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Migalhas – Artigo: Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária – Parte VI – Por Vitor Frederico Kümpel
Sistema brasileiro
O sistema de transmissão da propriedade imobiliária que vigora no Brasil atualmente é o do título e modo, pelo qual a transferência dos imóveis se efetiva, em regra, com o registro do contrato realizado entre as partes na serventia extrajudicial de Registro de Imóveis.
No entanto, até o início do século XX, vigorava no Brasil o sistema de transmissão do título, semelhante ao modelo português. Pelo sistema do título, a propriedade se transferia pelo próprio contrato, não sendo necessário o registro para constituí-la; o registro, na verdade, tinha outros objetivos, tais como o de dar oponibilidade erga omnes ao direito real, mas não o de efetivar sua transferência.
O sistema do título e modo somente foi instituído no país pelo Código Civil de 1916, no art. 530, I, o qual passou a determinar, justamente, que a propriedade imobiliária seria adquirida pela “transcrição do título de transferência no registro do imóvel”. Tal dispositivo equipara-se ao atual art. 1.245, caput, do Código Civil de 2002, o qual determina que a propriedade entre vivos se transfere “mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. Ambos os dispositivos deixam clara a adoção do sistema de transmissão do título e modo para a propriedade imobiliária, ao determinar expressamente que a aquisição do bem depende do registro na serventia extrajudicial.
O projeto foi proposto por C. Bevilaqua, que entendia ser o sistema do título inapropriado por sua “inconsequência”, na medida em que se atribuía ao contrato o condão de transmitir a propriedade, mas não de gerar efeitos oponíveis a terceiros, e por ir de encontro com a característica do próprio direito real que seria, justamente, a oponibilidade erga omnes1.
De certo modo, concorda-se com o argumento de que não há lógica em manter um sistema em que existe uma “propriedade relativa”2. Não há sentido em criar-se uma propriedade inter partes que vale somente entre o vendedor e o comprador, desvirtuando, de fato, a característica do direito real de oponibilidade erga omes.
Essa divisão dos efeitos da propriedade pode gerar uma série de problemas e inseguranças desnecessárias, que seriam facilmente resolvidas com a adoção do princípio da tradição (propriedade só se transmite com o registro) ou, minimamente, com o estabelecimento de que seria apto a gerar tanto a oponibilidade inter partes quanto a erga omes.
A adoção do princípio da tradição, que implica no “modo” na nomenclatura do sistema, verifica-se expressamente nos arts. 1.226, 1.227, 1.245 e 1.267 do Código Civil. A propriedade da coisa móvel não se transfere, em razão de transmissão inter vivos, antes da tradição; e da coisa imóvel, antes do registro. É necessário, portanto, o modo para que se efetive a transmissão da propriedade imobiliária.
Diz-se, ainda, que o sistema é também de “título”, porque, no direito brasileiro, o fundamento jurídico ou causa de mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato3, que será, justamente, o negócio levado a registro para que se efetive a transferência do direito real. É da relação entre o contrato e o registro, inclusive, que se extrai a causalidade do sistema, ou seja, o vínculo entre o direito obrigacional e a disposição da propriedade pelo registro.
Não se encontram divergências doutrinárias quanto à adoção dos princípios da tradição e da causalidade no sistema de transmissão brasileiro. Existem controvérsias, contudo, em relação aos princípios da unidade e da separação.
Uma corrente doutrinária insiste em afirmar que o Brasil adota o princípio da separação e que existe um negócio júri-real4, que divide a manifestação de vontade das partes em duas fases, uma para criar o vínculo obrigacional e outra para autorizar a disposição da propriedade5. No entanto, não há qualquer previsão legal no Ordenamento Jurídico do país que determine a cisão dos negócios e/ou exija um acordo de vontade específico para a transmissão da propriedade.
O que deve ficar muito claro é que, mesmo que Clóvis Beviláqua tenha instituído no Brasil o princípio da tradição para equiparar o sistema brasileiro ao sistema germânico (como ele mesmo afirma em sua obra6), isso não significa que se tenha adotado o mesmo funcionamento contratual estrangeiro. A lei nacional não exige um negócio jurídico distinto destinado à transmissão da propriedade (negócio jurídico de disposição), como fazem os §§ 929 I, 873 I BGB.
Pode-se, assim, extrair que a ideia central de Clóvis Beviláqua era assemelhar o modelo de transmissão da propriedade brasileiro ao modelo germânico justamente em relação à instituição do registro como requisito para efetivar a transferência do direito real, pondo fim à cisão entre propriedade inter partes e propriedade erga omnes e fazendo com que o Registro de Imóveis desse segurança a terceiros informando a real situação de um imóvel (publicidade).
O instituto que melhor corrobora a adoção do princípio da unidade e a inexistência do negócio júri-real é o compromisso irretratável de compra e venda. Esse modelo contratual foi criado em 1937 para contornar uma crise no mercado imobiliário da época, que foi gerada, justamente, pela mudança do sistema registral brasileiro do título para o do título e modo, com a conservação do princípio da unidade7. Veja-se.
Alguns dos efeitos do contrato de compromisso de compra e venda visavam, justamente, evitar essas situações de inadimplência por parte do vendedor, estipulando a irretratabilidade do contrato, a adjudicação compulsória após o pagamento integral e a possibilidade de registro do título para gerar um direito real de aquisição oponível a terceiros.
Caso existisse o negócio júri-real no Brasil, com uma fase de constituição do vínculo obrigacional, e outra de autorização da disposição da propriedade, não seria necessário criar a figura do compromisso de compra e venda, na medida em que a escritura de compra e venda poderia ser constituída em duas fases, a primeira, inicial, estabelecendo a obrigação com o pagamento das parcelas e a segunda manifestando a vontade de transferência do bem somente quando o preço estivesse quitado.
Não se está criticando, aqui, a ideia do negócio júri-real em si e o princípio da separação. Eles são inteligentes, na medida em que desatrelam a questão econômica do pagamento da questão jurídica da transmissão da propriedade.
Deve ficar clara a ideia de que o Brasil adota em seu sistema de transmissão da propriedade o princípio da unidade, inexistindo no país o negócio júri-real, de forma que o negócio realizado entre as partes contém as disposições obrigacionais e já se embute a vontade da transferência da propriedade. A escritura pública de compra e venda brasileira, por si só, já tem efeito translativo e é apta a ingressar no Registro de Imóveis, e não há qualquer indicação legal de que seria necessário uma referência expressa à vontade de transmitir o bem.
Depreende-se, portanto, que o sistema de transmissão da propriedade brasileira é o do título e modo, regido pelos princípios da tradição, causalidade e unidade. Assim, para que ocorra a transferência de um direito real, as partes deverão fazer um único negócio prévio, que já servirá como título para a efetivação da transmissão com o registro.
Além de o Brasil ter um sistema registral, apresenta subsistemas cadastrais registrais que não dispensam o registro, tais como o rural, o de imóveis públicos, o torrens e o de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros.
A denominação “subsistema registral” se originou da existência de outras formas de assentamentos, realizados fora ou no próprio registro imobiliário, mas que não dispensam os atos praticados no ofício imobiliário, como é o caso do registro rural (INCRA) e a aquisição de imóvel rural por estrangeiro (no próprio registro de imóveis, porém, também em livro próprio).
A ideia de “registro comum” pode ser compreendida de diversas formas, dependendo fundamentalmente do que se entende por “registro especial” ou, ainda, por “subsistema registral”.
A dicotomia mais evidente que geralmente se estabelece é entre o registro comum e o chamado Sistema Torrens, espécie facultativa e excepcional de registro imobiliário, reservada exclusivamente a imóveis rurais, conforme será demonstrado no subtópico próprio.
Por esse viés, poder-se-ia entender como registro comum aquele adotado como regra da transmissão da propriedade imobiliária no direito brasileiro, com efeitos constitutivos conforme previsão expressa do art. 1.227 do Código Civil. No entanto, o registro poderá, ainda, ter eficácia meramente declaratória, não sendo o fator constituidor do direito real ou de sua transmissão nas hipóteses em que o próprio Código Civil prevê exceção à regra do art. 1.227. É o caso, por exemplo, da sucessão causa mortis (art. 1.784, do Código Civil) e da usucapião.
Adotando uma lógica mais topográfica, pode-se entender como registro comum aquele disciplinado na lei 6015/1973, ao passo que são especiais os registros disciplinados na legislação esparsa. No entanto, é possível identificar regras e procedimentos registrais específicos no bojo da própria lei 6.015/1973. Assim, por exemplo, pode-se considerar um sistema de registro especial o registro de bens rurais, na medida em que o registro destes bens contempla todo um conjunto de regras específicas, formando um verdadeiro subsistema no âmbito da lei 6.015/19738.
Seguindo essa linha, pode-se considerar também como um subsistema, o registro de bens imóveis públicos, porquanto estes bens também se submetem a regras específicas para seu ingresso no fólio registral – neste caso, dispostas em parte na legislação especial, bem como a um cadastro específico.
Outra situação cujo regramento compõe um verdadeiro subsistema no universo registral imobiliário diz respeito não exatamente ao objeto, mas sim ao sujeito da aquisição. Trata-se, com efeito, da aquisição de imóvel rural por estrangeiro, cuja disciplina parte de uma lógica própria formando um regime jurídico especial.
Percebe-se, portanto, que o caráter comum ou especial do registro pode ser avaliado em diferentes perspectivas, dando ensejo a classificações diversas. Há diversos subsistemas que podem ser identificados no sistema registral imobiliário, em função de suas especificidades jurídicas e operacionais, e da sua regulação por conjuntos de regras baseadas em pressupostos e princípios particulares.
O desafio do sistema brasileiro do século XXI é garantir de forma efetiva a tutela do tráfego (dinâmica) e a veracidade registral (estática) e, para tal, precisa se firmar no seu sistema de título e modo, diminuindo situações jurídicas nas quais a propriedade está desatrelada do registro. Para tal desiderato, é imperiosa a revogação dos dispositivos que admitem usucapião extratabular (necessário aguardar-se o período moratório), tornando compulsória a regularização fundiária urbana e rural e exigindo o registro de alienações judiciais, de inventários e partilhas, entre outras medidas.
Referências:
Beviláqua, Clóvis, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941.
Brandelli, Leonardo, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016.
Kümpel, Vitor Frederico – Sóller, Natália, Lei do Distrato – Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020].
Medina, Francisco Elmídio Sabadin dos Santos Talaveira, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro – uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
PIETREK, Marietta, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015.
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.
Notas:
1 C. Beviláqua, Direito das Coisas, vol. I, Rio de Janeiro, Freitas de Bastos, 1941, p. 145.
2 Termo proposto por F. E. S. Medina, Compra e Venda de Coisa Incerta no Direito Civil Brasileiro – uma análise do dever do devedor no Código Civil de 2002, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 121.
3 M. Pietrek, Konsens über Tradition? Eine Studie zur Eigentumsübertragung in Brasilien, Deutschland und Portugal, Tübingen, Mohr Siebeck, 2015, pp. 43 e ss; F. E. S. Medina, Compra cit., pp. 128 e ss.
4 Como já explanado, não se deve confundir o “contrato júri-real” ou “contrato de direito real” com o “contrato real”. O primeiro refere-se, justamente, à existência de duas fases contratuais, uma obrigacional e outra real para a transmissão da propriedade. Já o segundo trata-se dos contratos cuja formação depende da entrega de um bem, como o mútuo, comodato e depósito. No mesmo sentido é o recorte F. E. S. Medina, Compra cit., p. 123, nota 80.
5 Nesse sentido é o posicionamento de L. Brandelli, Registro de Imóveis e Eficácia Material, Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 58 e de F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. XI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 418.
6 C. Beviláqua, Direito cit., vol. I, p. 147.
7 Cf. V. F. Kümpel – N. Sóller, Lei do Distrato – Considerações históricas, in Migalhas, 02-04-2019, disponível aqui [21.01.2020].
8 De fato, conforme observar-se-á no subtópico seguinte, o Registro de Imóveis Rurais contempla não apenas regras registrais específicas, que influem inclusive na forma de identificação destes imóveis, como também abrange um sistema cadastral próprio.
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*Vitor Frederico Kümpel: Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1991), doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (2003) e é Livre-Docente em Direito Notarial e Registral pela Universidade de São Paulo (2020). Atualmente é juiz de direito titular II – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Fonte: Migalhas