Notícias
Migalhas – Artigo: Reavaliação do PL 6.204/19: o agente de execução, a facultatividade, a impugnação e o recurso – Por Flávia Pereira Ribeiro
Em todos os Estados Democráticos de Direito, o Poder Público elege seu agente executor, que passa a exercer o múnus público com exclusividade.
O PL 6.204/19 distribuído pela Senadora Soraya Thronicke no Senado Federal propõe a desjudicialização da execução de títulos judiciais e extrajudiciais, de dívida líquida, certa e exigível, por via da delegação – art. 236 da CF. A atividade executiva pode ser delegada, por opção legislativa, de modo a mantê-la sob a esfera estatal.
Sempre se defendeu que os tabelionatos de protesto são os delegatários extrajudiciais mais bem estruturados e aptos para receber a nova demanda, mantendo-se tal posição e afastando-se as sugestões de que o advogado possa assumir tais funções, bem como que todo e qualquer delegatário possa ser agente de execução, sem observância da especialidade. Nessa linha de defesa, reporta-se aos dois artigos publicados no Portal Migalhas em parceria com Renata Cortez.1
A facultatividade e a obrigatoriedade da desjudicialização da execução civil, considerando-se que hoje está previsto a obrigatoriedade e clama-se pela facultatividade, é o contraponto mais emblemático do PL 6.204/19.
Entende-se que o PL foi feliz ao estabelecer a obrigatoriedade da execução extrajudicial, a exemplo de todos os países do mundo ocidental, onde não há coexistência de dois agentes responsáveis pelo ius imperius. Não há como o credor acionar o Estado Juiz ou o Sheriff nos Estados Unidos, o Estado Juiz ou Huissier de Justice na França, o Estado Juiz ou o GVZ na Alemanha e assim por diante. Em todos os Estados Democráticos de Direito, o Poder Público elege seu agente executor, que passa a exercer o múnus público com exclusividade.
Além disso, quando a academia sugere a facultatividade, usa como exemplos as demais desjudicializações havidas no Brasil, sendo que todas elas são consensuais e não adversariais, de modo que nunca as partes – credor e devedor – buscarão o juiz ou o agente de execução, mas somente o credor. O credor sempre terá o poder da decisão.2-3
Outra parte da academia sustenta que pudessem ser estabelecidos negócios processuais ou cláusulas compromissórias para a eleição do agente de execução – “prévio consenso entre as partes“. Com todo o respeito aos que defendem essa opção, é melhor especar que o moroso sistema judicial executivo seja mantido, com índices de efetividade na casa dos 15%, uma vez que não há consenso na execução, mas dissenso. Uma vez não cumprida a obrigação, a execução é forçada com invasão de patrimônio.4-5
Flávia Pereira Hill tece interessante comentário, esclarecendo que se deve priorizar a via extrajudicial em relação à via judicial, o que tem sido tendência. Para ela, a obrigatoriedade ou prioridade da via extrajudicial, prevista no PL, “não pode ser vista como uma novidade, nem tampouco como uma opção isolada“. Hill cita exemplos para demonstrar que, se facultativo, haveria “uma hipótese emblemática de ausência de interesse de agir” caso buscado o Poder Judiciário, como sói acontecer.6
No entanto, como método de implementação7 – fixando-se metas e fases para que a desjudicialização da execução possa ser experimentada gradualmente, ampliando-se o número de agentes de execução e diminuindo-se o número de juízos com competência jurisdicional pura cumulativa com a executiva -, a facultatividade inicial parece ser muito favorável. Mas é necessário registrar que a facultatividade deve ser provisória – e jamais permanente -, até porque, se assim não for, nunca se alcançará o esperado desafogamento do magistrado para que melhor possa realizar a sua atividade primordial de dizer o direito.
Nesse sentido é o parecer do Instituto dos Advogados do Brasil – IAB, Comissão Permanente de Direito Processual, que, por meio da indicação 078/19, elaborou parecer sobre o PL 6.204/19, cujos relatores foram Felippe Borring Rocha e Larissa Clare Pochmann da Silva, com colaboração de Flávia Pereira Hill. No documento, afirmou-se ser necessário “prever um prazo, de 2 a 5 anos, contado da entrada em vigência da Lei, dentro do qual o interessado poderá escolher entre o procedimento extrajudicial e o procedimento judicial, até que os tabelionatos estejam estruturados para atender adequadamente a demanda por seus serviços“. Para os relatores, “seria correto estabelecer um período de acomodação, até que se possa, legitimamente, obrigar a todos que proponham suas execuções de maneira extrajudicial“.
Na mesma linha registra-se a opinião de Luiz Fernando Cirluzo:
[…] a previsão do procedimento desjudicializado como meramente alternativo ao judicializado beneficia uma implementação mais racional do novo mecanismo de execução, voltada à preservação da iniciativa.
Esta intenção, de uma implementação mais segura e progressiva da desjudicialização, já se afigura presente no Projeto e em sua justificativa, quando restringe o acesso das execuções pendentes à via desjudicializada.
Para se atingir este propósito, porém, a cautela, deve ser maior. A absorção de todas as novas demandas executivas já é um contingente muito expressivo. Neste cenário, a implementação da desjudicialização como método alternativo permite uma incorporação lenta e gradual na cultura jurídica, de modo a prevenir que haja simples transferência para os tabelionatos de protesto dos problemas hoje encontrados no Judiciário. […]
Aos tabelionatos seria conferida a possibilidade de uma adaptação e transição graduais, em que os problemas que surgissem – e é natural que surjam – seriam resolvidos com maior disponibilidade de tempo e de uso dos recursos auferidos com a própria atividade, até que, num futuro em que os tabelionatos se apresentem realmente mais eficazes, possam assumir a integralidade dos feitos executivos.8
Fernanda Augusto Hernandes Carrenho e Pedro Antônio Martins Gregui, alinhados com o via alternativa e não exclusiva como método de implementação, sustentam que, por cautela, o sistema proposto deve inicialmente ser opcional, pois apresentá-lo desde logo como o único disponível pode colocar em risco a proposta, considerando potenciais dificuldades que serão enfrentadas. “Observa-se, todavia, que uma vez verificado o sucesso do sistema não há obstáculo para que ele se torne a única via disponível para o procedimento executivo por quantia“.9 Eduardo Pedroto caminha na mesma direção.10
Os outros dois pontos de reavaliação do PL serão realizados em conjunto, já que umbilicalmente ligados. A principal defesa na execução desjudicializada é a suscitação de dúvidas contra atos e decisões do agente de execução – que poderá reconsiderar sua decisão ou encaminhar a suscitação de dúvidas, eletronicamente, ao juiz competente. O art. 2111 do PL é um dos mais polêmicos.
Absorvendo críticas surgidas na academia, oferece-se sugestão de aprimoramento ao PL. O termo suscitação de dúvidas deve ser retirado do texto legal, bastando manter-se poderão ser impugnadas, para que não haja confusão entre a defesa correcional e jurisdicional – sendo certo tratar-se de defesa cuja apreciação é de juiz jurisdicional. Ademais, tratando-se de suscitação de dúvidas, o recurso previsto é o da apelação, conforme arts. 199 a 204 da lei 6.015/73. Tratando-se de impugnação aos atos executivos, o recurso previsto na sistemática do CPC é o agravo de instrumento, conforme arts. 1.015 a 1.020 do CPC.
O PL prevê a irrecorribilidade, que é realidade no direito estrangeiro12, mas dois são os argumentos pelos quais se entende melhor recuar e aceitar o agravo de instrumento no Brasil: evitar mandados de segurança com fim recursal e formar precedentes dentro da execução desjudicializada.
Marcelo Abelha Rodrigues e Trícia Navarro Xavier Cabral bem registraram que houve uma tentativa de o PL usar o instituto da suscitação de dúvida – já consagrado nas leis de registros públicos – como se fosse um meio de impugnação no procedimento executivo, o que foi uma infeliz escolha, como também a previsão da irrecorribilidade. Assim eles sugerem seja identificada tal “figura como um meio de impugnação para todas aquelas hipóteses que se afastem do cabimento dos embargos“.13
Luiz Fernando Cirluzo proferiu verdadeira aula a respeito da inadequação da nomenclatura suscitação de dúvida, razão pela qual se sugere a atenta leitura da nota de fim indicada.14
Nesses termos, o melhor mesmo é tratar a defesa prevista no art. 21 do PL de impugnação, inclusive com o fito de manter harmonia com o art. 19 do PL – que talvez possa até mesmo ser suprimido do texto legal, uma vez que toda e qualquer contrariedade poderá ser impugnada.
Alterando o texto original quanto à nomenclatura da defesa, já que é claramente jurisdicional e não correcional, também faz sentido que se preveja o recurso de agravo de instrumento. Nessa toada, sugere-se reformulação do art. 21 com a seguinte redação:
Art. 21. As decisões do agente de execução que forem suscetíveis de causar prejuízo às partes poderão ser impugnadas perante o próprio agente, no prazo de cinco (5) dias que, por sua vez, poderá reconsiderá-las no mesmo prazo.
1º Caso não reconsidere a decisão, o agente de execução encaminhará a impugnação formulada pelo interessado para o juízo competente e dará ciência à parte contrária para, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentar manifestação diretamente ao juízo.
2º A decisão que julgar a impugnação será recorrível por agravo de instrumento.
Outras tantas reavaliações do PL 6.204/19, positivas e negativas, constam da atualização do meu livro Desjudicialização da Execução Civil ainda no prelo da Juruá Editora. Aqui foram pontuadas algumas questões bem recorrentes nos debates da comunidade jurídica, sendo certo haver ou
Referências:
1– Artigos disponíveis aqui e aqui.
2– GRAMSTRUP, Erik Frederico. O acesso à justiça e a execução extrajudicial por quantia certa (PL 6.204/2019) In: MAIA, Benigna Araújo Teixeira, BORGES, Fernanda Gomes e Souza, HILL, Flávia Pereira, RIBEIRO, Flávia Pereira e PEIXOTO, Renata Cortez Vieiria. (Orgs.) Acesso à Justiça: um novo olhar a partir do Código de Processo Civil. Londrina, PR: Thoth, 2020. p. 124.
3– CASTRO, Daniel Penteado de. Atividades Extrajudiciais antes Delegadas ao Poder Judiciário: Breves comentários em confronto com as iniciativas de Desjudicialização da Execução Civil. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de.; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 120.
4– YARSHELL, Luiz Flávio, RODRIGUES, Viviane Siqueira. Desjudicialização da Execução Civil: Uma solução útil e factível entre nós? In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de.; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 251-268.
5– WELSCH, Gisele Mazzoni. Análise crítica e comparada da desjudicialização da execução civil (Projeto de Lei nº 6.204/19). In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord.). Processo de execução e cumprimento da sentença: Temas atuais e controvertidos. v.2. São Paulo: Revista dos tribunais, 2021. p. 415.
6– HILL, Flávia Pereira. Desjudicialização da execução civil: reflexões sobre o Projeto de Lei nº 6.204/2019. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, v. 21, n.3. Set- Dez 2020. p. 164-205.
7– Sobre métodos de implementação, tema da pesquisa de pós-doutorado realizado na Universidade Nova de Lisboa sob orientação do Professor José Lebre de Freitas, reporta-se ao item 8.2.3 do livro atualizado Desjudicialização da Execução, de minha autoria, ainda no prelo da Editora Juruá.
8– CIRLUZO, Luiz Fernando. A desjudicialização da execução no Projeto de Lei nº 6204/19. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 601-603.
9– CARRENHO, Fernanda Augusto Hernandes; GREGUI, Pedro Antônio Martins. Desjudicialização da execução civil por quantia: Análise do direito estrangeiro e nacional. Encontro de iniciação científica, v. 15, n.1 5, 2019. Disponíel em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/7762. Acesso em: 21 out 2021.
10– PEDROTO, Eduardo. Desjudicialização e execução por quantia no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 111-112.
11– Art. 21. As decisões do agente de execução que forem suscetíveis de causar prejuízo às partes poderão ser impugnadas por suscitação de dúvida perante o próprio agente, no prazo de cinco (5) dias que, por sua vez, poderá reconsiderá-las no mesmo prazo. § 1º Caso não reconsidere a decisão, o agente de execução encaminhará a suscitação de dúvida formulada pelo interessado para o juízo competente e dará ciência à parte contrária para, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentar manifestação diretamente ao juízo. § 2º. A decisão que julgar a suscitação a que se refere este artigo será irrecorrível.
12– “Tratemos, enfim, da questão da recorribilidade. Desde a reforma operada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de novembro que não cabe recurso da decisão do juiz sobre a reclamação ou impugnação“. In: PINTO, Rui. A reclamação de atos e decisões do agente de execução. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de.; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 735.
13– RODRIGUES, Marcelo Abelha; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Primeiras impressões sobre a “defesa” do executado na execução extrajudicial do Projeto de Lei n.º 6204/2019. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de.; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 620.
14– CIRLUZO, Luiz Fernando. A desjudicialização da execução no PL 6204/19. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de.; RIBEIRO, Flávia Pereira (Orgs.). Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 594-595
*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.
Fonte: Migalhas