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Migalhas – Artigo: Oficina notarial e registral: Averbação cautelar e o princípio da continuidade – Por Sérgio Jacomino
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Ementa
AVERBAÇÃO CAUTELAR. DECISÕES E EFEITOS SOBRE TÍTULO REGISTRADO. A averbação cautelar prevista no art. 167, II, 12 da LRP busca prevenir terceiros adquirentes de eventual ação anulatória que contaminaria a aquisição (Art. 167, II, n. 12 da LRP).
Introdução
Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, criada pelo professor Carlos E. Elias de Oliveira, vamos enfrentar um caso interessante: ocasião e efeitos de averbações cautelares (ou premonitórias) provocados por decisões judiciais sobre atos consumados na matrícula imobiliária.
O caso é aqui apresentado em forma esquemática e abstrata, com a supressão da identidade das partes envolvidas. TÍCIO e SEMPRÔNIA, e as entidades A e B, são atores deste cenário. O tema ainda se acha pendente de apreciação judicial em sede administrativa. O pleito foi distribuído à Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo e versou sobre a denegação de prática de ato de cancelamento de averbação consumada sob o pálio da proteção do comércio jurídico e com base no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP. Os interessados pugnam pelo cancelamento da averbação em razão de infringência ao princípio da continuidade.
Seja a decisão procedente ou improcedente, o tema em si suscita várias questões interessantes do ponto de vista do Direito Registral Imobiliário, razão pela qual apresento-o aos colegas de estudos. Divulgaremos a seu tempo a íntegra da decisão prolatada no caso concreto. Certamente a sentença, de procedência ou não, enriquecerá, ainda mais, o tema agitado nesta nótula prática.
Antes, porém, vamos conhecer o cenário completo do tema posto diante do intérprete.
Situação jurídica da matrícula
O imóvel acha-se registrado em nome de uma Associação (requerente) que o adquiriu em 2/10/2019, consoante R. 2 feito em matrícula desta serventia.
Em 24 de junho de 2021 recebemos ofício (com teor mandamental) oriundo de determinada Vara Cível da Capital de São Paulo em que se imperava a averbação da existência de ação anulatória em que são partes, dentre outros, TÍCIO, corréu na referida ação.
Num primeiro momento, o título foi devolvido em virtude de ferir, aparentemente, o princípio da continuidade, já que não se percebia, claramente, o nexo existente entre o autor da ação (chamemo-la de ASSOCIAÇÃO “A”) e a adquirente (ASSOCIAÇÃO “B”).
Reapreciação da matéria em sede de qualificação
Via de regra admitimos e apreciamos, no curso do processo registral, pedidos de reconsideração de matéria já decidida. Nesse sentido, a parte interessada foi instada, em nota devolutiva, a demonstrar o vínculo existente entre a determinação judicial e os correspondentes atos registrais, o que se evidenciou com o reexame detido da matéria e com base nos esclarecimentos prestados pela apresentante do título, Dra. SEMPRÔNIA, advogada.
A questão é a seguinte: TÍCIO figura como corréu na ação anulatória. O título que deu origem ao R. 2/MAT chamou-nos a atenção pelo fato de que o mesmo TÍCIO comparecera ao ato notarial que gerou a escritura pública de compra e venda como representante legal da “A” (alienante) e de “B” (adquirente). Não poderia, portanto, objetar a averbação com base no fato de que “B” seria um terceiro alheio totalmente ao negócio jurídico entabulado e registrado.
O mais importante, todavia, é que na ação anulatória discute-se, justamente, a legitimidade dos atos de disposição praticados por TÍCIO, já que, segundo se alega na dita ação, lhe faleceria legitimidade para representar “A”, fato confirmado por acórdão do TJSP em sede de agravo. Além disso, na dita ação anulatória que ensejou o mandado de averbação buscava-se a suspensão dos efeitos de todos os atos praticados por TÍCIO desde a data de sua nomeação como administrador provisório da entidade em 2018. A escritura e o registro são do ano de 2019.
Limites e alcance da determinação judicial
A determinação judicial veio vazada nos seguintes termos:
“averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis de propriedade de “A” e da filial […], para ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens” (g.n.).
Mais tarde, o r. Juízo, apreciando pedido das partes, manteve a ordem de averbação nos seguintes termos:
“A decisão não contraria o decidido no processo. A simples averbação da existência da ação nas matrículas dos imóveis que ainda são de propriedade de [“A”…] não impossibilita a alienação desses bens. O ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé. Ademais, reputo a medida razoável e prudente, diante da grande litigiosidade que se observa nos autos (…)”.
O deferimento da averbação se deu liminarmente, concluindo o digno Magistrado que, instaurado o contraditório, com citação de todos os corréus, “a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações”.
Todas as circunstâncias até aqui relatadas foram devidamente sopesadas e apreciadas por este Registrador no acolhimento do pleito de reconsideração que se acha às fls. e seguintes dos autos.
Ação anulatória – efeitos – o fundamento legal da averbação
Em primeiro lugar, registre-se que a prática do ato se seguiu após exame e formação da convicção pessoal deste registrador, que agiu nos limites de suas prerrogativas legais e no exercício e gozo da independência jurídica na tomada de decisões em sua ordem (art. 28 da lei 8.935/1994). Como assinala RICARDO DIP, “a função qualificadora do registrador é a típica de um profissional do direito, exercendo-se, em sua ordem, com independência só submetida à observância da lei e aos limites dos documentos e dos registros a que, em cada caso, deva referir-se o juízo qualificador”1.
Já a base legal para a prática do averbação encontramo-la no n. 12, inc. II, do art. 167 da LRP que reza que a inscrição premonitória se fará com base em “decisões, recursos e seus efeitos que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados”.
No caso concreto, mais do que simples interesse da parte que roga a inscrição baseada em decisões e recursos judiciais, temos, neste caso concreto, uma decisão judicial dirigida expressa e diretamente ao Cartório. É preciso interpretar o alcance da medida e o bem jurídico tutelado.
É evidente que a r. determinação mirou os títulos e atos registrados na Matrícula X. A decisão ostenta um nítido caráter cautelar. Os efeitos que poderão advir de eventual decisão anulatória dos atos de disposição praticados pelo corréu TÍCIO poderão evidentemente alcançar terceiros adquirentes de boa-fé que venham a figurar como sub-adquirentes na cadeia sucessória. Não se deve esquecer que o registro aquisitivo não é saneador dos elos da corrente filiatória, já que a presunção que decorre do registro é relativa – não absoluta (art. 1.247 do CC).
A decisão revela ainda um detalhe importante: ela alude a “terceiros”, no plural, colhendo tanto o adquirente (“B”), quanto eventuais sub-adquirentes na linha filiatória. Note-se a dicção do despacho: “ciência de eventuais terceiros que pretendam adquirir esses bens”. São terceiros a própria “B” e todos os que lhe sucederem na situação jurídica, a que título for.
Por essa boa e justa razão, o MM. Juiz delimitou claramente os efeitos que a averbação poderia desencadear: o “ato visa apenas à cientificação de terceiros de boa-fé”, sem retirar o bem do comércio jurídico – o que poderia ferir o poder de disposição do titular, lhe embaraçando os interesses.
Seja como for, a transmissão poderia (e poderá a qualquer tempo) ser feita, pois não se gravou o imóvel com indisponibilidade ou bloqueio (de registro ou de matrícula). Trata-se de publicidade de mera notícia – ou como também é chamada – enunciativa2.
Aliás, nesse sentido já se admitia desde a década de 80 a averbação de mera notícia da ocorrência de fatos e circunstâncias que pudessem inocular no sistema o germe da insegurança jurídica. Em processo que teve curso na mesma Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo, NARCISO ORLANDI NETO decidiria que a “existência da averbação a que se refere o art. 167, II, 12 da lei 6.015/73 não pode impedir a transmissão do imóvel. Destina-se apenas e tão somente a tornar pública a existência de decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados”3.
A doutrina não discrepa. Por todos, AFRÂNIO DE CARVALHO qualificaria tais inscrições como preventivas, destinadas “a prevenir terceiros de ameaças à titularidade constante do registro, decorrentes de atos judiciais ou de atos negociais sob condição suspensiva, a fim de se inteirarem de risco de negócio com os respectivos imóveis”4. E segue:
“A inscrição preventiva, com a mesma índole premonitória, figura em outras legislações para, como aqui, informar terceiros da pendência de obrigações ou riscos sobre os imóveis, cuja aquisição não se poderá fazer, a menos que o adquirente queira expor-se à anulação do ato e ter contra si a prova pré-constituída da fraude”5.
Cancelamento posterior da notícia
Acerca dos efeitos da averbação premonitória, o mesmo AFRÂNIO DE CARVALHO nos dirá que a natureza dessa inscrição é sempre provisória, “não impedindo que, perante o registro, se formalizem negócios que desprezem a advertência nela contida, posto sujeitos a serem mais tarde anulados pelo titular de direito que ela garante”6.
Consentâneo com esse entendimento, como indicado no título judicial, instaurado que seja o contraditório, “a determinação de averbação da existência do processo poderá ser revista e, caso verificada a necessidade, será determinada a baixa das anotações”, como se pronunciou Sua Excelência o Juízo da Vara Cível da Capital de São Paulo.
Somente munido de decisão judicial, oriunda do mesmo r. Juízo, se fará o cancelamento da averbação – ou em decorrência de eventual decisão do juízo administrativo, em razão do pleito deduzido nos autos de pedido de providências.
Em suma: não há prejuízo algum, não há bloqueios, nem indisponibilidades ou qualquer outro gravame desse mesmo jaez. O que há, efetivamente, é preservação da segurança jurídica, valor primacial do sistema registral e princípio que norteia toda a atividade do Oficial Registrador.
Referências:
1 DIP. Ricardo. Registros sobre Registros #08 – Princípio da independência jurídica do registrador – Parte segunda. Acesso aqui.
2 Na classificação de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, a publicidade-notícia é “aquela que não exerce qualquer efeito sobre a eficácia do facto registado”, isto é, não retira a disponibilidade do direito, nem agrega outros efeitos além de acautelar terceiros. ALMEIDA. Carlos Ferreira de. Publicidade e Teoria dos Registos. Coimbra: Almedina, 1966, p. 333.
3 Processo 1.541/1980, j. 13/3/1981, Dr. Narciso Orlandi Neto. Acesso aqui. Na Corregedoria Geral de Justiça: Processo CG 132.872/2015, São Paulo, decisão de 14/4/2016, DJ 26/4/2016, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. Acesso aqui.
4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 179.
5 Op. cit p. 8.
6 Op. cit. p. 176.
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*Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) para o biênio 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.
Fonte: Migalhas