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Migalhas – Artigo: Notas sobre a atuação do Ministério Público no registro de imóveis – Por Robson Martins e Érika Silvana Martins
Os atos e negócios jurídicos imanentes por atos entre vivos e causa mortis são delineados, em geral, perante as serventias extrajudiciais do país. Num primeiro momento, para efetivação de uma compra e venda de imóvel acima de 30 salários-mínimos, por exemplo, é mister a lavratura de uma Escritura Pública, conforme artigo 108 do Código Civil:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
Por sua vez, num momento sequencial, para aquisição do direito à propriedade, com exceção de aquisições originárias, tais como a usucapião, mister a estrita formalidade de seu registro perante a serventia de Registro de Imóveis, na forma do artigo 1245, caput do Código Civil: “[…] Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.
Portanto, em vários momentos do Código Civil e em leis esparsas, tais como o Estatuto da Cidade, lei do Programa Minha Casa Minha Vida, Casa Verde Amarela, lei 6.015/73, lei 8.935/94, lei 4.591/64, lei 6.766/79, dentre tantas outras, existem disposições claras acerca da efetivação de tal imprescindibilidade dos atos notariais e registrais para a consecução do princípio da segurança jurídica e do direito à propriedade previsto no artigo 5º, caput da CF/88.
Deveras, na República Federativa do Brasil, a atividade exercida no âmbito notarial e/ou no âmbito registral visa a conferir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos realizados por usuários dos serviços extrajudiciais, ou seja, serviço altamente qualificado e importante para a sociedade como um todo, conforme preconiza o artigo 1º da já citada lei federal 8.935/94.
Tal lei determina ainda, no mesmo citado artigo, que os “cartórios”, cujo fim manifesto é o de outorgar aquelas quatro garantias legalmente estabelecidas e cujo nome técnico é o de serventias notariais e registrais, configuram-se em serviços de organização técnica e administrativa, desempenhados, na esfera extrajudicial, por pessoas naturais, as quais são, por sua vez, não só profissionais do Direito, como tecnicamente batizadas de notários, ou Tabeliães de Notas, e de Registradores, ou ainda Oficiais de Registros, conforme a função pública que desempenhem.
Para exercerem a atividade notarial e/ou registral, tanto dos notários, quanto dos registradores devem satisfazer os requisitos legalmente impostos: primeiro, de serem eles aprovados em concursos públicos de provas e de títulos; depois, de terem nacionalidade brasileira; em terceiro lugar, de serem dotados de plena capacidade civil; ainda, de estarem quites com as obrigações eleitorais e, se o caso, militares; em quinto plano, de deterem o grau acadêmico de bacharel em Direito, e, por fim, de portarem conduta condigna com o exercício da profissão, conforme artigo 14, caput e incisos de I a VI da lei 8.935/94.
Em verdade, portanto, inexistem os chamados “cartórios”, conquanto, por atecnia, vários dispositivos legais ainda assim se refiram. O que há são particulares que atuam em colaboração com a Administração Pública, depois de receberem, da parte do Poder Público, delegação para o correspondente exercício da função pública de notário e/ou de registrador, e que realizam tais atividades, seja pessoalmente, seja com a assistência de auxiliares e de escreventes por eles contratados, conforme faculta a lei (lei 8.935/94, art. 20, caput).
Além da finalidade legalmente expressa, da conferência, por tais serviços, de publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos e negócios jurídicos realizados pelos usuários dos serviços extrajudiciais, há um outro fim da atividade notarial e registral, o qual não pode passar despercebido, mormente nos tempos atuais, quando se verifica o estado de assoberbamento vivido pelo Poder Judiciário nacional, que chegou ao fim do ano-base de 2017, com a tramitação de mais de oitenta milhões de ações à espera de julgamento final (CNJ, 2018, p. 73).
Nesse contexto de desjudicialização, ou seja, da retirada da órbita da competência do Estado-juiz, dos atos e dos procedimentos elimináveis ou transferíveis a outras entidades, para, desse modo, salvaguardar o núcleo essencial da função judicante, os serviços extrajudiciais estão na linha de frente, vez que evitam que as pretensões resistidas de interesses jurídicos, tecnicamente ditas lides, alcancem o Poder Judiciário (SANTA HELENA, 2006).
O Brasil conta atualmente com a organização do Poder Judiciário com 26 Tribunais de Justiça (TJs) Estaduais e um Distrital; cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs); 24 Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs); 27 Tribunais Regionais Eleitorais (TREs); três Tribunais de Justiça Militar Estaduais (TJMs); o Superior Tribunal de Justiça (STJ); o Tribunal Superior do Trabalho (TST); o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); o Superior Tribunal Militar (STM) e o Supremo Tribunal Federal (STF), o que demonstra a intensa litigiosidade de nossa população, precipuamente pelo excesso de leis e infringência a direitos básicos, ocasionados pelo próprio Estado.
Em contraste, a lei 8.935/94 elenca as diversas espécies de serviços notariais e registrais, portanto, os notários seriam os tabeliães de notas, de protestos de títulos e documentos e os tabeliães e registradores de contratos marítimos. De outro giro, no que concerne aos registradores, seriam oficiais de registro de contratos marítimos, de imóveis, de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas, das pessoas naturais e de interdições e tutelas, bem como os oficiais de registro de distribuição.
Historicamente, a atividade notarial e registral tem seus primórdios na Antiguidade Oriental, na figura dos escribas (sesh), provavelmente surgidos no Antigo Egito, no período aproximado de 3.100 antes de Cristo (a.C.) até 2.160 a.C. Também, na Bíblia Sagrada, há referência aos escribas, conforme se lê no Novo Testamento, nos livros 22 de Mateus e 5º de Lucas, nos versículos respectivamente 35 e 17 (SBB, 2012, s/p.).
Acerca de tal história dos escribas, diz Loureiro (2018, p. 52):
Sobretudo nas sociedades onde reinava a ignorância, onde a maior parte das pessoas não dominava a escrita e não tinha acesso às fontes do direito, nos parece razoável crer na existência de ‘profissionais’ jurídicos, ainda que não fossem juristas, mas tivessem apenas domínio da escrita e da prática jurídica. Como observa Ihering o juiz romano não era necessariamente um jurista, como também não o eram o magistrado e o notário da alta idade média.
Neste ambiente surgiram os tabeliães em Toma, que nada mais era do que meros escrivães e, no início da idade média (sécs. VI a XI), os protonotários”, os embriões dos modernos notários, ou seja, profissionais dotados de bom senso que detinham um conhecimento da prática jurídica e que auxiliavam os particulares na redação de contratos e outros documentos onde expressavam suas vontades. Por isso, afirma GONZALES PALOMINO que o notário, como o jurisconsulto romano, é uma criação social e não uma criação das normas e, neste fato, radica a força, a vitalidade e a própria organização legal do notarial.
No Brasil, especificamente, acerca da atividade notarial e registral, deve-se destacar que somente a União pode legislar acerca dos Registros Públicos, consoante o artigo 22, inciso XXV, da Constituição Federal, que diz: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXV – Registros Públicos”.
Ademais, o § 1º do artigo 236 da CF assevera que: “[…] Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”, portanto, os Estados e o DF somente podem legislar sobre procedimentos, mas o direito registral é privativo da União.
Em um fenômeno sem volta faticamente, a desjudicialização vem se tornando materialmente factível, dado que desde a lei 11.441 de 2007 os Tabeliães de Notas podem efetivar escrituras de divórcio, separação e de inventário e partilha. Nesta esteira, a recente lei 14.382/22 promoveu profundas alterações nos registros públicos, permitindo, por exemplo, a adjudicação compulsória direta e inversa nos Registros de Imóveis, promovendo eficiência em prol da sociedade.
Já o Ministério Público, embora com origens remotas identificadas no Antigo Egito, foi somente no Direito Grego da Idade Antiga que o Ministério Público veio a adquirir uma feição mais compatível com a atual, principalmente no que diz respeito à sua função de acusar o perpetrador, ou autor de uma infração.
Há autores que creditam o surgimento das principais características da instituição ministerial à Antiguidade Clássica, especificamente à Grécia Antiga, eis que o temosteta (ou temósteta) tinha o ofício de acusar. Sua origem mais próxima, no entanto, encontra-se no Direito Francês, nos procuradores do Rei (em francês,”procureurs du Roi”).1
O Ministério Público corrobora o próprio princípio da legalidade. Quanto aos direitos humanos, o acesso à justiça penal e cível por órgão oficial do Estado, embora preserve o acusado de uma pena arbitrária sem um processo movido pela autoridade competente, reveste-se de especial importância quanto à impunidade.2
Se o direito de punir qualquer cidadão pertence ao Estado-Administração, ao Ministério Público, órgão ao qual foi delegado esse direito, compete agir de maneira firmeza e altiva, sob pena de serem feridos impunemente direitos humanos, algo que era corrente no sistema inquisitório.3
Desse modo, as garantias institucionais entregues ao parquet pela Constituição de 1988 no âmbito processual e administrativo dirigem-se, também, à proteção às garantias individuais dos acusados em geral, determinando-se, nesse mesmo sentido, a possibilidade da revisão interna corporis da atuação do órgão ministerial.
Imperioso ressaltar que inicialmente, para ingresso na função, tanto o membro do Ministério Público (Promotor ou Procurador), quanto o notário ou registrador necessitam de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, contudo, o Ministério Público sempre participará dos concursos de notários e registradores, conforme artigo 15 da Lei 8.935/94
Art. 15. Os concursos serão realizados pelo Poder Judiciário, com a participação, em todas as suas fases, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, de um notário e de um registrador
Neste viés, demonstra-se uma verdadeira transparência e legitimidade nos concursos públicos, já que desde a fase inicial já existe uma verdadeira fiscalização pelo Parquet dos Estados ou do Distrito Federal, tanto é que os membros do MP podem ingressar livremente nas serventias extrajudiciais, conforme artigo 41, inciso VI, alínea ‘b’ da lei 8.625/93:
Art. 41. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica (…)
VI – Ingressar e transitar livremente (…)
b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, tabelionatos, ofícios da justiça, inclusive dos registros públicos, delegacias de polícia e estabelecimento de internação coletiva;
Como forma de delinear algumas atividades que o Ministério Público participa perante as serventias de registros de imóveis, temos que há grande importância de fiscalização na sucessão dos ausentes, conforme artigo 33 do Código Civil:
O descendente, ascendente ou cônjuge que for sucessor provisório do ausente, fará seus todos os frutos e rendimentos dos bens que a este couberem; os outros sucessores, porém, deverão capitalizar metade desses frutos e rendimentos, segundo o disposto no art. 29, de acordo com o representante do Ministério Público, e prestar anualmente contas ao juiz competente.
Portanto, os rendimentos e frutos dos bens imóveis do ausente terão uma rigorosa fiscalização por parte do Ministério Público. Já no que tange à desconsideração da pessoa jurídica, com claro nexo nos registros de imóveis, não se pode olvidar que o Ministério Público, em situações de desconsiderações de personalidade jurídica, inclusive inversa, indireta ou expansiva, conforme artigo 50 do Código Civil:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Por sua vez, o Ministério Público é o curador das fundações privadas ou públicas de direito privado, pois o artigo 66 do Código Civil assevera “[…] Art. 66. Velará pelas fundações o Ministério Público do Estado onde situadas”, sendo que no Distrito Federal será responsável pela curadoria o MPDFT.
Importante mencionar que a Consolidação Normativa Notarial e Registral do Rio Grande do Sul, por exemplo, destaca a relevância da atuação ministerial no que tange à possibilidade de irregularidade em loteamentos de imóveis, conforme se verifica nos artigos 691 e 867 da CNNRS:
Art. 691 – Havendo indícios suficientes ou evidências da constituição de loteamento de fato, o Registrador comunicará o Ministério Público, anexando documentação disponível.
Art. 867 – Se houver indícios suficientes ou evidência de loteamento de fato, deve o Tabelião de Notas fazer comunicação ao Juiz Diretor do Foro, anexando a documentação disponível, que encaminhará o expediente ao Ministério Público.
Isto reflete, a um só tempo, a importância do Promotor de Justiça como função relevante, indispensável ao ordenamento das cidades e respeito ao Plano Diretor, com o objetivo de preservar diretrizes mínimas em sua ordenação, bem como protegendo o mínimo existencial dos promitentes compradores de loteamentos de fato.
Neste vértice, verifica-se que a atuação conjunta e fiscalizatória do Ministério Público e as serventias extrajudiciais, garante efetividade, autenticidade, transparência e eficiência a todas as serventias extrajudiciais, mas precipuamente nos Registros de Imóveis, concatenando a ideia do constituinte de que a propriedade do imóvel, talvez o único patrimônio de grande valor patrimonial de uma família, concretizando o direito fundamental de moradia, assegurar-se-á com o auxílio da função de custos legis do Parquet, bem como o rigor de atuação legal do Registrador de Imóveis no exame dos títulos.
Autores:
Robson Martins é doutorando Direito UERJ. Mestre Direito UFRJ. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.
Érika Silvana Saquetti Martins é doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.
Fonte: Migalhas