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Migalhas – Artigo: O tema repetitivo nº 1095 do STJ e o debate sobre a “constituição em mora” – Por Demétrio Beck da Silva Giannakos

06-04-2023

O mercado imobiliário é um dos propulsores da nossa economia. Em 2022, o PIB da construção civil fechou com crescimento de 9,7%, a maior alta nos últimos 11 anos[1].

Para trazer maior segurança jurídica aos negócios imobiliários, diversas formas de garantias são utilizadas. Uma das mais comuns, é a alienação fiduciária. Para Alexandre Laizo Clápis, “o negócio fiduciário é aquele em que uma pessoa transmite para a outra a propriedade de uma coisa ou de um direito com finalidade de garantia, para um fim específico estabelecido pelas partes, pelo qual a segunda se obriga a restituir quando cumprida determinada obrigação ou implementada a condição resolutiva inerente ao negócio jurídico”[2].

Na compra e venda de imóveis, por anos, existiu uma dúvida que atormentava os operados do direito: no caso de resolução do contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, por culpa do adquirente, seria aplicável o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei da Alienação Fiduciária? Já adiantando ao leitor: dependerá do cumprimento de alguns requisitos. Vejamos.

Recentemente, o STJ, ao julgar o REsp n. 1891498 / SP, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, em caráter de recurso repetitivo, firmou a seguinte tese: “Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor”. A partir da tese fixada, grande parte da comunidade jurídica voltada à temática enalteceu a decisão proferida, sob o argumento de a aplicação ou não do CDC, finalmente, seria pacificada nos Tribunais.

Todavia, recentemente, verificou-se a existência de dúvidas na sua aplicação a alguns casos julgados no que tange à constituição em mora do devedor. Seria ela a do caput do art. 26 da lei 9.514/97 ou do parágrafo primeiro do mesmo diploma? O intuito do presente ensaio é, portanto, responder essa pergunta.

Em seu voto, o Ministro Marco Buzzi, elenca três requisitos fundamentais para que a tese seja aplicável: i) o registro do contrato (no registro de imóveis) com cláusula de alienação fiduciária; ii) o inadimplemento por parte do devedor fiduciário; e iii) a adequada constituição em mora. Dito de forma diversa, caso um dos três requisitos não esteja presente, a solução do contrato não seguirá os ditames da lei 9.514/97, mas sim pelos ditames do Código Civil (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (art. 53).

O presente ensaio debruçará suas atenções, mais precisamente, sobre o terceiro requisito, qual seja, a constituição em mora e a forma como ocorrerá.

Para isso, importante trazer ao leitor uma clara distinção: para a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, é devida a intimação para que o devedor fiduciante possa purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, sob pena de barrar o caminho para o leilão extrajudicial do imóvel. Eduardo Chulam assim disserta: “O fiduciante é assim intimado para pagamento tanto das prestações vencidas com vincendas até o pagamento, no prazo de quinze dias (além da carência contratual), podendo, caso queira, purgar a mora diretamente perante o Oficial de Registro de Imóveis”. “A consequência do pagamento será o convalescimento da alienação fiduciária”[3].

Por outro lado, a constituição da mora em si, parece ter natureza diversa, qual seja, ex re, conforme será demonstrado no presente ensaio. Ou seja, os casos são distintos e, portanto, não se confundem.

Em recente caso julgado pela 1ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo, o Desembargador Relator Francisco Loureiro dispões o seguinte: “Sucede que não houve intimação para o devedor fiduciante purgar a mora, nos moldes do art. 26 da lei 9.514/97. Logo, não há consolidação da propriedade nas mãos do credor fiduciário, o que abriria caminho para o leilão extrajudicial do imóvel”[4]. No caso julgado pela Corte paulistana, ficou claro o requisito necessário para a consolidação da propriedade, porém, não foi tratada pelos magistrados de que forma a constituição da mora em si teria ocorrido.

Porém, em outro caso também analisado pelo TJ/SP, agora pela 13ª Câmara de Direito Privado, a conclusão final dos magistrados foi diversa, no sentido de que haveria a necessidade a constituição em mora do devedor fiduciário: “Contudo, em que pese o atraso do pagamento de parcelas pelos autores seja incontroverso, não houve constituição em mora, o que, de acordo com o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, enseja a resolução do contrato de acordo com o disposto no Código de Defesa do Consumidor”[5].

É preciso distinguir situações diversas. Parece claro que, para que a propriedade do imóvel seja consolidada ao credor fiduciário, é requisito formal a intimação do devedor para purgar a mora, nos termos do art. 26, §1º e §7º da lei 9.514/97. Todavia, para que o devedor fiduciante seja constituído em mora, bastaria o inadimplemento, conforme previsto no caput do mesmo diploma legal. Em outras palavras, nos contratos garantidos por alienação fiduciária, a mora se configura automaticamente quando vencido o prazo para pagamento. Ou seja, seria um típico caso de mora ex re. Esse é o ponto fulcral do presente ensaio e que parece estar causando divergência jurisprudencial.

Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a mora ex re diz respeito ao não cumprimento das obrigações com termo de vencimento certo (dia 23 de junho, por exemplo) e definido. Nesses casos, o devedor é constituído de pleno direito em mora[6], sem a necessidade de prévia notificação.

Esse debate, inclusive, já foi travado no próprio STJ anos atrás.

Em 1993, o STJ, em REsp n. 37.535/RS, já definia reconhecia a natureza da mora nos casos de alienação fiduciária como ex re[7]. Recentemente, o TJ/RS, em decisão proferida Décima Segunda Câmara Cível, confirmou a dispensa da notificação para a simples constituição em mora[8], com aplicação do art. 397 do CC.

Parece claro que, a partir do presente ensaio, existem distinções entre a constituição em mora prevista no caput do art. 26 da referida lei e a necessidade de intimação do devedor fiduciário prevista no parágrafo primeiro do mesmo diploma. No caso do caput, haveria aplicação do art. 397 do CC, conforme disposto pelo TJ/RS, enquanto o caso previsto no parágrafo primeiro teria como objetivo a possibilidade de quitação do débito por parte do devedor ou a consolidação da propriedade em nome do credor.

O tema é instigante e, certamente, ensejará defensores de posicionamentos diversos. Sendo assim, caberá à doutrina fazer a sua parte e, consequentemente, caberá ao STJ, muito provavelmente, manifestar-se sobre o tema em momento oportuno, com a finalidade da trazer maior segurança jurídica.

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[1] Disponível aqui. Acesso em 27/03/2023.

[2] CLÁPIS, Alexandre Laizo. Reflexões sobre a natureza jurídica da propriedade fiduciária imobiliária. In: Revista Ibradim de Direito Imobiliário, v. 1 (nov. 2018). São Paulo: Ibradim, 2018, p. 27-28.

[3] CHULAM, Eduardo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Almedina, 2019, p. 118.

[4] RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM PACTO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. Tema 1095 do STJ. Ação ajuizada pelo comprador, alegando impossibilidade superveniente de pagamento do preço. Garantia real da propriedade fiduciária devidamente constituída pelo registro imobiliário. Inexistência, porém, de notificação para conversão da mora em inadimplemento absoluto e consolidação da propriedade resolúvel nas mãos da credora fiduciária, na forma do art. 26 da L. 9514/98. Impossibilidade de resolução do contrato, que perdeu a sua natureza bilateral. Comprador se tornou devedor fiduciante do saldo parcelado do preço. Garantia real deve ser executada na forma prevista na L. 9514/97, com leilão extrajudicial do imóvel. Impossibilidade de aproveitamento da presente ação de resolução para excussão da garantia, uma vez que não houve até o momento consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária. Inteligência da aplicação do Tema 1095 do STJ somente aos casos em que a mora já foi convertida em inadimplemento absoluto e a propriedade se encontra consolidada nas mãos do credor fiduciário, podendo ser levado a leilão extrajudicial. Ação de resolução improcedente. Recurso provido.   (TJSP; Apelação Cível 1000418-80.2021.8.26.0099; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bragança Paulista – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023)

[5] APELAÇÃO – RESCISÃO CONTRATUAL – COMPRA E VENDA – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – TEMA 1.095 DO STJ – NÃO INCIDÊNCIA -DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. – Instrumento particular de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia – Desistência do adquirente – Pretensão das vendedoras de que a resolução do contrato se dê por execução extrajudicial, nos termos da Lei nº 9.514/97 – Impossibilidade – Tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.095 no sentido de que a Lei nº 9.514/97 somente afasta a aplicação do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de contrato registrado em cartório e adquirente inadimplente, devidamente constituído em mora – No caso dos autos os compradores não foram constituídos em mora – Determinação de devolução de 90% sobre os valores pagos, autorizado o desconto de eventuais débitos de consumo, IPTU e taxas condominiais em consonância com os precedentes do STJ: – Não se tratando de hipótese que impõe a execução extrajudicial do contrato e a aplicação da Lei nº 9.514/97, conforme decidido pelo STJ no julgamento do Tema nº 1.095, a resolução da avença com a retenção de 10% dos valores pagos pelo comprador mostra-se suficiente para a compensação do vendedor – Precedentes do STJ – Incabível a cobrança de taxa de ocupação, uma vez que não houve consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO E ANÁLISE DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PREJUDICADA.  (TJSP;  Embargos de Declaração Cível 1015084-98.2019.8.26.0344; Relator (a): Nelson Jorge Júnior; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/03/2023; Data de Registro: 03/03/2023).

[6] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 275.

[7] ALIENAÇÃO FIDUCIARIA. BUSCA E APREENSÃO. CONSTITUIÇÃO EM MORA.

NAS DIVIDAS GARANTIDAS POR ALIENAÇÃO FIDUCIARIA, A MORA CONSTITUI-SE ‘EX RE’, SEGUNDO O DISPOSTO NO PAR. 2. DO ART. 2. DO DECRETO-LEI N. 911/69, COM A NOTIFICAÇÃO SERVINDO APENAS A SUA COMPROVAÇÃO, NÃO SENDO DE EXIGIR-SE, PARA ESSE EFEITO, MAIS DO QUE A REFERENCIA AO CONTRATO INADIMPLIDO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (REsp n. 37.535/RS, relator Ministro Paulo Costa Leite, Terceira Turma, julgado em 30/9/1993, DJ de 25/10/1993, p. 22492.)

[8] AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM ALIENAÇÃO DE IMÓVEL EM GARANTIA. AJUIZAMENTO DA DEMANDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. INOCORRÊNCIA. O credor fiduciário poderá buscar a concretização do seu crédito por meio da via judicial ou extrajudicial, cabendo a ele a opção neste sentido, não restando configurada qualquer nulidade da demanda executiva. Inteligência do art. 19, da lei 9.514/17. Igualmente, nenhuma nulidade há na penhora do imóvel oferecido em garantia fiduciária, o que inclusive é assegurado pelo disposto no art. 835, XII, do CPC, nem tampouco pela expropriação deste por meio de leilões judiciais ao invés de extrajudicial, à medida que optou o credor pela via judicial. Não há falar em descaracterização da mora em razão de não terem sido intimados para purgar a mora, nos termos da Lei 9.514/97, uma vez que esta se prestaria tão somente para evitar a consolidação da propriedade dada em garantia fiduciária em nome do credor. No caso, o credor optou por ingressar em juízo, com demanda executiva, para exercer o direito ao seu crédito. Em se tratando de cédula de crédito bancário (título extrajudicial nos termos do art. 784, III, do CPC), obrigação de pagamento de quantia liquida, com termo certo e determinado, com vencimento previamente definido, opera-se a mora ex re, nos termos do art. 397, do CCB, o que dispensa qualquer notificação do devedor. Inocorrente a descaracterização da mora e nulidade dos atos executivos. Impenhorabilidade do imóvel que não se verifica, uma vez que não caracterizado como pequena propriedade rural, o que afasta a proteção disposta no art. 833, VIII, do CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. UNANIME.(Agravo de Instrumento, Nº 70085598381, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 30-09-2022).

*Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS e Associado do IBRADIM e da AGADIE.

Fonte: Migalhas