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Migalhas – Artigo: Oficina notarial e registral: Arrematação inválida – Registro consumado – Pedido de devolução de emolumentos – Por Sérgio Jacomino

29-06-2022

Na seção “Oficina Notarial e Registral”, do Migalhas Notariais e Registrais, hoje vamos expor um tema recorrente na praxe dos cartórios brasileiros: a determinação de devolução de valores emolumentares no caso de anulação de atos regulares praticados pelos oficiais registradores no exercício de seu mister.

Neste caso concreto, o interessado postulara o cancelamento de registro de arrematação objeto de registro regular feito na matrícula correspondente, buscando, ainda, a devolução integral dos valores pagos a título de emolumentos, devidamente corrigidos.

O R. Juízo da execução, cumprindo decisão do Superior Tribunal de Justiça, determinara o cancelamento do ato de registro, já que, consoante decidido pela corte superior, a “remição da execução precedeu a assinatura do auto de arrematação. Ou seja, verificou-se quando a arrematação ainda não se encontrava perfeita e acabada” (RESP 1.862.676 – SP, voto da Min. NANCY ANDRIGHI).

Ao reconhecer que a arrematação não representava um ato jurídico perfeito e acabado (art. 903 do CPC), tal fato, por efeito revérbero e consecutivo, teria inquinado o ato de expropriação judicial, o que haveria de acarretar o cancelamento da transmissão, como aliás determinado pelo R. Juízo. Como se sabe, a higidez da eficácia registral repousa no título escoimado de todo vício de invalidade ou nulidade.

De passagem, note-se que o reconhecimento de invalidade da arrematação deveria ser postulado em ação própria, ex vi da literalidade do § 4º do art. 903 do CPC, que reza que, após a expedição da carta de arrematação, ou da ordem de entrega, “a invalidação da arrematação poderá ser pleiteada por ação autônoma, em cujo processo o arrematante figurará como litisconsorte necessário”. Nesta ação o arrematante poderia buscar satisfazer-se dos danos experimentados requerendo “indenização, por exemplo, pelas despesas com o registro do imóvel”, consoante notam NELSON NERY JR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[1].

No caso de anulação de arrematação, com o consequente cancelamento de registro, o “ressarcimento dos valores pagos pelo arrematante a título de impostos e emolumentos devem ser buscados por meio de ação própria”, consoante decidido no REsp 1.568.636-RS, j. 11/6/2021, Dje 15/6/2021, Ministro SÉRGIO KUKINA.

Além disso, e mais importante, o Oficial de Registro, neste caso, figuraria como parte, legitimando-se para se defender, estabelecendo o contraditório e o devido processo legal. No processo executivo em tela, o Oficial não é parte e, portanto, não pode agravar a respeitável decisão do Juízo executivo.

Enfim, não havia qualquer comando no v. acórdão do STJ no sentido de fulminar, desde logo, a eficácia da arrematação; havia, apenas, o reconhecimento de que a remição precedeu a assinatura do auto de arrematação, declarando-se tempestivo e integral o depósito remissivo. As consequências daí derivadas deveriam se produzir no bojo do processo executivo – inclusive para que o arrematante pudesse depois satisfazer-se dos prejuízos por ele experimentados.

Erro – busca de eventual reponsabilidade

Nos termos do mesmo art. 903 do CPC “qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável”. Neste contexto, como consectário lógico, uma vez expedida a carta de arrematação, há de se pressupor que os atos antecedentes se tenham revestido de todas as formalidades legais, cumpridos os requisitos previstos na lei. Somente se expedirá a carta de arrematação quando se tenha esgotado exitosamente o iter executivo (com o auto de arrematação firmado pelo arrematante, pelo leiloeiro e pelo juiz do feito).

Ora, o título que fora apresentado a registro apresentava-se formalmente em ordem e por esta razão o registrador o consumou ordinariamente. Afinal, o auto de arrematação havia sido lavrado e firmado pelos arrematantes, pelo leiloeiro e pelo MM. Juiz do feito, tudo conforme o dito art. 903 do CPC. Se houve erro nos atos expropriatórios – o que se presume ter havido a teor do v. acórdão do STJ, já que a remição teria precedido a assinatura do auto – o lapso ou eventual erro ocorrido no âmbito do processo judicial não poderia ser atribuído ao Registro de Imóveis. Falta, de fato, um nexo causal que poderia acarretar a consequência de responsabilização do Oficial do Registro pela prática de atos próprios.

Preenchidas as formalidades legais, o registrador não poderia deter-se na consumação do ato rogado pelos interessados (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973). E uma vez praticado o ato de registro, em estrita obediência aos requisitos formais e a instância dos próprios interessados, não pode ser compelido a devolver os valores correspondentes aos emolumentos devidos pela prática regular de atos de ofício – inclusive os posteriores, de averbação de cancelamento da arrematação.

O próprio arrematante destacou no processo que o registro se fez “porque assim o Juiz de Primeira Instância e o Tribunal de Justiça determinaram”. Além disso, o MM. Juiz do feito averbou que eventuais prejuízos ocorridos poderiam, “eventualmente, a seu estrito critério [dos interessados], ser tratados nas vias processuais próprias”.

Enfim, o Registro de Imóveis figurou como verdadeiro “Pilatos no credo”, não tendo dado causa aos prejuízos experimentados pelas partes por eventual erro em decorrência de inobservância de formalidades e requisitos legais, não podendo, à esta altura, interferir na lide por não ser parte legítima, não lhe restando alternativas que a via do mandado de segurança.

Recentemente o TRF da 3ª Região, em sede de mandado de segurança, reconheceu que os emolumentos relativos à efetiva prática de ato de registro têm por fato gerador a prestação dos serviços. Comprovada a prestação, o Oficial faz naturalmente jus à remuneração prevista em lei. Eventual cancelamento de registro de arrematação, em decorrência de anulação de hasta pública, não ocorrendo a hipótese de erronia da Serventia, o Oficial está desobrigado à devolução das custas e emolumentos pagos:

“Dispõe o art. 1º da Lei Estadual 11.331/2002 que os emolumentos relativos aos serviços notariais e de registro tem por fato gerador a prestação de serviços públicos notariais e de registro previstos no art. 236 da Constituição Federal.

O impetrante comprova a prestação dos serviços de registro e averbação na matrícula do imóvel arrematado (fl. 45), fazendo jus à remuneração prevista em lei.

Por outro lado, o cancelamento do registro da arrematação decorreu de anulação da hasta pública, e não por erronia da Serventia (fl. 25).

Também o periculum in mora restou demonstrado no despacho proferido pela autoridade impetrada (cópia juntada à fl. 33), no qual determina o cumprimento integral da decisão de fl. 362 dos autos originários (de cancelamento do registro de arrematação e restituição integral da quantia recebida do arrematante) no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 100,00 (cem reais) e “vista” ao Ministério Público Federal para apurar possível crime de desobediência.

Diante do exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar a imediata suspensão da ordem judicial de devolução das custas e emolumentos pagos pelo registro de arrematação junto à matrícula de nº 6314, até julgamento final deste mandamus“[2].

Esta decisão aponta para a melhor compressão do problema posto no caso concreto. De fato, o cartório, para a consecução do registro, pautou-se pelos seguintes princípios – aliás reconhecidos pelo STJ: (a) princípio da rogação (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973), segundo o qual todo ato de registro depende de expresso requerimento da parte interessada e (b) todo ato registral é, em regra, oneroso, salvo as expressas exceções legais (REsp 1.725.608, dec. mon. de 26/3/2021, Dje 6/4/2021, Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO).

Não se pode obrigar a devolução dos valores pagos por atos praticados regularmente, a requerimento dos próprios interessados, que, ao atuarem na seara dos leilões judiciais, devem sempre sopesar os riscos inerentes à atividade e suportar os seus eventuais azares.

A pizza emolumentar e os sujeitos passivos por substituição tributária

Não bastasse a respeitável determinação de devolução dos valores emolumentares pagos em 2019, devidamente corrigidos, é preciso destacar que a determinação ia ainda muito além e extrapolava a parte do Oficial, abrangendo o total depositado.

Entretanto, como se sabe, há repartição e destinação diversa dos valores recolhidos sob a epígrafe de custas e emolumentos, consoante o disposto no art. 19 da lei 11.331/2002, lei de emolumentos do Estado de São Paulo.

A parte do oficial corresponde a 62.5% do total pago; o restante é repartido entre o Estado de São Paulo, a Fazenda Estadual (antigo IPESP), o Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça e o Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo – sem cogitar do imposto de renda devido pelo Oficial do Registro.

Os registradores são considerados sujeitos passivos por substituição tributária (art. 3º da dita Lei 11.331/2002). Nesta condição, não podem ser compelidos a restituir eventual tributo devido pelos interessados e recolhidos regularmente pela Serventia. Constituída a hipótese de incidência do tributo (fato gerador), definida a base de cálculo, o recolhimento das parcelas e o repasse são compulsórios. Eventual repetição reclama o chamamento dos vários atores à lide.

Conclusões

O ato de cancelamento deverá ser procedido mediante o recolhimento do depósito prévio (art. 14 da Lei 6.015/1973). O MM. Juiz (corretamente) assim o determinou:

“O arrematante, em tal diapasão, deverá também, de pronto, proceder à averbação registrária para documentar o desfazimento da arrematação às margens da respectiva matrícula imobiliária, arcando com tais despesas pertinentes“.

As razões acima foram apreciadas e aprofundadas em mandado de segurança impetrado contra o juízo, buscando fulminar a ordem eivada de ilegalidade.

A peça foi preparada pelo advogado, Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA e colegas do CM ADVOGADOS, cujo teor pode ser consultado aqui. A ação foi distribuída (MS 2125241-81.2022.8.26.0000). O mandamus foi concedido baseando-se em breve, porém precisa, fundamentação:

“Diante do ato praticado pelo registrador houve pagamento de emolumentos. O posterior cancelamento da arrematação pelo C. STJ, a priori, não teria o condão de impor a devolução das custas do registro. Por tal argumento, defere-se a liminar para suspensão da ordem até ulterior deliberação. KIOITSI CHICUTA, Relator”.

Na prestação de informações, o R. Juízo foi igualmente conciso:

“Observo de imediato a R. Decisão da Superior Instância colacionada a fls. e, neste sentido, inclusive, diante da indicação expendida na própria decisão impugnada de fls., acerca da devolução de tal importe, a título de emolumentos, reconsidero a respeito tal decisão de fls., no sentido de REVOGAR A ORDEM IMPETRADA e, assim, cancelar o decisum impugnado para a Serventia Extrajudicial devolver tal valor aos arrematantes, sob pena de desobediência, arrematantes estes que, frisa-se, a seu livre critério, deverão ou poderão postular a eventual devolução dos montantes arcados com tal arrematação, a qual restou cancelada nestes autos, por ordem da Superior Instância, nas vias processuais próprias, que não neste processo, o qual possui, conforme é consabido, outro objeto processual. Presto as informações a mim solicitadas pela Superior Instância a fls.”

As informações prestadas pelo R. Juízo no MS vão na mesma direção:

Trata-se de mandado de segurança tirado de decisão proferida nos autos de Origem a fls., a qual, diante da anulação de arrematação anterior, por ordem da Superior Instância, determinou a devolução dos valores pagos pelo arrematante, atendendo a um pedido por este último deduzido no processo, perante a Serventia Extrajudicial, representada pelo impetrante. Entretanto, prima facie, este juízo de piso impetrado assinala que revogou a ordem impetrada, inclusive, nos termos indicados no próprio decisório vergastado, à vista que, de fato, tal devolução, poderá ou deverá ser tratada em sede de pedido deduzido nas vias processuais próprias a critério do seu interessado, não podendo, deste modo, salvo melhor juízo, ser a mesma examinada nestes autos de origem, que se reportam a execução de título executivo extrajudicial entre as partes respectivas”.

As coisas voltaram, assim, ao bom rumo sistemático. Soa verdadeiramente desarrazoado que o Oficial Registrador pudesse ser responsabilizado e arcasse por danos e prejuízos a que não deu causa.

Para todos os interessados, aqui vão as principais peça do Processo 1028069-60.2016.8.26.0100 e Mandado de Segurança 2125241-81.2022.8.26.0000, além da excelente peça inaugural.

Peça elaborada pelo Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA, do CM ADVOGADOS

Decisão do MS 2125241-81.2022.8.26.0000

Informações prestadas pelo juízo impetrado

Decisão proferida no Processo de Execução (1028069-60.2016.8.26.0100)

Notas

[1] NERY Jr. Nelson. NERY. Rosa Maria de Andrade. CPC comentado, 19ª ed., São Paulo: RT, 2020, p. 1897, nota 7.

[2] TRF 3ª Região MS 0018235-05.2014.4.03.0000/SP, j. 25/7/2015, rel. Marcelo Guerra. Acesso aqui.

*Sérgio Jacomino é 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Ex-presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra.

Fonte: Migalhas