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Migalhas – Artigo: Transferência do direito de construir de imóveis tombados em São Paulo – Por Pierre Moreau
A proteção constitucional conferida ao direito de propriedade admite limitações apresentadas pelo Estado, especialmente quando confrontada com outras garantias da carta política, como ocorre no caso da função social da propriedade e da proteção do patrimônio histórico e cultural (artigos 5º, XXIII, e 216, §1º, da Constituição Federal, de 1988 – “CF-1988”).
No entanto, dado os primados sobre os quais o próprio Estado de Direito se assenta, e diante de comandos como os da eficiência e moralidade da administração e da ordem econômica (artigos 37 e 170), cabe aos entes federativos implementar mecanismos que mitiguem as limitações ao direito de propriedade, o que é de competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (artigo 24, VII) e dos municípios, com relação ao patrimônio histórico-cultural local (artigo 30, IX).
Assim ocorre com a possibilidade de “transferência do direito de construir” oriundos de imóveis tombados, instrumento que será abordado nas breves linhas a seguir.
No caso do Município de São Paulo/SP, diversos são os programas de ordenação do uso do solo urbano e das investidas do poder público para regular, limitar e incentivar a ocupação das diversas áreas da cidade. No caso das regiões centrais, que reúnem diversos imóveis de interesse histórico e cultural, cita-se a “Operação Urbana Centro” (vigente) e o “PIU Central” (proposto), no âmbito dos quais se estabelece a possibilidade de utilização em outras regiões da cidade das declarações de transferência do direito de construir oriundas dessas regiões centrais do Município.
Lembro-me que já desde a década de 1970, o Município de São Paulo vinha utilizando esse instrumento da “Transferência do Direito de Construir” (“TDC”) para financiar a política de preservação do patrimônio histórico e cultural do aparelho urbano.
Em relação à região central da cidade, tal instrumento já vinha previsto no âmbito da “Operação Urbana Centro (OUC)”, que permitia a transferência do potencial construtivo de imóveis tombados poderia se dar em benefício de imóveis situados dentro ou fora da sua área (arts. 6º e 7º). Basicamente, o mecanismo estabelece que os imóveis recipientes poderão estender o seu “coeficiente de aproveitamento” (“CA”) para além do seu valor “básico”, desde que não excedido o seu valor “máximo” (art. 7º, caput), sendo que alguns tipos de imóveis não poderiam se qualificar para receber a transferência (art. 7º, §2º).
Portanto, a transferência do potencial construtivo não impacta no aparelho urbano, pois apenas se identifica, e registra, a origem do potencial construtivo acrescido, nunca excedente ao coeficiente de aproveitamento máximo do imóvel receptor, definido pela regulamentação urbanística de regência de cada região da cidade.
Nesse cenário, encontra-se em tramitação na Câmara Municipal a revisão da Lei da OUC, que será revogada e a região central passa a ser objeto do “Projeto de Intervenção Urbana Setor Central – PIU-SCE” (PL 712/2020).
Esse projeto tem por objetivo incentivar a habitação na região central do Município de São Paulo/SP, abrangendo área equivalente a 2.089 campos de futebol, para a qual se pretende atrair 220 mil novos moradores para a região, destacando-se alguns eixos axiológicos, dentre os quais a preservação do patrimônio histórico.
O projeto final do PIU/Central foi apresentado pelo executivo municipal à Câmara de Vereadores em novembro de 2020, onde passou a tramitar como PL 712, de 2020.
O potencial construtivo adicional dos imóveis da área do PIU/Central podem ser objeto de transferência do direito de construir (“TDC”)e os imóveis receptores da TDC podem se encontrar dentro de uma área designada no “Mapa 9” do PL 712/2020 como “área de recepção da Transferência de Potencial Construtivo – TPC” (art. 57 do PL 712/2020), ou então poderão ser objeto de transferência nos termos da legislação geral municipal (atualmente, PDE/2014 e LPUOS/2016).
Como se infere do referido “Mapa 9”, trata-se de região bastante limitada, demarcada pelo perímetro formado pelas seguintes vias: Av. Duque de Caxias, R. Mauá, R. Cel. Francisco Amaro, R. Domingos Paiva, Av. Alcântara Machado, Ligação Leste-Oeste, Viaduto Jaceguai, Viaduto Júlio de Mesquita Filho, R. Caio Prado e R. Rego Freitas.
Como se pode imaginar, trata-se da região com maior concentração de imóveis tombados e de terrenos com construções já consolidadas, o que poderá, certamente, inviabilizar a utilização da transferência do direito de construir nos termos do PL 712/2020, que prevê até mesmo uma utilização bonificada, em determinadas condições (art. 59).
Consequentemente, ao conferir aos imóveis da região central um tratamento diferenciado apenas com relação à utilização da TPC na área demarcada no Mapa 9, extremamente limitada, deixa-se de incentivar a criação de novos imóveis tombados voluntariamente e pode-se até mesmo se falar na necessidade de indenização dos imóveis tombados compulsoriamente e que poderiam ser utilizados pelo setor de construção civil para reaproximar a população da região central, especialmente com a finalidade de moradia.
Por se tratar de uma área consolidada, ao não conceder incentivos adicionais à região central, é possível que, ao menos com relação aos imóveis tombados, o PIU/Central pouco acrescente ou modifique, em relação ao regramento geral, ficando limitado apenas aos imóveis menores, que poderão se beneficiar do aproveitamento bonificado. Por outro lado, com a revogação da Lei da OUC, essa região passa a ser regulamentada de um modo geral pelo PDE/2014 e LPUOS/2016.
Ora, lembrando-se o que disse no início, com relação aos primados constitucionais relativos à preservação do patrimônio histórico e cultural, no âmbito do direito urbanístico, há um nítido confronto com o direito à propriedade privada e à livre destinação do potencial construtivo, à luz do plano diretor de um determinado município.
E o tombamento compulsório é meio de desapropriação indireta que enseja indenização (justa, prévia e em dinheiro) quando impede, reduz ou limita a utilização de determinado imóvel, inclusive em detrimento da sua possível função socialmente mais interessante, em benefício da preservação do patrimônio histórico e cultural.
No caso do Município de São Paulo/SP, é histórica a utilização do mecanismo da transferência do potencial construtivo como instrumento de consecução das políticas urbanas e de preservação do patrimônio histórico e cultural em relação aos imóveis tombados e seu entorno.
A regulamentação da transferência do direito de construir no âmbito do plano diretor estratégico e do parcelamento e uso do solo é necessária para o incentivo da boa utilização dos espaços urbanos e preservação dos aparelhos urbanísticos de interesse local.
No caso da região central, objeto da Operação Urbana Central (OUC), que será revogada por novel legislação, é nobre a tentativa de bonificação no âmbito do Projeto de Lei Municipal 712/2020, que cria o Programa de Intervenção Urbana – Setor Central (PIU/Central, ou PIU/SCE), para que a utilização do potencial construtivo dentro dessa região receba um regramento mais benéfico.
Contudo, a sujeição desses benefícios a uma área extremamente limitada, e já tradicionalmente consolidada e repleta de imóveis tombados e áreas envoltórias também afetadas, certamente impedirá que a região central receba um incremento urbanístico relevante, tão necessário para que haja um efetivo e real incentivo à utilização dessa área como um macropolo de re-urbanização e re-ocupação, especialmente em relação à moradia e ocupação socialmente sustentável.
*Agradecimento especial ao advogado Renato Xavier da Silveira Rosa, que colaborou com o artigo.
Para quem se interessar mais sobre o assunto:
– Encontra-se no prelo um artigo de nossa autoria a respeito dos temas tratados acima, no qual abordamos em maior profundidade os fundamentos para a nossa opinião.
– José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro.
– Celso Antônio Bandeira de Mello, Tombamento e dever de indenização.
– Fernando José Longo Filho. Tombamento e direito de propriedade: além dos limites de limite?
– Hely Lopes Meirelles, Tombamento.
– Mariana Moreira, Transferência do direito de construir (Dissertação de Mestrado em Direito, PUC/SP, 2003).
– Flávia Taliberti Peretto, Transferência do direito de construir em São Paulo: concepção e gestão no contexto do mercado de direitos de construir (Dissertação de Mestrado, FAU/USP, 2020).
– José Carlos de Moraes Salles, A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência.
– Maria Gabriella Pavlopoulos Spaolonzi, Tombamento e a justa composição para o patrimônio cultural. Dissertação (Dissertação de Mestrado, PUC/SP, 2018).
*Pierre Moreau é sócio-fundador da Moreau | Valverde Advogados (1991) e da Casa do Saber (2004), ex conselheiro fiscal do Hospital Sírio Libanês, árbitro de diversas câmaras de arbitragem. Professor do Insper e professor visitante na Universitat St. Gallen, organizou e escreveu diversos livros como Fora da Curva II (Portfolio-Penguin, 2020), A Nova Geração de CEOs (Portfolio-Penguin, 2018), Grandes Crimes (Três Estrelas, 2017), Fora da Curva (Portfolio-Penguin, 2016), Grandes Advogados (Casa da Palavra, 2011 e O Financiamento da Seguridade Social na União Europeia e no Brasil (Quartier Latin, 2005). É mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Cursou Harvard Law School e Harvard Business School.
Fonte: Migalhas