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Migalhas – Artigo: O consumidor e a MP 1.085/21 – Por José Geraldo Brito Filomeno
O CDC – Código de Defesa do Consumidor, cujos 31 anos de vigência se comemoraram no dia 12 de março deste ano, parte do evidente pressuposto de que o consumidor é personagem vulnerável nas relações de consumo. Desta forma, não há como negar que os serviços prestados pelos notários de modo geral, são relações de consumo e, por isso mesmo sujeitos ao seu ordenamento, a teor do que dispõem o seu art. 3º, caput, e § 2º. E também, à toda evidência, os compromitentes-vendedores e agentes financeiros na oferta de bens imóveis, construídos ou loteados para edificação. Sob tal enfoque, preocupa-nos sobremaneira o disposto no art. 6º da MP 1.805/21, na medida em que cria um tal de extrato eletrônico dos atos aquisitivos de imóveis por uma entidade privada, a ser criada, a SERP – Serviço Eletrônico de Registros Públicos. Ou seja: ao invés de escrituras públicas ou mesmo contratos com força delas, estabelecidos no âmbito de instituições financeiras, somente serão levadas a registros (matrículas, averbações, inscrições etc.), mediante seus extratos. Ora, referido dispositivo fere frontalmente os princípios da vulnerabilidade e segurança jurídica dos respectivos consumidores compromissários-compradores. Com efeito, hoje em dia, como se sabe, quase a totalidade dos contratos o são por ou de adesão. Ou seja: aqueles cujas cláusulas tenham sido aprovadas por uma autoridade competente (e.g., os de seguro, pela SUSEP), ou estabelecidas unilateralmente por uma das partes (fornecedores de produtos e serviços em geral), sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
Antigamente, à luz do Código Civil de 1916, referidas cláusulas eram popularmente chamadas de leoninas, por razões óbvias: uma das partes é quem dita e cobra as condições dos contratos, sem qualquer possibilidade de intervenção da outra parte, no caso, o consumidor. A teor de modificações que já haviam sido trazidas em 1994 em matéria de contratos imobiliários mediante financiamentos, com efeito, os bancos passaram a assumir, em última análise, a função notarial. Só que obrigados a seguirem os mesmos regramentos exigidos daquela mesma função. Isto na confecção dos formulários de compromissos de compra e venda, com valor de escritura pública. Ora, dentre os princípios previstos pelo CDC, no sentido de ao menos prevenirem-se lesões aos consumidores nesses contratos, destacam-se, com efeito, em matéria contratual, cujo conteúdo será entabulado entre as partes e posteriormente transcrito em suas notas, as seguintes salvaguardas: 1) Presunção de Desconhecimento pelo consumidor do Conteúdo desses Contratos e sua Extensão, a teor do art. 46 do CDC: “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”; isto quer dizer, em última análise, que embora assinado, o contrato não surtirá qualquer efeito, nas referidas circunstâncias; 2) Princípio de Interpretação mais Favorável ao Consumidor, conforme art. 47: “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor; isto está a indicar que ao juiz de determinada causa em que se discuta a interpretação de certas cláusulas contratuais, recomenda-se que o faça de maneira mais favorável ao consumidor. Ora, se a ausência de uma fase de puntuação ou discussão prévia de cláusulas contratuais em adesões incondicionais é uma características de contratos de adesão, imagine-se agora, se convertida em lei efetiva, uma medida provisória que impede qualquer tipo de intervenção da parte mais vulnerável. Ou seja, baseando-se o registro de imóveis apenas e tão-somente num extrato, produzidos pelos próprios agentes financeiros que detêm todas as garantias (i.e., agentes financeiros, incorporadoras, loteadoras)? E para colimar tudo isso, a MP 1.085/21 institui o tal SERP – Serviço Eletrônico de Registros Públicos, sem forma nem figura de juízo, e com poderes totais sobre tais negociações (cfr. art. 7º da mesma MP). Ora, conforme é sabido, já há lei específica (lei 11.977/09), e implementada de fato e de direito, que disciplina a instituição de Sistemas Eletrônicos Digitais, geridos pelos próprios serviços registrais, não havendo qualquer justificativa para a instituição de um outro, não se sabe gerido por quem ou porque razão. E, além do mais, instituindo-se uma denominada Chave Eletrônica, também privada à guisa de fornecedor de uma assinatura digital a ser aposta nos documentos igualmente eletrônicos.
Observem-se, portanto, os abusos contidos na referida MP, afetando diretamente os consumidores, futuros compromissários-compradores de bens imóveis, por exemplo: a) desconhecimento total do conteúdo dos instrumentos elaborados pelos próprios agentes econômicos envolvidos nas transações; b) utilização de um sistema privado, obviamente oneroso, além de uma assinatura eletrônica por meio digital, quando já existe um instrumento eficiente de chaves públicas e gratuitas. São essas as nossas preocupações enquanto consumerista; c) abandono das boas e tradicionais práticas do sistema notarial brasileiro quanto à chamada filiação imobiliária, que dá a todos a segurança necessária para que sejam surpreendidos por entraves e, sobretudo, ônus recaentes sobre os imóveis negociados. Em nossa vida profissional como Promotor de Justiça do Consumidor, não foi uma nem foram duas, apenas, hipóteses de terrenos incorporados mas, por omissões fraudulentas, que causaram prejuízos a dezenas de adquirentes de unidades em edifícios que, exatamente por isso, jamais foram erguidos.
*José Geraldo Brito Filomeno é advogado, consultor jurídico (Bonilha & Dias Teixeira – Advogados) e professor especialista em direito do consumidor, foi um dos autores do anteprojeto do vigente código de defesa do consumidor.
Fonte: Migalhas