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Migalhas – Artigo: Repercussões registrais da adoção unilateral de crianças e adolescentes – Por Gustavo Renato Fiscarelli
Segundo a lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a adoção constitui uma das formas de colocação da criança ou do adolescente em família substituta (art. 28). Ainda segundo o mesmo diploma, por ser medida excepcional e irrevogável, a opção pela adoção somente deve ser considerada após o esgotamento de recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa (arts. 19 e 39, §1º), o que denota, inegavelmente, predileção aos laços primitivos.
Independentemente da colocação em família substituta, são asseguradas a todas as crianças e adolescentes as oportunidades e facilidades a fim de lhes proporcionar, dentre outros, o desenvolvimento mental e social, sem discriminação de nascimento ou situação familiar. Além disso, é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, exemplificadamente, a efetivação dos direitos referentes à dignidade, livrando-lhes de qualquer tratamento vexatório ou constrangedor, e ao respeito, preservando-lhes a identidade psíquica e moral, além da imagem e identidade.
Ainda de forma preambular, frisa-se que a adoção pode ser bilateral ou conjunta, quando o novo vínculo de filiação estabelece-se com ambos os pais adotivos, com rompimento de todos os vínculos biológicos; ou unilateral, quando o novo vínculo de filiação estabelece-se com apenas um dos pais, mantendo-se o vínculo biológico com o outro. Verifica-se este último caso nas hipóteses em que inexiste pai registral (mãe solo) ou que, embora presentes ambos os pais registrais, um deles perde o poder familiar.
Já quanto à repercussão registral da adoção, importante destacar que, hodiernamente, ela se constitui exclusivamente por vias judiciais, não sendo mais admitido qualquer forma ou ato extrajudicial de constituição de vínculo adotivo. Uma vez concedida, a sentença de adoção, transitada em julgado, será inscrita no registro civil, cabendo ao oficial a análise e qualificação exclusivamente formal do título apresentado (mandado, sentença com força de mandado ou carta de sentença), sem qualquer consideração quanto aos aspectos e requisitos endoprocessuais.
O art. 47, §2º do ECA, por sua vez, determina que, uma vez inscrita a adoção, deverá ser cancelado o registro de nascimento original do adotado. No que diz respeito à adoção bilateral, parece-nos que a medida é correta e de rigor, vez que os vínculos biológicos são integralmente apagados da biografia do adotado, substituídos pela nova relação civil estabelecida. Entretanto, no que toca à adoção unilateral, não nos parece, salvo melhor juízo, ser esta a melhor opção diante do primado do melhor interesse do menor que deve balizar todas as suas relações. Vejamos.
De início, salutar diferenciar os atos praticados pelo oficial de registro civil das pessoas naturais, quais sejam, o registro/inscrição, a averbação e a anotação. O registro refere-se ao ato principal, lavrado em livro próprio, que documenta ato ou fato verdadeiro que diga respeito à pessoa natural. Já a averbação é ato secundário, cuja função é modificar, corrigir ou incluir informação ao ato principal (registro). Por fim, a anotação é ato secundário de remissão no ato anterior sobre novo registro ou averbação da mesma pessoa.
A lei 6.015, de 31/12/73 (Lei de Registros Públicos) trata dos aspectos registrais dos atos e fatos jurídicos a ela submetidos, como é o caso da adoção. Por ostentar o status de lei especial, seus preceitos se sobrepõem à lei geral e devem harmonizar-se quando confrontadas com legislação igualmente especial, como é o caso do ECA, em verdadeiro diálogo entre as fontes. Nesse aspecto, os arts. 29, §1º, inciso “e” e 102, item 3º da LRP, que preveem atos averbatórios de adoção, em compasso com o art. 10, inciso II da lei 10.406/02 (Código Civil), devem ser aplicados no caso de adoção unilateral de menor, com a preservação assento de nascimento original, haja vista a mantença de vínculo com um dos pais biológicos, tal como ocorre, aliás, com o ato de reconhecimento de filiação biológica ou socioafetiva.
Não se descura, no entanto, que o tema não é pacífico. Inúmeras são as corregedorias de tribunais que são silentes quanto à matéria, talvez por já entenderem suficiente a legislação para a melhor interpretação. Todavia, algumas corregedorias de justiça, como por exemplo a de São Paulo e de Minas Gerais, de forma expressa, preveem em seus códigos de normas que a adoção unilateral deve se dar por ato de averbação, com preservação do assento de nascimento primitivo (item 122.4 do Cap. XVII das Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo e art. 510, §2º do Código de Normas Extrajudiciais de Minas Gerais).
O tema também não se mostra pacífico na doutrina, o que, inclusive, ensejou a elaboração do enunciado 273 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal com o seguinte teor: “Tanto na adoção bilateral quanto na unilateral, quando não se preserva o vínculo com qualquer dos genitores originários, deverá ser averbado o cancelamento do registro originário de nascimento do adotado, lavrando-se novo registro. Sendo unilateral a adoção, e sempre que se preserve o vínculo originário com um dos genitores, deverá ser averbada a substituição do nome do pai ou mãe naturais pelo nome do pai ou mãe adotivos.”
Sob a perspectiva da instrumentalidade, a alternativa pelo não cancelamento do assento primitivo também se mostra mais eficiente e seguro. Isto, pois, quando o juízo processante determina o cancelamento e a confecção de novo registro, valendo-se de dois mandados distintos, destinados a serventias diferentes, corre-se o risco de cumprimento da ordem de novo registro sem que o anterior tenha sido cancelado, o que culmina no convívio ativo de dois registros de nascimento, gerando inúmeros transtornos ao adotado e ao sistema como um todo. De outra banda, a expedição de mandado único de averbação de adoção unilateral ao cartório detentor do assento de nascimento espanca referida insegurança ao manter sua unicidade.
Outra atecnia que se verifica nos mandados que determinam a lavratura de novo registro nos casos de adoção unilateral (e na bilateral também) é a omissão quanto ao aproveitamento dos elementos registrais fáticos do anterior registro, como por exemplo, local de nascimento, hora do nascimento, naturalidade, etc, cingindo-se a indicar os nomes do adotado, pais adotivos e avós, além dos dados do processo. Referida prática pode levar a um assentamento sem as informações “históricas” do adotado, o que não corre quando a adoção unilateral consubstancia-se por meio de averbação.
Ademais, independentemente de ser a adoção bilateral ou unilateral, referida informação sempre será protegida pelo manto do sigilo, o que implica não só restrição quanto à publicidade registral irrestrita, como no controle de legitimidade do interessado na informação. Ou seja, a manutenção do assento primitivo com a averbação da adoção unilateral em nada mitiga esta situação.
Por estas razões, o cancelamento do assento de nascimento primitivo do adotado menor deve cingir-se aos casos em que os laços com o passado sejam totalmente apagados. Por outro lado, a mantença do assento primitivo na adoção unilateral, com todas as características que lhe são próprias, resguarda a memória biográfica do menor, protege-o de futuros dissabores decorrentes de uma “novação registral” desnecessária, ao passo que permite uma saudável reconstrução de sua realidade.
*Gustavo Renato Fiscarelli é oficial de registro civil e presidente da ARPEN-BRASIL – Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais.
Fonte: Migalhas