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Migalhas – Artigo: Penhora do bem de família do fiador em contrato de locação – Por Cristina F. L. Madruga Dinamarco
Em se tratando ainda de tema controverso, necessário um exame minucioso por parte do Poder Judiciário, quando da análise do pedido de impenhorabilidade do bem família por parte do fiador de locação comercial.
O instituto jurídico do bem de família surgiu da necessidade de proteção ao direito de moradia e à dignidade da pessoa humana, ou seja, tem o objetivo de tornar impenhorável o bem destinado à moradia, como ensina o doutrinador Carlos Roberto Gonçalves:
“uma forma da afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio”1
O artigo 1º, da Lei nº 8.009/90, protege o bem de família ao dispor que:
“o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.”
O direito à moradia trata-se de direito social essencial, que há muito tempo já faz parte do texto da Constituição Federal (artigo 7º, inciso IV), mas que ganhou força com a redação do artigo 6º, dada pela Emenda Constitucional 26, de 2.000, mantida com as adequações do texto no ano de 2.015.
Entretanto, o artigo 3º, da mesma lei 8.009/90, determina exceções à impenhorabilidade do bem de família, dentre elas o débito que decorre do próprio imóvel e a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, tratando-se, portanto, de obrigação relativa, ferindo, para muitos, os princípios constitucionais de proteção ao instituto do bem de família, ao possibilitar a penhora do único bem de família do fiador.
A Lei de Locações 8.245/91 prevê em seu artigo 37, inciso II, a fiança como uma das modalidades de garantias do contrato de locação, que poderá ser exigida pelo locador ao locatário, sendo certo que o legislador, ao incluir a fiança no rol das exceções do artigo 3º da Lei nº 8.009/90, permitiu a penhorabilidade do bem de família do fiador para cumprimento da obrigação advinda da fiança em contrato de locação.
Importante ressaltar, que a análise da a penhorabilidade do bem de família não é simples, uma vez que se trata de confronto entre dois direitos, quais sejam, o bem de família e o direito do credor do contrato de locação.
A Ministra Nancy Andrighi, quando do julgamento do Recurso Especial 1.364.509/RS reconheceu que há a necessidade de uma ponderação de valores em cada situação particular, uma vez que são dois os lados, o do direito ao mínimo existencial do devedor e o da tutela executiva do credor, ambos direitos fundamentais, conforme trecho do julgado abaixo transcrito:
“A garantia legal de impenhorabilidade do bem de família visa a resguardar o patrimônio mínimo da pessoa humana, valor esse que o legislador optou por preservar em detrimento à satisfação executiva do credor
(…)
De outro ângulo, a exegese sistemática da Lei nº 8.009/90 evidencia nítida preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, à custa de terceiros.
(…)
Então, no que tange à aplicação das disposições jurídicas da Lei 8.009/90, há uma ponderação de valores que se exige do Juiz, em cada situação particular: de um lado, o direito ao mínimo existencial do devedor e/ou sua família; de outro, o direito à tutela executiva do credor, AMBOS, frise-se, direitos fundamentais das partes.”2 (g.n.)
A interpretação e aplicação da legislação ao caso concreto causa controvérsias no Poder Judiciário, como se pode observar de inúmeros julgados proferidos no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, mesmo após o julgamento do Recurso Extraordinário 605.709 (Primeira Turma, 12/6/2018) e, posteriormente, do Recurso Extraordinário nº 1.296.835 (Segunda Turma, 29/1/2021, no sentido de que o bem de família de fiador em contrato de locação é penhorável, exceto em caso de contrato de locação comercial.
Com efeito, diversas Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo entendem pela possibilidade de constrição do bem de família do fiador de locação não residencial, por aplicação à espécie da exceção prevista no artigo 3°, VII, da Lei n° 8009/90, que não apresentaria incompatibilidade com a Constituição Federal, mormente porque o fiador, de fato, tem a liberdade de escolher se deve ou não prestar fiança em contrato de locação e, consequentemente, deve correr os riscos correspondentes, principalmente levando-se em consideração a inexistência de outros bens penhoráveis:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução. Agravante que figura como fiador de contrato locatício não residencial. Possibilidade de constrição do bem de família. Artigo 3°, VIII, da Lei 8.009/90. Inexistência de qualquer incompatibilidade com a Constituição Federal. Decisões proferidas pela 1ª e 2ª Turmas do STF que não possuem efeito vinculante. Decisão mantida. Recurso improvido.”3
“AÇÃO DE DESPEJO CUMULADA COM COBRANÇA. Fase de cumprimento de sentença. Fiança prestada em contrato de locação comercial. Penhora do bem de família. Possibilidade. Exceção legal – art. 3º, VII, LEI 8.009/90 – DECISÃO MANTIDA Nos termos do artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/90, perfeitamente possível a penhora do imóvel residencial “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. Agravo Desprovido.”4
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – Decisão que indeferiu a impugnação a penhora – Inteligência do Art. 3º DA LEI 8.009/90 e da Súmula 549 do C. STJ – Impenhorabilidade de Bem de Família afastada, pois se trata de bem pertencente a fiador de contrato de locação – Decisão Mantida – Agravo Improvido.”5
A questão ainda não está definitivamente pacificada, tanto que no Recurso Extraordinário nº 1.307.334/SP, iniciou-se a análise da repercussão geral da questão “penhorabilidade de bem de família de fiador em contrato de locação comercial” (Tema 1.127).
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, os Ministros da Segunda Seção, em maio de 2021, acordaram, por maioria, afetar os Recursos Especiais 1.822.033/PR e 1.822.040/PR ao rito dos recursos repetitivos (artigo 1.036 do CPC/2015), sem suspensão dos processos pendentes que versem sobre a mesma questão jurídica, também para delimitação da controvérsia: “definir a possibilidade ou não de penhora do bem de família de propriedade do fiador dado em garantia em contrato de locação comercial” (Tema 1.091), como se verifica da ementa abaixo transcrita:
“PROPOSTA DE AFETAÇÃO. SUBMISSÃO DE RECURSO ESPECIAL AO RITO DOS REPETITIVOS. 1. Delimitação da controvérsia: “Penhorabilidade (ou não) do bem de família de propriedade do fiador dado em garantia em contrato de locação comercial”. 2. Recurso especial afetado ao rito do artigo 1.036 do CPC de 2015.”
De acordo com o Relator Luis Felipe Salomão, não haveria impedimento para que o Superior Tribunal de Justiça, mesmo com a análise do tema pelo Supremo Tribunal Federal, também se pronuncie sobre o assunto, especialmente em razão do caráter infraconstitucional da matéria relativa à impenhorabilidade do imóvel dado em garantia pelo fiador de locação.
Sobre esse tema polêmico, importante ponderar que a interpretação do instituto do bem de família dissociado do princípio da boa-fé objetiva por parte do devedor pode prejudicar o credor e enfraquecer o processo de execução, sendo certo que a proteção conferida pela lei 8.009/90 deve levar em consideração a repressão ao abuso do direito, não se podendo permitir a prática de atos pelo devedor, capazes de deturpar o direito à tutela executiva do credor, conforme entendimento exarado no Recurso Especial nº 1.575.243, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
“não se pode permitir que, sob a sombra de uma disposição legal protetiva, o devedor pratique atos tendentes a inviabilizar a tutela executiva do credor, o que implicaria o uso da lei para promover a injustiça e, com isso, enfraquecer, de maneira global, todo o sistema de especial proteção objetivado pelo legislador.“6
Importante também ponderar se nos contratos de locação paritários, com ampla negociação e confronto prévio de suas cláusulas pelas partes, incluindo o fiador, seria possível, com base no parágrafo segundo7, do artigo 113, do Código Civil, relativizar a tendência pelo entendimento da impenhorabilidade do bem de família de fiador em locações comerciais, que livremente se prestou a pagar a dívida solidariamente, caso o locatário não a quite, sob pena de prejudicar o próprio mercado imobiliário, desestimular o uso da garantia (fiança) em aluguel comercial, encarecer o preço das outras formas de garantia, podendo inclusive o mercado deixar de aceitar fiadores com apenas um bem como garantia, impactando pequenas e médias empresas.
Portanto, em se tratando ainda de tema controverso, necessário um exame minucioso por parte do Poder Judiciário, quando da análise do pedido de impenhorabilidade do bem família por parte do fiador de locação comercial (muitos são os sócios da pessoa jurídica locatária), levando-se em consideração a boa-fé objetiva, a livre participação e pactuação das disposições contratuais pelas partes, sob pena de o bem ser de fato penhorado, em prestígio ao direito à tutela executiva.
Referências:
1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 6: direito de família. Ed. Saraiva, 2012, p. 502.
2 STJ. Recurso Especial nº 1.364.509/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 10/6/2014.
3 TJ/SP. Agravo de Instrumento nº 2107747-43.2021.8.26.0000. 36ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Walter Exner. Julgado em 8/7/2021.
4 TJ/SP. Agravo de Instrumento nº 2295644-54.2020.8.26.0000. 30ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Andrade Neto. Julgado em 28/6/2021.
5 TJ/SP. Agravo de Instrumento nº 2046324-82.2021.8.26.0000. 31ª Câmara de Direito Privado. Relator Desembargador Francisco Casconi. Julgado em 21/6/2021.
6 STJ. REsp nº 1.575.243/DF, Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 22/3/2018.
7 As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).
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*Cristina F. L. Madruga Dinamarco é integrante da Banca Falletti Advogados.