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Migalhas – Artigo: Recuperação judicial do produtor rural – Por Gustavo Caetano Gomes

Muitos produtores rurais que vinham enfrentando dificuldades financeiras, terão, agora de forma simplificada e regulamentada, a faculdade de ingressar com a demanda da recuperação judicial, instituto que traz extrema segurança e benefícios para o empresário rural e para a economia nacional.

07-03-2022

A lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, tem por objetivo viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores.

A preservação da empresa, ao invés de sua falência, é de interesse de toda sociedade, já que aumenta a probabilidade de pagamento de seus débitos, promove a manutenção dos empregos e benéfica para a economia.

O instituto da recuperação é destinado aos empresários, ou seja, pessoa jurídica que exerce profissionalmente, com habitualidade e fim lucrativo, atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, conforme Sérgio Campinho (2017, pp. 37 e 38)1.

Com o advento da lei 14.112/20, foi positivado a recuperação do produtor rural. Quando falamos em produtores rurais, a importância de impedir a falência é extrema, já que a atividade de acordo com cálculos do Cepea – Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), em parceria com a CNA, em 2020 o agronegócio brasileiro alcançou participação de 26,6% no Produto Interno Bruto do Brasil2. O MAPA  – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento informa que o agro foi responsável por quase metade das exportações do país em 2020, com participação recorde de 48% – superávit de US$ 87,76 bilhões.3

Nos § 2º a 5º do art. 48 da lei 11.101/05, disciplina os requisitos para compro da atividade rural. A prova clássica é a inscrição na Junta Comercial por prazo superior de dois anos, conforme caput do referido artigo. Os §§ 3º, 4º e 5º ampliaram bastante a possibilidade de fazer tal prova, podendo valer-se o interessado dos documentos contábeis que são enumerados, com a exigência (§ 5º) de preenchimento das formalidades que enumera.

O professor Manuel Justino Bezerra Filho, traz ótimas reflexos sobre alguns pontos, relativos à comprovação da atividade rural e seu registro.

Pontua que “O art. 971 do CCivil fala em empresário rural que pode, se quiser, requerer sua inscrição na Junta Comercial, após o que “ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”. O art. 966 refere-se ao empresário individual e o art. 967 estabelece que é obrigatória a respectiva inscrição na Junta Comercial. Voltando ao art. 971, em sua parte final estabelece que o empresário rural, após a inscrição, “ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”. Portanto, transformou-se, pela inscrição, em empresário individual.

Quando se trata de empresário individual, a responsabilidade é ilimitada, pois não há separação patrimonial entre patrimônio pessoal e patrimônio social. É necessário considerar que o art. 971 do CC de 2002 não podia considerar a alteração trazida pela Lei 13.874/2019, que acrescentou o § 1º ao art. 1.052, prevendo que ‘A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas’. Como o art. 971 prevê inscrição na Junta Comercial, nada impede que o exercente de atividade rural requeira sua inscrição constituindo uma sociedade unipessoal, com limitação de responsabilidade ao valor do capital social.

Claro que essa matéria vai exigir bastante doutrina e jurisprudência para sua pacificação. Até porque o art. 971 só fala em equiparação ao “empresário sujeito a registro”, ou seja, o empresário individual. Mas o que se pode vislumbrar é que o legislador do art. 971 não fez a previsão de sociedade unitária, porque essa ainda não existia em 2002, só passou a existir a partir de 2019.

Outro ponto ainda chama atenção, em sentido contrário ao entendimento de possibilidade de inscrição de sociedade unipessoal. É que o § 6º do art. 49 estabeleceu que todos os créditos estão sujeitos à recuperação desde que decorram da atividade rural. Assim, se a lei ‘retroage’ para abranger os negócios anteriores, também deveria considerar que todos os bens do exercente da atividade rural devem ser abrangidos em caso de falência.

Não importa se a inscrição foi requerida como empresário rural individual ou como sociedade unipessoal, se houver convolação em falência, será declarada também a falência de qualquer uma das duas, aquela que foi admitida“.4

Continuando a lição, o Professor destaca que há um aspecto curioso no pedido de recuperação judicial por empresário rural, no que tange à comprovação do período de exercício da atividade empresarial. O art. 971 do CC/02 estabelece que o empresário que exerce atividade rural, pode requerer sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, a Junta Comercial, e que, depois de inscrito, ficará equiparado ao empresário sujeito a registro. Portanto, o empresário rural ou pessoa jurídica que exerce atividade rural, se inscrito na Junta Comercial há mais de dois anos, comprovará tal situação e terá direito ao pedido de recuperação, no que diz respeito ao preenchimento da exigência deste art. 48. Como anota Marcelo Fortes Barbosa Filho (p. 924), após feita a inscrição na Junta Comercial, “o empresário rural é aquinhoado com todos os benefícios e assume todos os deveres comuns aos empresários, tais como previstos nas normas componentes do direito comercial“. A questão torna-se curiosa porém, quando se imagina a situação do ruralista (pessoa ou sociedade simples) que exerce comprovadamente tal atividade durante vários anos, sem inscrição na Junta Comercial e que, optando e fazendo a inscrição, ajuíza pedido de recuperação judicial, antes que complete o prazo de dois anos a contar da inscrição.

Diz que o melhor entendimento é aquele que aceita a soma dos anos anteriores à inscrição, durante os quais houve comprovadamente a atividade rural de que fala o art. 971 do CC/02, para que se tenha por completado o período de dois anos. Como anotado, a razão que impede a concessão de recuperação judicial para empresário com menos de dois anos – ou seja, inabilidade tão acentuada que em tão pouco tempo leve à situação de crise a desaguar no pedido de recuperação -, aqui não ocorre. No campo da realidade fática, este empresário rural já preencheu prazo superior a dois anos no exercício da atividade, a qual não sofreu qualquer mudança no mundo real, pois apenas houve mudança na conceituação jurídica da mesma atividade, de civil para empresária, que decorreu da inscrição efetuada. Não haveria assim razão para impedir a concessão do pedido de recuperação pelo óbice do art. 48. Insista-se neste ponto que é fundamental para o exame, ou seja: a atividade já estava sendo “regularmente” exercida por prazo superior a dois anos. A inscrição na Junta Comercial não é elemento regularizador da atividade, é apenas elemento de mudança da conceituação da atividade, que era civil e passa a ser empresária. A natureza jurídica da inscrição não é constitutiva, é meramente declaratória, incidindo sobre atividade que já se configurava como regular exercício. Acresça-se ainda que o art. 48 não exige “atividade empresarial” por mais de dois anos, e sim que “exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos”. Ivo Waisberg (Revista do Advogado, pg. 89) é preciso ao anotar que esta confusão que se estabelece deve-se a razão bastante simples, pois “… no caso do empresário normal, não rural, cujo registro é tido como elemento de regularidade, a prova do exercício regular se dá pelo registro. Isto é, para os empresários cujo registro é obrigatório, a atividade sem registro seria irregular. Para os empresários cujo registro é facultativo, o momento do registro não é elemento de prova da regularidade, por isso o evidente descasamento entre o prazo de exercício da atividade e o de registro“.

Nos §§ de 6 a 9 do art. 49 da LFRJ, elenca quais os créditos sujeitos ou não à recuperação judicial do produtor rural. Destaca-se o § 6º, que estabelece que não estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que decorram de outra atividade que não seja a rural.

O § 7º estabelece que as operações de crédito rural previstas nos arts. 14 e 21 não estarão sujeitas à recuperação judicial, de tal forma que os fornecedores dos créditos poderão cobrar normalmente os valores devidos. No entanto, o § 8º limita essa não sujeição apenas para créditos que não tenham sido objeto de renegociação. Dito de outra forma, se os recursos foram objeto de renegociação antes do pedido de recuperação judicial, não estarão sujeitos à recuperação. Claro que esse é um estímulo para que o banco ou o financiador renegocie a dívida.

Não se sujeitará à recuperação judicial, os créditos relativos à dívida constituída nos 3 últimos anos anteriores ao pedido de recuperação judicial, que tenha sido contraída com a finalidade de aquisição de propriedades rural, com como as respetivas garantias, é o que prevê o § 9 do mesmo art. 49 da LFRJ.

A pessoa jurídica ruralista pode celebrar financiamento com a finalidade de aquisição de propriedade rural, evidentemente para o incremento de sua empresa. Em tais casos, normalmente a propriedade adquirida será vinculada como garantia do negócio, é o que vê da praxe do dia a dia de tais negócios. O disposto no parágrafo é claro, para fixar que o crédito decorrente deste tipo de operação não estará sujeito aos efeitos da recuperação se tiver sido celebrado nos 3 últimos anos anteriores ao pedido de recuperação. Contrario sensu, estará sujeito aos efeitos da recuperação esse crédito, se tiver sido constituído em data superior a 3 anos. Essa disposição vale também para as respectivas garantias.

Com a derrubada do veto presidencial, passou a vigorar a nova redação do art. 11 da lei 8.929/94, nos seguintes termos: “Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR – Cédula de Produto Rural com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto“.

Portanto, na recuperação judicial de produtor rural, a regra é que a garantias cedulares com liquidação física, não estarão sujeitos à recuperação caso tenha havido antecipação parcial ou integral do preço, por parte do credor garantido. Contrario sensu, se não houve ainda qualquer pagamento por parte do credor, o produtor rural estará liberado da entrega do produto. Da mesma forma, quando se tratar da chamada operação “barter”, na qual o credor financiador adianta ao produtor rural, insumos e não numerário, o crédito não estará sujeito aos efeitos da recuperação. Em tais casos, o credor terá direito de pedir a restituição dos bens que estiverem em poder do emitente ou de terceiros. Se a entrega dos bens for obstada por caso fortuito ou força maior, estará o produtor rural liberado da entrega, o que aliás ocorre, esteja ou não o produtor rural em recuperação judicial, é o que afirma o Professor Manuel Justino Bezerra Filho.

A reforma trouxe alterações para o pedido de recuperação do produtor rural, conforme acima descritos. No art. 70-A da LFRJ, abriu-se ao produtor rural a possibilidade de valer-se da recuperação judicial especial, prevista na seção V da norma, para microempresas e empresas de pequeno porte, desde que o valor da causa não exceda R$ 4.800.000,00.

Outras alterações da lei da RJ também podem ser aplicadas ao produtor. São elas:

  • A possibilidade de a empresa negociar com credores antes do pedido da recuperação judicial, tratando-se de uma fase pré-processual, o que estimula a conciliação, a mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos.
  • O aumento do prazo de parcelamento dos débitos com a União das empresas em recuperação judicial: de sete para dez anos. O que auxilia o empresário na recuperação das condições financeiras de sua empresa de forma definitiva.
  • Durante a tramitação da recuperação judicial, o juiz competente poderá, após a oitiva do comitê de credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.
  • Os bens pessoais dos devedores poderão ser usados como garantia, mediante autorização judicial.
  • A regulamentação dos empréstimos tomados pelas empresas em recuperação judicial, vez que os novos financiamentos terão preferência de pagamento entre os créditos contraídos no processo de recuperação.
  • O estímulo ao rápido recomeço do empresário falido (fresh start).

Dessa forma, muitos produtores rurais que vinham enfrentando dificuldades financeiras, terão, agora de forma simplificada e regulamentada, a faculdade de ingressar com a demanda da recuperação judicial, instituto que traz extrema segurança e benefícios para o empresário rural e para a economia nacional.

Notas

1 AMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação Judicial. Ed. Saraiva, 8ª edição, 2017.

2 https://cepea.esalq.usp.br/br/releases/pib-agro-cepea-com-avanco-de-24-3-no-ano-pib-agro-alcanca-participacao-de-26-6-no-pib-brasileiro-em-2020.aspx.

3 https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/exportacoes-do-agro-ultrapassam-a-barreira-dos-us-100-bilhoes-pela-segunda-vez

4 Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 15ª Ed. Revista dos Tribunais.

*Gustavo Caetano Gomes é advogado, sócio do escritório Caetano Gomes & Araujo Advogados, Graduação em Direito pela Universidade Paulista 2004. MBA Direito Civil e Processo Civil FGV. Falência e Recuperação Judicial-FGV.

Fonte: Migalhas