue passando ao largo da apreciação do legislador.
Mas o cerne de tudo está, como bastante recorrente, na falta de conhecimento de uma premissa científica atrelada a elementos associados à reprodução humana que, obviamente, tem lastro na sexualidade.
Aqui a leniência legislativa6 expõe mais uma das suas facetas, com uma legislação que não é atualizada considerando o conhecimento cientifico existente, conferindo uma insegurança jurídica que nasce do simples fato de não se atentar àquilo que já está demonstrado cientificamente, e que permite que qualquer um questione se há “justiça” em ser herdeiro o filho não concebido de seu pai, mas o sobrinho não o ser de seu tio, em uma situação fática idêntica.
E, como é sempre trazido nessa coluna, o cerne desse problema identificado está em um elemento que pode ser associado à sexualidade em seu sentido amplo. É plausível que a legislação ignore conceitos básicos sobre a reprodução humana e com isso possa ensejar a possibilidade de que se estabeleça situação que ofenda a preceitos jurídicos básicos?
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero – a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 – 321, 2021, p. 308
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I – IV, 2021.
4 Parzeller, M., Bux, R., Raschka, C. et al. Sudden cardiovascular death associated with sexual activity. Forens Sci Med Pathol 2, 109-114 (2006).https://doi.org/10.1385/FSMP:2:2:109
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS MACEDO, Andrea. Dos direitos sucessórios dos filhos havidos por reprodução humana assistida post mortem. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 2, n. 2, p. 1-18, 2023.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015.
Fonte: Migalhas