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Migalhas – Artigo: Vitória da autonomia privada no STJ: reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel – Por Bruna Duarte Leite

27-08-2021

Em 10 de agosto de 2021, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de resolução extrajudicial de compromisso de compra e venda na hipótese de exercício de direito decorrente de cláusula resolutiva expressa (art. 474 do Código Civil)1-2. No caso específico, o Superior Tribunal de Justiça entendeu ser possível a propositura de ação possessória sem a necessidade de ajuizamento prévio de ação de resolução, tendo em vista a regular constituição em mora do promissário comprador, o decurso do tempo sem o adimplemento e o exercício de direito decorrente da cláusula resolutiva expressa presente no compromisso.

A decisão inova completamente o que era, até então, o entendimento da Corte. Há anos, o Superior Tribunal de Justiça se manifesta no sentido de que, ainda que existente cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel, seria necessária a resolução por meio do Poder Judiciário3: “a jurisprudência do STJ entende que é imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. Precedentes” (AgInt no AREsp 1278577/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe 21/09/2018).

Assim, para o ajuizamento de ação de reintegração de posse pelo promitente vendedor, ele deveria, em primeiro lugar, ajuizar ação de resolução, independentemente do exercício prévio de direito de resolução decorrente de cláusula resolutiva expressa, sob pena de extinção da ação possessória por falta de interesse de agir.

Já tivemos a oportunidade de nos manifestar a respeito do tema, criticando o entendimento, tanto jurisprudencial quanto doutrinário4, no sentido de que, no ordenamento jurídico brasileiro, não seria possível a resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel5. Notadamente, tal entendimento esvazia por completo a eficácia da cláusula resolutiva expressa nesse contrato, cuja legislação específica apenas impõe a necessidade de interpelação para constituição em mora (mora ex persona)6, e não a vedação de resolução extrajudicial do compromisso7. Conforme pontua de maneira precisa Pontes de Miranda, a constituição em mora e a resolução consistem em “momentos inconfundíveis“8. Nesse sentido, ainda que a lei imponha o ônus de constituir em mora o promissário comprador que não paga o preço, isso não impede que o promitente vendedor, após a constituição em mora e verificado o decurso do prazo para sua purga, exerça o direito de resolução extrajudicialmente, caso se valha de cláusula resolutiva expressa.

Embora nunca tenha havido proibição legal para que o compromisso de compra e venda de imóvel pudesse ser resolvido extrajudicialmente, por manejo da cláusula resolutiva expressa, o próprio legislador buscou meios de deixar essa possibilidade ainda mais clara, notadamente em razão de consolidado entendimento, tanto dos tribunais quanto da doutrina, em sentido contrário. A lei 13.097/2015 alterou o Decreto-lei 745/69, que dispõe sobre a mora do promissário comprador nos compromissos de compra e venda de imóvel não loteado, inserindo a seguinte previsão (art. 1º, parágrafo único): “Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora“.

Buscou-se, com a alteração legal, atender “às exigências de celeridade do mercado imobiliário“9, por meio da redução do dispêndio de tempo e de recursos para a obtenção de provimento jurisdicional declaratório ou constitutivo da resolução, permitindo – nos termos do que já previa o art. 474 do Código Civil – a resolução extrajudicial do compromisso. No entanto, mesmo após a mudança legislativa, ainda havia resistência ao reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda10.

O recente posicionamento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o credor lesado pelo inadimplemento não necessita obter judicialmente a prévia resolução judicial do compromisso para reaver a posse de seu imóvel é, assim, importante conquista para o direito privado. O reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda dá maior autonomia às partes, que podem, por si próprias, obter a pacificação dos seus conflitos sem necessidade de provimento jurisdicional.

Conforme bem apontou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “a vantagem da estipulação expressa é que, ocorrendo a hipótese específica prevista no ajuste, o efeito resolutório da relação negocial disfuncional subsistirá independentemente de manifestação judicial, sendo o procedimento para o rompimento do vínculo mais rápido e simples, em prestígio à autonomia privada e às soluções já previstas pelas próprias partes para solução dos percalços negociais“.

Cumpre salientar, por fim, que o reconhecimento da eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não consiste em impedimento, ao promissário comprador, de acesso ao Judiciário. Conforme apontado pelo Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer a eficácia da cláusula nesse contrato: “em hipóteses excepcionais, quando sobressaírem motivos plausíveis e justificáveis para a não resolução do contrato, sempre poderá a parte devedor socorrer-se da via judicial a fim de alcançar a declaração de manutenção do ajuste (…)“.

Observa-se, portanto, que a decisão da Quarta Turma transfere ao promissário comprador o ônus de demonstrar situação excepcional que impede o exercício do direito de resolução extrajudicial, mas não impossibilita seu exercício de direito de defesa. É o caso, por exemplo, de pedido de concessão de efeito suspensivo em agravo de instrumento contra decisão que determinar a reintegração na posse, ou mesmo de ação autônoma visando à preservação do contrato após o recebimento de notificação extrajudicial do promitente vendedor para resolver o compromisso.

Caberá à jurisprudência e à doutrina, agora, contribuir para deixar claros os parâmetros para aferir quais seriam essas “hipóteses excepcionais” que obstariam o exercício do direito de resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel, a fim de conferir a segurança jurídica necessária no mercado imobiliário e de consumo.

___________

1 Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial.

2 Informativo de jurisprudência n. 0704, disponível aqui. Acesso em 17/08/2021.

3 REsp 204.246/MG, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 24/2/2003; REsp 620.787/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/04/2009, DJe 15/06/2009; AgInt no AREsp 1278577/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe 21/09/2018.

4 Azevedo Jr., José Osório de. Compromisso de compra e venda de imóvel, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 150/152 e 178/179; Rizzardo, Arnaldo. Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano: leis 6.766/79 e 9.785/99. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141; Venosa, Sílvio de Salvo. Compromisso de compra e venda com eficácia real. Direito do promitente comprador. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. ano 1. n. 1. Porto Alegre. Julho/agosto de 2004, p. 89.

5 Disponível aqui; Leite, Bruna Duarte. A eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não loteado à luz do decreto-lei 745-69. In: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 3. Dez/2019. pp. 39/64.

Lei 6.766/79: Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor. Decreto-lei 745/69: Art. 1º  Nos contratos a que se refere o art. 22 do decreto-lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação.

7 É  o que entende Aline de Miranda Valverde Terra: “Posto a operatividade da cláusula resolutiva expressa seja amplamente reconhecida pela jurisprudência, quando a demanda versa sobre promessa de compra e venda de imóveis, o cenário muda, e parte das decisões exige que a resolução se processe judicialmente.3 Todavia, não parece haver, nesses casos, fundamento jurídico que justifique o afastamento do regime legal da cláusula resolutiva expressa. Embora se reconheça que semelhantes contratações envolvem, muitas vezes, especial interesse do promitente comprador – aquisição da casa própria -, revestindo-se de relevância social justificadora da intervenção protetiva do Estado, é preciso considerar, como antes sublinhado, que a própria lei já flexibilizou a disciplina do Código Civil ao exigir a notificação do promitente comprador para constituição em mora, mesmo que do contrato conste termo para adimplemento. Todavia, a única peculiaridade que referidas leis impõem é a notificação para constituição em mora, após a qual, não havendo pagamento e presente a cláusula resolutiva expressa, a resolução se opera extrajudicialmente”. Disponível aqui.

8 Tratado de Direito Privado, t. XIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, pp. 158/159.

9 Leite, Bruna Duarte. A eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda de imóvel não loteado à luz do Decreto-lei 745-69. In: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 3. Dez/2019. pp. 39/64, p. 53.

10 Em agravo de instrumento julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o desembargador relator reconheceu a existência da alteração legal, mas afirmou ainda sim ser necessária a declaração judicial da resolução, com base nos princípios do contraditório e ampla defesa. Cf.: TJSP, AI no 2207849-49.2016.8.26.0000, 8a Câm. Direito Privado, r. Des. Silvério da Silva, j. 5.12.2016. Apesar da resistência, foi possível observar a alteração de entendimento em alguns julgados o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reconhecendo a eficácia da cláusula resolutiva expressa no compromisso de compra e venda, a saber: TJSP, AI no 2079575-67.2016.8.26.0000, 1a Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 6.7.2016; TJSP, AI n. 2146861-62.2016.8.26.0000, 1ª Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 13.12.2016; TJSP, AI no 20218665-21.2018.8.26.0000, 1a Câm. Direito Privado, r. Des. Rui Cascaldi, j. 10.05.2018.

*Bruna Duarte Leite é bacharel em Direito e mestranda em Direito Civil pela USP. Sócia do escritório Kairalla Advogados.

Fonte: Migalhas