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Migalhas – Artigo: O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da lei 14.382/22 – Por Moacyr Ribeiro
A lei 14.382, publicada em 28 de junho de 2022, oriunda da conversão da Medida Provisória 1.085/2021, além de criar o “Sistema Eletrônico dos Registros Públicos” (SERP), promoveu relevantes alterações nas leis 4.591/64, 6.015/73 (Lei de Registros Públicos – LRP), 6.766/79, 8.935/94, 10.406/2002 (Código Civil), 11.977/09, 13.097/2015, e 13.465/17.
O projeto gestado inicialmente no Ministério da Economia tem por objeto principal promover a integração entre as especialidades das delegações extrajudiciais (CF, art. 236), buscando concentrar o acesso pelos utentes desses serviços públicos de notável repercussão social no ambiente eletrônico e com interoperabilidade entre eles.
Sem embargo, após idas e vindas no processo legislativo, a lei 14.382/22 foi publicada com relevantes alterações para os Ofícios de Registro de Imóveis, ganhando notável destaque o tema da incorporação imobiliária. O legislador houve por bem revolver a intricada e complexa questão atinente ao adequado tratamento registral dado para as frações ideais do terreno que corresponderão às unidades futuras quando da fase de incorporação de um empreendimento imobiliário (Lei 4.591/64).
Como a lei, antes da reforma, em nenhuma passagem havia dado uma diretriz concreta a respeito do tema, no âmbito das normatizações administrativas dos Estados, sobretudo das Corregedorias Gerais da Justiça, descortinaram-se duas posições bem delineadas: a primeira, que sustentava a impossibilidade de abertura de matrícula própria para as unidades em construção, pautando-se principalmente em sua inexistência físico-jurídica e eventuais consectários negativos de o empreendimento não progredir;1 e a segunda, que sustentava a plena possibilidade de se promover o descerramento de matrículas para as unidades futuras, após o registro da incorporação imobiliária, com arrimo em sua existência jurídica sob a ótica das frações ideais, ainda que por ficção legal.2
A primeira orientação, mais conservadora, é adotada de há muito pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo que criou a interessante e complexa sistemática das fichas complementares para serem escrituradas por ocasião da fase de incorporação imobiliária. A ideia fundamental é a segregação dos atos relativos apenas às unidades autônomas determinadas, em fichas individualizadas para cada uma delas, sem, no entanto, que isso implique em abertura de matrícula na fase de incorporação imobiliária. De tal modo, as fichas complementares ficam vinculadas à matrícula mestra do imóvel incorporado, de sorte que após a averbação da construção, com o registro da instituição e especificação do condomínio edilício, as mencionadas fichas complementares convolam-se, ipso facto, em matrículas autônomas; circunstância esta que é devidamente publicizada em cada uma das respectivas fichas através de averbação enunciativa.3
A redação das Normas de Serviço da Corregedoria paulista é bem ilustrativa e permite melhor visualização da sistemática de escrituração engendrada:
221.1. Independentemente da ficha auxiliar a que se refere o item 220, quando do ingresso de contratos relativos a direitos de aquisição de frações ideais e de correspondentes unidades autônomas em construção, serão abertas fichas complementares, necessariamente integrantes da matrícula em que registrada a incorporação.
221.2. Nessas fichas, que receberão numeração idêntica à da matrícula que integram, seguida de dígito correspondente ao número da unidade respectiva (Ex.: Apartamento: M.17.032/A.1; Conjunto: M.17.032/C.3; Sala: M.17.032/S.5; Loja: M.17.032/L.7; Box: M.17.032/B.11; Garagem: M.17.032/G.15, etc.), serão descritas as unidades, com nota expressa de estarem em construção, lançando-se, em seguida, os atos de registro pertinentes (modelo padronizado).
221.3. A numeração das fichas acima referidas será lançada marginalmente, em seu lado esquerdo, nada se inserindo no campo destinado ao número da matrícula.
221.4. Eventuais ônus existentes na matrícula em que registrada a incorporação serão, por cautela e mediante averbação, transportados para cada uma das fichas complementares.
222. Uma vez averbada a construção e efetuado o registro da instituição e especificação do condomínio, proceder-se-á à averbação desse fato em cada ficha complementar, com a nota expressa de sua consequente transformação em nova matrícula e de que esta se refere a unidade autônoma já construída, lançando-se, então, no campo próprio, o número que vier a ser assim obtido (modelo padronizado).
222.1. Antes de operada a transformação em nova matrícula, quaisquer certidões fornecidas em relação à unidade em construção deverão incluir, necessariamente, a da própria matrícula em que registrada a incorporação.
223. Para os cartórios que, na forma da determinação emergente do item 221, já adotem a prática rigorosa de registrar todos os atos relativos a futuras unidades autônomas na própria matrícula em que registrada a incorporação, será facultativa a adoção do sistema estabelecido nos itens 221.1 a 221.4, 222 e 222.1.
De outro bordo, a segunda orientação, adotada pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, autoriza o Oficial de Registro de Imóveis a proceder de plano, após o registro da incorporação imobiliária, a abertura de matrículas para as unidades autônomas que serão construídas, conforme descritivo constante do memorial de incorporação. A autonomia jurídico-registral das unidades, cada qual com seu fólio real próprio, parece atender com mais eficiência os princípios da unicidade matricial e da publicidade, facilitando sobremaneira a expedição de certidões. Simbolicamente, confira-se a redação da normativa fluminense:
Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas.
1º. Com o registro da incorporação imobiliária, a qualquer tempo é facultado ao incorporador requerer a abertura de tantas matrículas quantas sejam as unidades decorrentes do registro da incorporação realizada, entendida aí a descrição da futura unidade autônoma.
Argumenta-se a favor dessa corrente a necessidade de visão mais contemporânea e funcional do direito de propriedade, que não necessariamente – consideradas as vicissitudes sociais e econômicas próprias dos dias correntes -, devem respaldar o espelhamento no fólio real apenas de bens ou direitos tangíveis, concretos ou com lastro territorial determinado. É dizer, as inúmeras relações jurídicas emanadas da vida em sociedade e que, por força de lei refletem nos direitos reais sobre imóveis, como é o caso do direito real de laje, da multipropriedade imobiliária (time sharing) e dos multifacetados regimes condominiais (edilício – seja de casas, de apartamentos -, de lotes, urbano simples, etc.)4 merecem tutela registral mais eficiente; o que se alcança com descerramento de matrículas próprias para a laje, para a fração de tempo e para as unidades em construção, etc.
Há ainda importante argumento atrelado à Análise Econômica do Direito (AED): ao se deferir a abertura de matrícula para cada unidade em construção de um empreendimento, esta providência gera indissociável redução da assimetria informacional, permitindo-se que os players do mercado imobiliário possam contratar com mais segurança e eficiência sobre referidas unidades. Ainda hoje se observa que a vinculação das unidades autônomas em construção à matrícula-mãe gera certo atravancamento das negociações, dificultando liberações de crédito e concessões de financiamentos imobiliários. Em suma, ao se descerrar matrículas para as unidades individualmente, corrobora-se para evidente redução dos custos de transação, o que é extremamente positivo para o mercado imobiliário e, ao fim e ao cabo, para a economia nacional.
Foi exatamente com esse espírito que o legislador, através da lei 14.382/22, resolveu inovar sobre a matéria incluindo na Lei de Registros Públicos a possibilidade de abertura de matrículas para as unidades autônomas em construção após o registro da incorporação. Eis a redação do art. 237-A, § § 4º e 5º, da LRP:
4º É facultada a abertura de matrícula para cada lote ou fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma, após o registro do loteamento ou da incorporação imobiliária.
5º Na hipótese do § 4º deste artigo, se a abertura da matrícula ocorrer no interesse do serviço, fica vedado o repasse das despesas dela decorrentes ao interessado, mas se a abertura da matrícula ocorrer por requerimento do interessado, o emolumento pelo ato praticado será devido por ele.
É certo que os dispositivos gozam de patente heterotopia. Sua alocação em parágrafos de norma geral que trata de emolumentos não foi a mais feliz. No entanto, isso não lhes retiram a importância enquanto inovação legislativa para o sistema registral imobiliário, consolidando-se a ideia – é bom que se diga uma vez mais: já ventilada anterior e indiretamente por outras leis reformadoras – de que o princípio da unitariedade matricial não só existe como é a viga-mestra do sistema registral brasileiro, mas deve partir da premissa de que o objeto retratado na matrícula é um imóvel (ou direito a ele correlato), enquanto unidade econômica e não mais como unidade física, atrelada exclusivamente ao solo.
Na busca da melhor técnica registral, boa providência para descerrar a matrícula para cada unidade autônoma na fase de incorporação é promover sua descrição no preâmbulo matricial tal como apresentada no memorial da incorporação e, em ato subsequente, lançar a averbação noticiando que se trata de unidade em fase de construção. A ideia do averbamento enunciativo é informar que se trata efetivamente de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada. Tal providência permite melhor graficidade da matrícula, mormente quando, por ocasião do término das obras, for promovida a averbação da construção e a instituição do condomínio. Assim, ao final, não constará do preâmbulo da matrícula a expressão “em construção” ou outra congênere, evitando-se de modo mais eficiente interpretações equivocadas por parte dos consulentes do fólio.
Bem vistas as coisas, os dispositivos em testilha são harmônicos com as introduções feitas pela lei 14.382/22 na lei 4.591/64 ao criar um regime de condomínio especial que vigora temporariamente e com termos bem definidos: do registro do memorial de incorporação até a instituição do regime de condomínio edilício. Note-se que referido condomínio de frações ideais é peculiar, próprio do seu gênero, e não se confunde com o regime final, desejado, do condomínio edilício.
Por esse motivo o legislador expressamente declarou no art. 32, § 1º-A, da lei 4.591/64 que “o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos”.5
Na mesma medida, à luz da atual redação da lei 4.591/64, esse regime especial e intermediário de frações ideais (que corresponderão às futuras unidades) nasce com o registro do memorial de incorporação, (art. 32, caput), sendo certo que sua constituição é efeito automático daquele registro (art. 32, § 15). Em outras palavras, não se faz necessário qualquer providência registral adicional nesta fase de incorporação.6 Aqui reside a harmonia autorizante da abertura de matrículas para as unidades em construção, após o registro da incorporação imobiliária.
Coloca-se em evidência que este regime condominial especial,7 congênito ao registro da incorporação, não dispensa – e nem poderia – o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro (leia-se: de condomínio de frações ideais para o condomínio edilício). Noutras palavras, o registro da incorporação, que antecede a edificação do prédio e serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, em nada se relaciona com o nascimento jurídico das unidades em regime de condomínio edilício, ainda não instituído.8 Por possuírem naturezas e efeitos jurídicos distintos, o registro da incorporação não se presta a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial.9
Assim, simultaneamente ao ato de averbação da construção, deve ser feito o registro da instituição e especificação do condomínio, a fim de que, a partir desse instante, as unidades autônomas edilícias passem a existir juridicamente. Há, assim, contemporaneidade necessária entre o ato de registro da instituição condominial e o ato de averbação da construção do edifício. Se este último tem o efeito jurídico da individualização e discriminação das unidades autônomas, insta, à evidência, que essas mesmas unidades, naquele instante, existam jurídica e registrariamente, o que só se dá com o registro da instituição e especificação do condomínio.10
Tal conclusão não necessita de qualquer esforço hermenêutico, e pode ser haurida sem dificuldade da simples leitura do art. 7º da lei 4.591/1964.11 Demais disso, a própria Lei de Registros Públicos no seu art. 167, I, nº 17, exige o registro da instituição do condomínio edilício com autonomia em relação ao registro da incorporação.12 Este é o entendimento consolidado na Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo há, ao menos, quatro décadas:
Ora, é translúcido que, como, por hipótese, a construção não está ainda concluída, não havendo excogitar sequer da realidade física dos apartamentos, os negócios jurídicos só podem respeitar a direitos de aquisição, concernentes às acessões em obras e às respectivas frações ideais de terreno. A esses atos jurídicos é que a Lei se refere no exemplificar os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas (art. 32, § 1º, da Lei 4.591/64). Jamais poderiam entender com as unidades autônomas, no seu rigoroso sentido técnico, que se trata de realidades jurídicas por nascerem de providências consequentes, ou seja, do registro da instituição condominial. Nem mesmo sob a vigência do Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, se controverteu que o exsurgimento jurídico do condomínio em edifício, ou propriedade horizontal, depende do registro do título constitutivo e individuante das unidades autônomas (cf. SERPA LOPES, “Tratado dos Registros Públicos”, Freita Bastos, 5ª ed., 1962, vol. IV, págs. 274 e 275, nº 680). E incisiva, no particular, a disposição do art. 7º, cc. art. 44 e §§, da Lei 4.591/64, que assentou o princípio de que “o registro é requisito formal ad substantiam, e, que sem ele, não há condomínio por unidades autônomas” (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “Condomínio e Incorporações”, Forense, 1ª ed., 1965, pág. 98, nº 54. Grifos do original)‘. Tem-se, pois, que até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios, situação que, aliás, foi considerada pelo legislador ao dispor no item 3 da Tabela II da Lei Estadual nº 11.331/02 que: “Com respeito à aquisição de frações ideais de terreno vinculadas a futuras unidades autônomas, no regime de incorporação, a cobrança de emolumentos será feita em duas etapas. Quando do registro de alienações de frações ideais do terreno, os emolumentos serão calculados sobre o valor da fração ideal do terreno, constante da escritura ou seu valor venal correspondente, o que for maior. Efetivada a instituição do condomínio especial, sem prejuízo dos emolumentos devidos por este ato, serão cobrados emolumentos referentes a cada unidade autônoma, considerando o valor derivado da edificação realizada ou do negócio jurídico celebrado, o que for maior”13
Dito de outro modo, o contrato de incorporação extingue-se com a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações e sua entrega aos adquirentes em condição de habitabilidade. Bem se vê, destarte, que o registro da incorporação imobiliária não pode se prestar a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial. Consoante já se observou, este último registro é, afinal, aquele que dá existência jurídica às unidades autônomas construídas. Sem ele, pois, não se terá mais que uma realidade física, se muito, representada pela edificação, mas não levada ao registro.
Vale lembrar, ainda, que o art. 1.332 do Código Civil também é claro ao disciplinar a instituição do condomínio edilício como instituto diverso e autônomo à incorporação imobiliária:
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III – o fim a que as unidades se destinam.
Na mesma diretriz é a didática lição de Ademar Fioranelli:
Ledo engano pensar que o condomínio nasça com o registro da incorporação; no entanto, sem ele, obviamente não se chega àquele. Trata-se de um procedimento inicial de efeito temporário cuja principal finalidade é proteger os aderentes do empreendimento, desde que se faça o arquivamento no Registro de Imóveis competente de toda documentação elencada no artigo 32 da lei 4.591/64, até a efetiva entrega das unidades autônomas.14
Em arremate, com a reforma legislativa perpetrada pela lei 14.382/22, pode-se concluir que optando o empreendedor pelo regime de incorporação imobiliária e todos seus benefícios subjacentes: (i) exsurge com o seu registro a possibilidade de alienar as unidades futuras em construção (art. 32, caput); (ii) unidades futuras essas que poderão contar desde logo com matrícula própria, distinta da matriz registral do empreendimento (LRP, art. 237-A, §§ 4º e 5º), já que o registro da incorporação gera, ope legis, um condomínio especial sobre as frações ideais (Lei 4.591/1964, art. 32, §1º-A e § 15); (iii) sendo indispensável, após a expedição do “habite-se“, a averbação da construção e o registro em sentido estrito da instituição e especificação do condomínio edilício (Lei 4.591/1964, art. 7º c.c. LRP, art. 167, I, nº 17).
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1 A título de ilustração, esta diretriz era traçada, dentre outros, nos Estados de São Paulo e do Paraná. Confira-se a redação da normativa paulista a este respeito: “221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas”.
2 Já adotavam este entendimento, dentre outras, as normativas estaduais de Goiás, do Rio Grande do Sul e do Rio de janeiro. Ilustre-se a intelecção com a redação da norma goiana: “Art. 1.060. Antes de concluída a obra, poderão ser abertas matrículas para as unidades autônomas, a pedido o incorporador ou em razão do registro de contratos, transportando-se os eventuais ônus existentes. Parágrafo único. Na hipótese de que trata o caput, deverá constar averbação expressa de que se trata de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada”.
3 Importa salientar que esta sistemática é de adoção facultativa pelo registrador de imóveis que, por técnica de registro, pode optar, na fase de incorporação, pelo lançamento de todos os atos de registro ou de averbação, referentes a todas as unidades do empreendimento, na matrícula matriz. No entanto, não é difícil imaginar que a manutenção de única matriz tabular para lançamento de atos relativos a todas as unidades de empreendimentos que possuem centenas delas gera uma complexidade imensa de controle da disponibilidade e, na mesma medida, dificulta a publicidade registral.
4 Registre-se que a lei 14.382/22, em espírito inovador, houver por bem criar interessante regime híbrido entre as modalidades de parcelamento do solo e a incorporação imobiliária. Eis a nova disciplina do art. 68 da Lei 4.591/1964: “Art. 68. A atividade de alienação de lotes integrantes de desmembramento ou loteamento, quando vinculada à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 desta Lei ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, caracteriza incorporação imobiliária sujeita ao regime jurídico instituído por esta Lei e às demais normas legais a ele aplicáveis. § 1º A modalidade de incorporação de que trata este artigo poderá abranger a totalidade ou apenas parte dos lotes integrantes do parcelamento, ainda que sem área comum, e não sujeita o conjunto imobiliário dela resultante ao regime do condomínio edilício, permanecendo as vias e as áreas por ele abrangidas sob domínio público. § 2º O memorial de incorporação do empreendimento indicará a metragem de cada lote e da área de construção de cada casa, dispensada a apresentação dos documentos referidos nas alíneas e, i, j, l e n do caput do art. 32 desta Lei. § 3º A incorporação será registrada na matrícula de origem em que tiver sido registrado o parcelamento, na qual serão também assentados o respectivo termo de afetação de que tratam o art. 31-B desta Lei e o art. 2º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, e os demais atos correspondentes à incorporação. § 4º Após o registro do memorial de incorporação, e até a emissão da carta de habite-se do conjunto imobiliário, as averbações e os registros correspondentes aos atos e negócios relativos ao empreendimento sujeitam-se às normas do art. 237-A da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos)”.
5 O discrímen fica evidente quando a mesma lei 14.382/22, no que toca ao regime das retificações de registro, e a necessidade de anuência ou notificação dos confinantes, deliberou que no caso de condomínio edilício será de rigor sua representação pelo síndico; já no caso do condomínio de frações ideais sua representação será pela comissão de representantes (LRP, art. 213, § 10, II). Fosse o mesmo condomínio tratado pelo legislador, à evidência, não haveria necessidade da distinção.
6 Art. 32, § 15, da lei 4.591/64. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.
7 De ver-se que o § 15 do art. 32 não cuida propriamente de novidade. O legislador apenas incorporou no texto da norma aquilo sempre existiu como efeito jurídico do registro da incorporação imobiliária. Veja-se passagem emblemática da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo a este respeito: “O registro da instituição e especificação do condomínio, portanto, é essencial para que deixe de existir o regime de comunhão em frações ideais sobre o terreno e passe a existir o instituto do condomínio edilício que importa em coexistência de propriedade exclusiva sobre as unidades autônomas (apartamentos, lojas, garagens etc.) e copropriedade sobre o todo do terreno e sobre as partes do edifício de uso comum dos condôminos” (CGJSP – Processo 0029914-40.2017.8.26.0576, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.26/04/2019).
8 “Como é curial, e claramente depreendido dos termos do art. 32 da lei 4.591, o registro da incorporação serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, com garantia e segurança dos adquirentes. Evidentemente, tal registro em nada se relaciona com o nascimento jurídico destas unidades do condomínio, ainda não instituído. A situação da incorporação é por natureza efêmera, pois não vai além da conclusão da edificação. A incorporação reveste índole de transitoriedade, exaurindo-se com o término da edificação” (CGJSP – Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994).
9 A instituição de condomínio é fase superveniente à construção e se destina à individualização das unidades autônomas a que são vinculadas as frações ideais relativamente ao terreno e às partes comuns do edifício e à indicação do fim a que se destinam, constituindo, assim, autêntico procedimento divisório entre os comunheiros, como ensinam Nisske Gondo e Nascimento Franco: “Como se vê, a especificação do condomínio, com a atribuição aos condôminos, de partes ideais do terreno, áreas e coisas de uso comum, é um autêntico procedimento divisório entre os comunheiros” (FRANCO, João Nascimento; GONDO, Nisske. Condomínio em edifícios. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 27).
10 CGJSP – Processo 1005346-86.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.09/02/2021.
11 Art. 7º da lei 4.591/64. O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dele constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade.
12 Art. 167, I, nº 17, da LRP. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio.
13 CGJSP – Processo 1014097-36.2020.8.26.0309, Des. Ricardo Mair Anafe, j.06/10/2021. Nesse sentido é farta a jurisprudência paulista, que vem sendo reiterada há décadas: CSMSP – Apelação Cível 1.176-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.28/06/1982; CSMSP – Apelação Cível 1.846-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.19/04/1983; CSMSP – Apelação Cível 2.145-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.04/04/1983; CSMSP – Apelação Cível 286.693, Rel. Des. Humberto de Andrade Junqueira, j.17/12/1979; CGJSP – Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994; CGJSP – Processo 511/2005, Des. José Mário Antonio Cardinale, j.15/09/2005; CGJSP – Processo 1004386.56.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.11/02/2021;
14 FIORANELLI, Ademar. Condomínio Edilício Incorporação Imobiliária: Registro de Atribuição de Unidades Autônomas. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra e Gilberto Carlos Maistro Júnior, coordenadores. Direito Imobiliário. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. p. 272.
*Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é registrador de Imóveis no Estado de São Paulo. Exerce atualmente a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR) nos departamentos de Direito e Economia e de Registro de Imóveis. Professor de Direito Notarial e Registral em cursos de graduação e pós-graduação. Autor da obra “Alienação Fiduciária de Bens Imóveis”, pela Editora Thomson Reuters – RT, atualmente em sua 2ª edição (2022).
Fonte: Migalhas