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Migalhas – Artigo: O acesso à justiça e o registro de imóveis – Por Robson Martins e Érika Silvana Saquetti Martins

Houve reforço a tal princípio no Código de Processo Civil de 2015, pois o caput do artigo 3º assevera não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, ou seja, a atuação da justiça poderá ser anterior, através de liminares ou mesmo de tutela de urgência antecipada.

27-10-2022

O acesso à justiça é uma das bases do Estado Democrático de Direito, já que consiste num princípio geral do próprio direito, na exata medida em que a justiça é valor ínsito ao ser humano, carente muitas vezes de itens essenciais à sobrevivência e existência digna, mas que em momentos conflituosos, necessita de buscar a justiça para assegurar o mínimo existencial.

Destarte, o acesso à justiça é previsto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, em que se preceitua a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, reforçado pelo inciso LXXIV, em que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Houve reforço a tal princípio no Código de Processo Civil de 2015, pois o caput do artigo 3º assevera não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, ou seja, a atuação da justiça poderá ser anterior, através de liminares ou mesmo de tutela de urgência antecipada.

O fato é que a justiça, como valor soberano e poder constitucional previsto na CF/88, em face da enormidade de processos existentes em tramitação, bem como da importância de tal poder para resolução de conflitos, em um país continental como o Brasil, multiplicou os feitos, gerando a letargia, muitas vezes, da própria justiça, pois são poucos os Juízes no país.
Para tal fator de extrema judicialização, explica Barroso[1]:

[…] Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade so parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade […]

Importante mencionar o que o próprio Conselho Nacional de Justiça [2] revelou recentemente, quanto aos números de processos julgados e em tramitação:

[…] O Poder Judiciário concluiu 26,9 milhões de processos em 2021, uma expansão de 11,1% no número de casos solucionados em relação a 2020. No mesmo período registrou-se o ingresso de 27,7 milhões de novas ações – incluídas as que retornaram a tramitar -, revelando um crescimento de 10,4%. Desses processos, 97,2% chegaram à Justiça já em formato eletrônico, de acordo com o Relatório Justiça em Números 2022, divulgado nesta quinta-feira (1º/9) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na sede do órgão, em Brasília […]

Percebe-se, portanto, que se o Judiciário julga milhões de processos em um ano, uma quantia superior, todo ano, adentra sistematicamente em tramitação, o que se torna um ciclo sem fim, deletério para o próprio funcionamento da justiça. Em tal contexto, não há como deixar de perceber, ao longo dos anos, o fenômeno da solução consensual dos conflitos ou desjudicialização, seja através da arbitragem, mediação ou conciliação.

O acesso à justiça precisa ser efetivo, eficiente e célere, pois de nada adianta alguém ajuizar uma ação que demore 10, 20 ou 30 anos para solução, quando, por muitas vezes, o autor/réu já nem estará vivo para aguardar ou usufruir o desfecho de algo importante para o deslinde de suas próprias vidas.

Ademais, o custo para o acesso à justiça muitas vezes se torna um obstáculo a própria garantia fundamental, como asseverou CAPPELLETTI [3]:

[…] Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de “efetividade” é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa ‘igualdade de armas’ – a garantia de que a conclusão final depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo. Em outras palavras, quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça podem e devem ser atacados? (…) A resolução formal dos litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior parte das sociedades modernas […]

Veja-se que todos os direitos, em um Estado Democrático de Direito, têm algum custo, seja para o Estado, seja para o próprio cidadão, pois tudo tem gastos, ainda que sejam aparentemente gratuitos. Assim é que Stephen Holmes e Cass R. Sustein[4] pontuam:

[…] Embora o custo dos direitos seja quase um truísmo, soa antes como um paradoxo, uma ofensa às boas maneiras, talvez mesmo como uma ameaça à própria preservação dos direitos. Afirmar que um direito tem um certo custo é confessar que temos de renunciar a algo para adquiri-lo ou garanti-lo. Ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão […]

O acesso à justiça, como todo direito fundamental, também tem um custo, que é também financeiro, mas também de tempo da parte que aguarda uma definição justa do quê é colocado a julgamento ao Juiz. Por outro lado, também se verifica que os emolumentos devidos às serventias extrajudiciais são, muitas vezes, menores que os gastos devidos para um processo perante o poder judiciário.

O direito de propriedade imóvel, além de ser garantido pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, dessume-se, muitas vezes, na única forma real de patrimônio de uma pessoa, que ali deflui anos de vida e trabalho para conseguir uma moradia, por exemplo, ou até mesmo um imóvel comercial para o trabalho.

Neste aspecto, verifica-se que o registro de imóveis é uma serventia extrajudicial abarcada pelo artigo 236 da CF/88, no sentido de que é exercido em caráter privado, por delegação do Poder Público, ou seja, um particular, aprovado em concurso de provas e títulos, cuidará de todo emaranhado de documentos relativos aos imóveis daquele local, precipuamente a cadeia dominial e seus reflexos legais, sob a supervisão do Poder Judiciário.

Numa perspectiva mais ampla, e visando efetivar acesso à justiça tem ocorrido, nos últimos anos, o fenômeno da desjudicialização, ou seja, o Congresso Nacional, consciente de que o poder judiciário já possui inúmeros afazeres, com situações graves colocadas para julgamento, pode propiciar que o registrador de imóveis efetive um direito que anteriormente era restrito apenas ao Juiz.

Aperfeiçoando então a legislação, citamos como exemplo algumas situações importantes para o aperfeiçoamento do acesso à justiça, através do registro de imóveis, como a da lei 10.931/04, que alterando a lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), possibilitou a retificação, na própria serventia de registro de imóveis, sem atuação do Poder Judiciário ou do Ministério Público.

Assim é que de ofício ou a requerimento do interessado, o Registrador de Imóveis poderá retificar o registro em casos de omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título, indicação ou atualização de confrontação, alteração de denominação do logradouro público, além de indicação de rumos, ângulos de deflexão ou inserção de coordenadas georreferenciadas.

Poder-se-á também retificar administrativamente o registro de imóveis em casos de alteração ou inserção que resulta de mero cálculo matemático, reprodução de descrição de linha divisória de imóvel confrontante que já tenha sido objeto de retificação ou ainda inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes.

Há possibilidade, também, de que a requerimento do interessado, seja efetivada retificação em caso de inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura – CREA, bem assim pelos confrontantes.

Outra forma também de acesso à justiça no registro de imóveis foi a usucapião extrajudicial, antes somente reservada ao poder judiciário, assim, o artigo 216-A da lei 6.015/73 permitiu que o interessado solicite, através de requerimento no registro de imóveis do local do imóvel, instruindo-o com vários documentos, dentre eles a ata notarial lavrada por Tabelião de Notas.

Já o artigo 251-A da lei de Registros Públicos (6015/73) também trouxe inovação, quando ao cancelamento, por falta de pagamento, do compromisso de compra e venda de imóvel, permitindo que o registro de imóveis intime o promitente comprador a quitar as parcelas vencidas e as vincendas, agilizando a quitação.

Por último, temos que o artigo 251-B da lei 6.015/73 também inovou, na medida em que a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser realizada extrajudicialmente, perante o registro de imóveis do local de situação do imóvel objeto de questionamento.

Assim é que se assegura agilidade aos procedimentos mencionados, que antes demoravam muitos anos para resolução perante o poder judiciário, trazendo efetividade à garantia fundamental da duração razoável do processo, pois, conforme Alexandre Câmara[5]:
[…] a garantia de duração razoável do processo deve ser compreendida, então, de forma panorâmica, pensando-se na duração total do processo, e não só no tempo necessário para se produzir a sentença do processo de conhecimento […].

A concatenação efetiva e célere dos atos procedimentais perante o registro de imóveis, com menor custo para a garantia de direitos assegurados pela Constituição Federal, seja para retificação, usucapião, adjudicação compulsória ou execução do compromisso de compra e venda, garantem, a um só tempo, um acesso igualitário à justiça, proporcionando maior paz social e equidade aos cidadãos do país, concretizando um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

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[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 10 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 443

[2] https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2022-judiciario-julgou-269-milhoes-de-processos-em-2021/

[3] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 15.

[4] HOLMES, Stephen; SUSTEIN, CASS R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, p. 13.

[5] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 8.

Autores:

Robson Martins é doutorando Direito UERJ. Mestre Direito UFRJ. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.

Érika Silvana Saquetti Martins é doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Fonte: Migalhas