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Migalhas – Artigo: Série – qual a natureza jurídica do direito real de laje? – Por Danilo Pacheco, Rafael Cimino e Victor Hugo Silva
Nossa opinião conclusiva sobre a natureza jurídica do direito real de laje
A estruturação legal do direito de laje deixa dúvidas ao estudioso sobre a sua natureza, porque é possível a apresentação de sólidos argumentos favoráveis tanto à corrente de que se trata de direito real sobre coisa própria como à corrente de que se trata de direito real sobre coisa alheia.
Favoravelmente à tese do direito de laje como direito real sobre coisa alheia, pode-se sustentar que falta autonomia, independência para a constituição do direito de laje, pois ele sempre se origina da vontade do proprietário da construção-base (vide o art. 1.510-A, que diz: “O proprietário poderá ceder…”), o que afasta o direito de laje do direito de propriedade. Por outro lado, como já visto nas publicações desta série, pode-se redarguir que esta característica, embora seja peculiar ao direito de propriedade, não lhe é essencial. Além disso, pode-se argumentar que o direito de laje recai, nos termos da lei, sobre “unidade imobiliária autônoma”, o que remente à autonomia do direito do titular da laje em relação ao direito do titular da construção-base.
Já em favor da tese do direito de laje como direito real sobre coisa própria, pode-se sustentar que, diante ausência de previsão legal em contrário, o direito de laje não se extingue pelo não uso e é perpétuo, características que o aproximam do direito de propriedade. Não obstante, como já visto, ambas as características apontadas não são exclusivas do direito de propriedade, mas a ele peculiares.
Quanto à plenitude de poderes conferidos ao titular da laje sobre a coisa, que distingue o direito de propriedade dos demais direitos reais, assim como asseverado quando da análise da natureza jurídica do direito de superfície, trata-se de critério “tropo vago e transcendente – quasi un postulato senza dimostrazione – parlale di un potere complesso, in certo senso indeterminato, omnicomprensivo”, mesmo que “questo tipo di definizione” seja certamente “esatta nel senso che non specificando non corre il rischio di omissioni.”[1]
Assim, o critério, por ser demasiadamente vago e, pois, maleável para fins de definição da natureza do direito de laje, embora talvez seja, de fato, o critério distintivo do direito de propriedade em relação aos demais direitos reais, não é o mais apropriado para a qualificação do direito de laje como forma de direito de propriedade ou espécie de direito real sobre coisa alheia.
Nesse contexto, as conclusões doutrinárias sobre a natureza jurídica do direito de laje parecem ser determinadas em grande parte pela hermenêutica que se dá à própria disciplina legal dos direitos reais.
Com efeito, se se apega a uma visão legalista, isto é, voltada estritamente a estruturação e sistematização legal dada ao direito de laje, parece-nos que a topologia do direito de laje no sistema do Código Civil de 2002 não deixa margens para dúvida para a qualificação do instituto como um direito real sobre coisa alheia, autônomo.
Basta notar, nesse sentido – e como acima longamente exposto -, que o art. 1.225 arrola o direito de propriedade e o direito de laje como direitos reais distintos, consoante seus incisos I (direito de propriedade) e XIII (direito de laje).
Por outro lado, se se apega a uma interpretação voltada à operabilidade do direito de laje, a conclusão é diversa. Por exemplo, a mens legis da lei 13.465/17, influenciada pela regularização fundiária de favelas (como exposto pela própria Exposição de Motivos da lei 13.465/17), parece consistir na atribuição do direito de propriedade aos titulares da laje, conforme asseverado por diversos autores – inclusive por defensores da natureza de direito real sobre coisa alheia.
Parece-nos que a interpretação mais adequada da legislação no âmbito dos direitos reais em geral (e no âmbito do direito de laje em específico), é aquela voltada à estruturação e à sistematização legal do direito real, tendo em vista que o sistema dos direitos reais é marcado pelo princípio da taxatividade e tipicidade (legalidade), sendo disciplinado por normas de ordem pública.[2] Nesse sentido, deve-se lembrar que a redefinição dos modelos dos direitos reais só pode ocorrer pela lei,[3] e que “não há outros perfis do direito de propriedade, senão aqueles que se encontram cunhados no direito positivo.”[4]
Assim, e em conformidade com outros doutrinadores, entendemos que o direito de laje tem a natureza de direito real sobre coisa alheia autônomo, na linha da sistematização dada ao instituto pela lei 13.465/17, que inseriu o direito de laje como direito real diverso do direito de propriedade no bojo do Código Civil de 2002, embora seja efetivamente marcado por um “singular animus” em seu conteúdo, equiparável ao de domínio, o que lhe concederá faculdades amplas, similares àquelas derivadas do domínio.[5]
Trata-se de direito real sobre coisa alheia autônomo, distinto do direito de superfície. De fato, o art. 1.225 não deixa margem para dúvidas ao elencar como direitos reais diversos o direito de superfície (inciso II) e o direito de laje (inciso XIII). Ademais, há nítidas diferenças na própria estrutura e disciplina jurídica de ambos os direitos reais. Por exemplo, o direito de superfície é, no direito brasileiro, obrigatoriamente temporário, enquanto que o direito de laje é perpétuo.[6]
Parece-nos que o direito de laje consiste na positivação do direito de sobreelevação no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, esta afirmação deve ser lida à luz da conclusão alcançada anteriormente nos estudos desta série, qual seja, que o direito de sobreelevação é disciplinado de maneira não-uniforme nos diversos ordenamentos estrangeiros em que consagrado. É dizer, o direito de laje consiste no direito de sobreelevação disciplinado pelo ordenamento jurídico brasileiro, contendo, pois, peculiaridades próprias e não encontradas em sistemas jurídicos estrangeiros.
Isto é, pode-se afirmar que o direito de laje consiste no direito de sobreelevação, entendido este como direito real sobre coisa alheia autônomo e distinto do direito de superfície.
Note-se que essa natureza do direito de sobreelevação, no ordenamento brasileiro, coincide com a natureza do direito de sobreelevação no ordenamento espanhol. Esta conclusão, não obstante, pouco diz a respeito sobre a disciplina jurídica do direito de laje, que, parece-nos, deve ser estudado substancialmente a partir da legislação brasileira, e apenas subsidiariamente a partir de uma análise baseada em direito comparado. Em outras palavras, a concepção do direito de laje como direito de sobreelevação autônomo do direito de superfície, nos mesmos moldes do derecho de vuelo espanhol, não autoriza, de forma alguma, a equiparação integral, pura e simples, daquele instituto a este.
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[1] BARASSI, Lodovico. Proprietá e Comproprietá. Milão: Dott. A. Giuffré Editore, 1951, p. 10-11.
[2] Em relação ao tema, escreve Edmundo Gatti sobre a abrangência das normas cogentes no âmbito dos direitos reais: “Consideramos que son de orden público, ante todo, las normas que determinan cuáles son los derechos reales y cuál es la amplitud de su contenido (tipicidad genérica) y asimismo, cuanto se refiere a la determinación de los elementos que integran la relación jurídica real y, por consiguiente, a los sujetos, el objeto y a la causa de los derechos y relaciones jurídicas reales; y en cuanto a esta última (causa), todo lo relacionado con su adquisición (modos, y, en su caso, títulos), constitución, modificación, transferencia y extinción.” (GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 116). No mesmo sentido: “As normas disciplinadoras dos direitos reais são, uniformemente, consideradas como regras cogentes, imperativas ou de ordem pública. Pode-se dize, imageticamente, que os direitos das coisas são modelados por normas de ordem pública, que recebem em grande escala – por meio do direito obrigacional – a vontade dos particulares, no sentido de poderem exercer o tráfego jurídico, mas a repele quando pretendem remodelar os institutos do direito das coisas.” (ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 113-114). Nesta obra de José Manoel de Arruda Alvim Netto, confira-se também o nº 1.4., em que o autor discorre sobre a “Natureza das normas disciplinadoras do Direito das Coisas” (Ibidem, nº 1.4., p. 36 e ss.).
[3] ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 114.
[4] ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15.
[5] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1.223. No mesmo sentido: MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90.
[6] Como já visto, a perpetuidade do direito de sobreelevação e a temporariedade do direito de superfície é, também, um dos argumentos utilizados pela doutrina espanhola autonomização do direito de sobreelevação em relação ao direito de superfície.
Autores:
Danilo Sanchez Pacheco é doutorando em Direito Civil e bacharel em Direito pela USP, e mestre em Direito Civil pela PUCSP.
Rafael Gil Cimino é mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito, especialista em Direito Notarial e Registral pela USP/Ribeirão Preto, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e 3º Tabelião de Notas e Protesto de São Vicente/SP.
Victor Hugo Cunha Silva é bacharel em Direito pela USP e mestrando em Direito pela FMU.
Fonte: Migalhas