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Migalhas – Artigo: Os desafios e soluções na dissolução de SPEs no mercado de incorporações imobiliárias – Por Jéssica Cassemiro
A dissolução de sociedades de propósito específico encontra diversos desafios que envolve desde prazo para assistência técnica de unidade até tratamento de unidades em estoque.
Um questionamento que, de tempos em tempos, surge para as empresas do setor imobiliário, é em que momento se faz oportuna a dissolução de sociedades de propósito específico. Como o próprio nome diz, uma SPE – como são cunhadas sociedades deste tipo – encontram um fim em si mesmas, mediante a conclusão de um projeto por prazo determinado. A dissolução se refere a um acontecimento pontual que altera o status da companhia por colocá-la em posição jurídica típica de liquidação, onde se instaura com maior ou menor brevidade o procedimento que conduz ao fim determinado (PENTEADO, 2000, p.62 APUD SCHLINTWEIN, 2014, p.226)[1].
Embora algumas literaturas tenham construído uma narrativa de necessidade de previsão de prazo, certo e determinado, para dissolução de uma SPE, a jurisprudência vem se consolidando em sentido contrário, reforçando a racionalidade de que a Sociedade de Propósito Específico “(…) não se exaure com a conclusão do empreendimento, mas sim com o término de todas as suas pendências, inclusive financeiras” (CAZETTA, p. 17).[2]
Neste sentido, questiona-se quais aspectos devem ser observados previamente à dissolução da relação societária, para que seja possível garantir a manutenção dos deveres e obrigações da Sociedade perante terceiros, bem como aferir a responsabilidade dos sócios sobre o espólio da Sociedade. Sobre esses vieses, as análises deverão versar sobre aspectos específicos da atividade de incorporação imobiliária, tais como, mas não se limitando a (i) assistência técnica; (ii) estoque de unidades; (iii) escrituras de unidades pelos promitentes compradores; e (iv) ações judiciais em curso.
Até o advento do Código Civil de 2002, o entendimento da súmula 194 do Superior Tribunal de Justiça era de que a responsabilidade do construtor pelo reconhecimento de vício construtivo era de 20 anos. Entretanto, o artigo 205 do Código Civil de 2002 alterou este entendimento, de forma que prevalece hoje, o prazo prescricional de 10 anos para alegação de vício construtivo. Não obstante a este racional, o prazo de garantia, no que diz respeito à assistência técnica para fins de reparos de danos, é de 05 anos, conforme pronunciado no artigo 618 do Código Civil cumulado ao entendimento do Artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, no tocante a assistência técnica, é prudente considerar a dissolução a partir do quinto ano de aniversário da entrega do respectivo empreendimento imobiliário.
O estoque de unidades autônomas também é um fator relevante a ser considerado para o encerramento de uma SPE, isso porque, trata-se de um ativo importante da sociedade e deve receber o tratamento dado pelo Artigo 1.051 do Código Civil[3], qual seja, a avalição do valor patrimonial contábil da sociedade para fins de apuração de haveres.
Em uma sociedade de propósito específico, a apuração de haveres a partir da aplicação do valor patrimonial contábil, quando há unidades em estoque, podese mostrar desvantajosa aos sócios liquidantes pois consideram, como ponto de partida, o valor de custo de desenvolvimento das unidades autônomas em estoque, o que pode ser controverso visto que essas unidades poderão ser vendidas a preço diverso daquele inicialmente pretendido mediante concessão de descontos, o que impacta diretamente no retorno financeiro esperado (Cazetta, 2021, p.44)[4].
Ainda nesta seara, defende a autora Camila Cazetta, que a existência de unidades autônomas em estoque demonstra que o objeto social da SPE ainda não foi totalmente executado3, exigindo uma postura da sociedade de se responsabilizar pelas despesas e manutenções supervenientes à comercialização das unidades. Neste cenário, mostra-se saudável a opção de manter o quadro social da sociedade, obrigando aos sócios a se responsabilizarem pelo rateio dos custos decorrentes destas transações, conferindo um ambiente de maior segurança jurídica, tanto ao patrimônio dos sócios, quanto da sociedade e de terceiros interessados. Preconiza-se o cenário conservador de alienação de todas as unidades autônomas do empreendimento imobiliário desenvolvido, como fator prévio à dissolução de sociedade, sem prejuízo de que as respectivas escrituras de venda e compra sejam lavradas posteriormente ao encerramento da sociedade.
3 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
4 CAZETTA, Camila Cortez. Os limites da apuração de haveres nas sociedades de propósito específico voltadas à incorporação imobiliária. FGV, 2021. P. 44.
A figura do liquidante, por sua vez, é, não raras vezes, associada à pessoa que permanecerá responsável pela liquidação dos ativos e passivos da sociedade em um momento pós dissolução. Entretanto, é imperioso mencionar que o liquidante também guarda grande responsabilidade no tocante à administração do espólio da sociedade. Isso porque, a luz do Artigo 1.104 do Código Civil, “as obrigações e responsabilidades do liquidante regem-se pelos preceitos peculiares às dos administradores da sociedade liquidanda”. O liquidante tem papel fundamental nas responsabilidades pós liquidação da Sociedade de forma que, caso no momento da dissolução existam escrituras de unidades autônomas em aberto, é comum os Cartórios de Títulos e Documentos aceitarem que os instrumentos públicos sejam assinados pelos liquidantes, desde que previamente investidos por meio de cláusula no Distrato Social da Sociedade.
Na hipótese de ação judicial superveniente à dissolução, uma vez que a personalidade jurídica foi desconstituída, o pagamento por eventual condenação recairá, totalmente, sobre a figura dos sócios, e não mais sobre a sociedade. Nesse sentido, prevalece o disposto no Artigo 1.110 do Código Civil que reza “encerrada a liquidação, o credor não satisfeito só terá direito a exigir dos sócios, individualmente, o pagamento do seu crédito, até o limite da soma por eles recebida em partilha, e a propor contra o liquidante ação de perdas e danos”. Logo, os sócios serão incluídos no polo passivo da ação, no limite do que lhes coube na dissolução4, e inelutavelmente, serão responsabilizados pelo pagamento de condenações e custos decorrentes de decisões judiciais desfavoráveis. De toda forma, para evitar que um sócio venha a se responsabilizar por eventual passivo em detrimento de outro sócio, é importante que os instrumentos de dissolução explicitem as regras de regresso para que nenhuma das partes seja prejudicada.
O encerramento de uma sociedade encara desafios de diversas searas e, comumente, essas hipóteses estão atreladas a uma análise de aspectos operacionais, financeiros e administrativos suficientemente necessários para que a dissolução transcorra de forma benéfica para todos os envolvidos.
Notas:
[1] SCHLINTWEIN, Déborah; MENEGHETTI, Tarcísio Vilton. A Dissolução Total da Sociedade Empresária. Revista
Eletrônica de Iniciação Científica. Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas da UNIVALI. v. 5, n.1, p. 219- 236, 1º Trimestre de 2014. Disponível em: www.univali.br/ricc – ISSN 2236-5044, acessado em 28 de maio de 2022.
[2] EMENTA obtida por meio da tese CAZETTA, Camila Cortez. Os limites da apuração de haveres nas sociedades de propósito específico voltadas à incorporação imobiliária. FGV, 2021. P. 17. EMENTA (…) Propósito da sociedade que não se exaure com a conclusão do empreendimento, mas sim com o término de todas as suas pendências, inclusive financeiras. Pendências, no caso, que ainda não foram resolvidas. (…). (g.n.) (TJ/SP. 2ª Câmara de Direito Empresarial. Ap. 1137641-48.2016.8.26.0100. Rel. Claudio Godoy. DJ. 24/09/2018). EME
[3] Op. Cit. 2021, p.46.
[4] Redação extraída da decisão publicada no website https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/7/6743E23C869F44_TJ/SP.pdf
*Jéssica Cassemiro é mestranda pela FGV em Direito dos Negócios e especialista em Direito Societário (FGV) e em Contratos (LL.M Insper).
Fonte: Migalhas