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Migalhas – Artigo: Multipropriedade mobiliária – Condomínio especial de multipropriedade sobre bens móveis – Por Emílio Guerra
O instituto da multipropriedade sobre bens imóveis foi introduzido em nosso direito pela lei 13.777, de 2018, sanando antiga lacuna legislativa, já que tal instituto há muito existia nos países mais avançados do mundo, gerando dinamismo ao setor imobiliário e propiciando a muitos o desfrute de bens que de outro modo não lhes seria possível.
No entanto, nosso direito permaneceu carente de legislação criando instituto semelhante sobre bens móveis. Ou seja, os legisladores pátrios criaram tão somente a multipropriedade imobiliária, preferindo deixar para outra oportunidade legislar sobre a modalidade mobiliária.
Nesse intuito, em 17/04/2019, o Deputado José Medeiros apresentou o PL 2419/2019, objetivando criar em nosso direito o instituto da multipropriedade mobiliária, o que foi iniciativa das mais louváveis, visto que tal instituto tem potencial para fomentar em muito a economia nacional, criando inclusive uma nova relação das pessoas com determinadas espécies de bens, principalmente os de maior custo de aquisição e manutenção, trocando o ter a propriedade exclusiva, pelo ter acesso à utilidade do bem pela propriedade compartilhada, quando necessário, e com grande economia, o que poderá criar uma miríade de novos negócios, e operar uma desrupção nos padrões de oferta e consumo de algumas espécies de bens, submetidos que sejam a regime de multipropriedade.
Então, inspirados pela iniciativa do nobre Deputado José Medeiros, empreendemos estudos e muita meditação sobre o tema, chegando à conclusão de que seria possível oferecer uma complementação à excelente proposição do referido parlamentar.
E foi com o objetivo de colaboração que desenvolvemos o que seria uma emenda ao PL 2419/2019, mas, como o período para a apresentação de emendas já se havia esgotado, resolvemos sugerir a apresentação do resultado de nossos estudos e meditações como um novo Projeto de Lei, consistente em disposições legais predeterminadas a criar e configurar, em nosso direito, o instituto jurídico da “multipropriedade mobiliária”, inserindo as disposições de sua configuração no Código Civil Brasileiro. E fizemos isso na forma de condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, dotando-o de grande flexibilidade, de molde a lhe propiciar maior utilidade, e a possibilidade de poder ser aplicado a diversas espécies de bens móveis, tornando-se poderoso instrumento para a criação de novos negócios, em padrões inovadores, operando uma desrupção nos padrões de consumo de pessoas físicas e jurídicas, ao lhes possibilitar maior economia e eficiência no emprego de recursos para a obtenção da utilidade de bens que possam ser ofertados em regime de multipropriedade – e são muitos, o que se refletirá em redução de custos e dinamização da economia nacional, inclusive devido à criação de novas modalidades de empreendimentos.
Assim, foi com esse intuito que, através do Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil – IRTDPJBrasil, procuramos o nobre Deputado Eli Corrêa Filho, que, demonstrando grande descortino, de pronto vislumbrou a importância e possibilidades da multipropriedade mobiliária, nos termos propostos, e se interessou em materializar nossas ideias apresentando o PL 3.801/2020, em 15/07/2020 (acessível através do link), pelo que lhe louvamos, o que em julho último completou um ano, motivando a redação do presente artigo.
É que, desde que apresentado, em 15/07/2020, o PL 3.801/2020 praticamente não tramitou, sendo de se assinalar apenas sua apensação ao PL 2419/2019, e a posterior apensação a estes do PL 2872/2021, que tem por objetivo disciplinar o instituto da multipropriedade veicular, porque, em razão das dificuldades impostas pela pandemia do Covid-19, os trabalhos legislativos se concentraram no que se caracterizava como emergencial, ficando de lado importantes iniciativas legislativas, para momentos mais calmos e adequados à análise de proposições sobre temas que, embora importantes, não ostentavam a marca da emergência.
Então, tendo avançado a vacinação em nosso país, vislumbrando-se a completa imunização da população brasileira até o fim do corrente ano, entendemos ser chegada a hora de se voltar a ventilar propostas não emergenciais, mas de grande relevância para a recuperação da economia, como acreditamos ser o caso das que visam à instituição da multipropriedade mobiliária em nosso país, graças à visão dos deputados José Medeiros, Eli Corrêa Filho e Lincoln Portela, que souberam reconhecer a importância e as possibilidades decorrentes da introdução do referido instituto jurídico em nosso direito.
Conforme dissemos no início deste texto, a intenção foi aperfeiçoar o Projeto de Lei apresentado, em boa hora, pelo nobre deputado José Medeiros, atendendo ao que é mesmo premente necessidade da sociedade brasileira, inserindo no Código Civil Brasileiro e na Lei dos Registros Públicos os necessários dispositivos para adequá-las a criar o instituto do “Condomínio Especial de Multipropriedade Mobiliária”. Multipropriedade essa que poderá incidir sobre diversas espécies de bens móveis (abrangendo, inclusive, a multipropriedade veicular, recentemente proposta, através do PL 2872/2021, pelo nobre Deputado Federal Lincoln Portela), com potencial para operar uma revolução nos usos e costumes da sociedade brasileira, facilitando a aquisição e o desfrute, por muitos, de bens a que não teriam acesso de outro modo.
E, uma vez criado, o novel instituto jurídico beneficiará pessoas físicas e jurídicas, gerando um novo e pujante ramo de negócios, dinamizando e tornando mais eficientes muitos empreendimentos e, ao fim e ao cabo, a própria economia nacional, que receberá grande impulso para sua tão necessária dinamização, após o grande abalo causado pela pandemia do coronavírus.
Cabe esclarecer, inicialmente, que a multipropriedade incidente sobre bens móveis, ou “multipropriedade mobiliária”, nada mais é que um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, em que, a cada fração de tempo de propriedade exclusiva, corresponde o direito de seu titular usar, gozar e fruir, com exclusividade, do bem ou conjunto de bens multiproprietários, por determinado período, a cada ciclo temporal anual ou de outra natureza, a ser definido no memorial de instituição e respectiva convenção de condomínio, estando vinculada, a cada uma das referidas frações de tempo de propriedade exclusiva (unidades autônomas), uma fração ideal na totalidade do patrimônio condominial, que abrangerá os bens acessórios, úteis ou necessários ao desfrute dos bens principais, submetidos ao regime multiproprietário.
Assim sendo, estabelecido o condomínio especial em multipropriedade de bens móveis, como a cada fração de tempo corresponderá direito de propriedade exclusivo sobre o bem, as mesmas poderão ser livremente alienadas ou gravadas de ônus reais por seus proprietários. Ou seja, em caso de venda ou dação em garantia, da fração de tempo de propriedade exclusiva em condomínio multiproprietário, não haverá a necessidade da anuência dos demais condôminos ou de a estes ser ofertado direito de preferência, como obrigatoriamente deveria ocorrer, se o que existisse fosse o condomínio comum.
O novo PL, portanto, complementa o Projeto de Lei 2419/2019, criando não só o necessário arcabouço do instituto jurídico do condomínio especial de multipropriedade mobiliária, que não existe na atualidade em nossa legislação, mas, também, um imprescindível sistema para documentar e controlar a vida condominial e os direitos de propriedade autônomos sobre o patrimônio condominial.
Outro ponto a se ressaltar é que a multipropriedade mobiliária não precisa se restringir ou vincular a certo e determinado bem, ao contrário do que acontece com a multipropriedade sobre bens imóveis, que necessariamente é atrelada a certo e determinado imóvel, cuja natureza, via de regra, é perene. A multipropriedade mobiliária incidirá sobre bem de determinada espécie, mas não se extinguirá pelo perecimento deste, porque poderá perdurar com a aquisição de bem substitutivo, da mesma espécie, se esta for a opção dos condôminos.
E afigura-se de grande conveniência e adequação a possibilidade de que a multipropriedade mobiliária possa incidir não apenas sobre um único bem, mas também sobre um conjunto de bens de mesma espécie, quantitativamente configurado para, probabilisticamente, prover de modo mais efetivo a utilidade buscada pelos condôminos.
E, segundo o proposto pelo PL 3801/2020, referida possibilidade consistirá em nada mais, nada menos que a reunião de várias multipropriedades sobre bens móveis da mesma espécie, com mesmos multiproprietários, cada qual detendo as mesmas frações de tempo como objeto de direito exclusivo sobre cada um dos bens, e submetidas, tais multipropriedades, a igual regramento (mesmo memorial de instituição e mesma convenção de condomínio), passando a constituir, assim, uma unidade com maior flexibilidade e capacidade para prover a utilidade almejada pelos multiproprietários, porque assim será reduzida a probabilidade de que não esteja disponível o bem quando da necessidade de seu uso por um condômino, denominando-se, tal agrupamento, “multipropriedade mobiliária sobre conjunto de bens” (ver §§ 1º e 2º do art. 1330-B, a ser inserido no CCB, pelo PL 3801/2020), para a qual se descortinam múltiplas possibilidades.
Assim, com o fito de possibilitar o exposto, o PL estabelece uma necessária diferença entre o registro do bem móvel, que seguirá sendo feito nos mesmos órgãos em que são feitos na atualidade, e o registro da constituição do condomínio e das respectivas frações ideais sobre o patrimônio condominial, que passarão a existir após a necessária instituição do condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis.
Ou seja, não haverá mudança do órgão onde são feitos, na atualidade, o registro de bens móveis, nem haverá duplicidade de registro desses bens, nem oneração maior dos seus proprietários. Apenas haverá a necessária separação da vida e atos relativos ao bem móvel, da vida e atos relativos ao Condomínio Multiproprietário.
Os primeiros (os bens móveis) seguirão tendo seus registros feitos como sempre foram, apenas nos mesmos órgãos, ainda quando forem formalmente de propriedade de um condomínio multiproprietário, circunstância em que no respectivo assento de registro figurará o condomínio como o formal titular do direito de propriedade (a formal titularidade do direito de propriedade por condomínios especiais já é expressamente admitida no § 3º do artigo 63 da lei 4591/64 e nos §§ 1º e 2º do artigo 6º-A da lei 11.977/2009, bem como pela doutrina e jurisprudência – Obs: dizemos “formal” a titularidade do direito de propriedade pelo condomínio porque, como será visto mais adiante, em um condomínio especial todos os bens, de fato e de direito, pertencem aos condôminos).
Já o condomínio em multipropriedade, sua instituição, os bens que o compõem, principais e acessórios, bem como os dados relativos a seus “multiproprietários”, como nome, identidade, cpf, etc, necessariamente precisarão ser registrados na matrícula do condomínio, no cartório de Registro de Títulos e Documentos onde este estiver registrado, em conformidade com o previsto no artigo 1330-G, a ser introduzido no CCB, pelo PL 3801/2020. E, devido à modernidade, isso poderá ser feito eletronicamente a partir de qualquer lugar do país e do mundo, onde se encontrem os interessados, através da Central Nacional dos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos.
É importante ressaltar que tal separação se faz necessária, já que o instituto jurídico da multipropriedade mobiliária, conforme ora proposto, incidirá não apenas sobre um único bem, que até poderá ser substituído, se vier a perecer ou se tornar inservível, mas, também e principalmente, sobre um “conjunto orgânico de bens”, constituído como unidade hábil a melhor prover determinada utilidade aos condôminos, podendo deter, ainda, bens acessórios, de uso comum a todos os condôminos, necessários ou úteis às atividades condominiais.
Então, reitera-se, se um bem for inserido como patrimônio de um condomínio em multipropriedade mobiliária, nada mudará quanto ao seu local de registro, continuando a ser registrado apenas no mesmo órgão de sempre, mas lá passará a estar registrado tendo como seu proprietário formal o “Condomínio Especial de Multipropriedade Mobiliária X”. Ou seja, exemplificando, nos entes cadastrais e de registro de veículos automotores terrestres (detrans) seguirá sendo registrada a titularidade sobre sua propriedade, assim como as garantias, restrições e ônus judiciais ou administrativos sobre eles incidentes. Mas será impossível o condomínio multiproprietário se vincular permanentemente a um determinado veículo ou conjunto de veículos de mesma espécie, porque o mesmo poderá subsistir pela substituição, por outros de mesma espécie, do seu único veículo ou conjunto de veículos, quando estes se tornarem obsoletos, inservíveis ou perecerem. E, certamente, na maioria dos casos o condomínio multiproprietário não estará vinculado a um único bem, mas, ao contrário, abarcará vários bens de mesma espécie, submetidos a regime de “multipropriedade sobre conjunto de bens”, além daqueles de uso comum dos condôminos, de outra natureza, necessários ou úteis às atividades condominiais, conforme acima já referido. Portanto, não pode haver dúvida quanto ao fato de que nenhum registro específico relativo a bem móvel poderá servir de suporte à instituição de um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis.
Logo, a figura do condomínio multiproprietário sobre bens móveis transcende aos bens que sejam submetidos a este regime, não apenas porque estes poderão ser substituídos quando vierem a perecer, como também porque pode abarcar vários desses bens, e até outros, de natureza diversa, necessários ou úteis aos fins condominiais, não submetidos ao regime multiproprietário, que serão de uso comum a todos os condôminos, razão pela qual requer tratamento distinto e autônomo, em relação aos bens que integrem o patrimônio condominial e seus registros.
Então, conforme proposto no PL nº 3801/2020, o condomínio em multipropriedade mobiliária, dada sua peculiaridade e necessária flexibilidade, não poderá prescindir de registro e controle próprios, o que deverá ocorrer nas serventias de Registro de Títulos e Documentos, às quais já são afetos os registros de atos e fatos condominiais e da maioria dos bens móveis (v. artigo 1330-G, a ser inserido no CCB, pelo PL 3801/2020).
Exemplificando, os entes cadastrais, como a Capitania dos Portos, a Gerência Técnica do Registro Aeronáutico Brasileiro, da ANAC, e os Detrans, seguirão registrando, respectivamente, embarcações, aeronaves e veículos automotores terrestres, bem como as garantias, penhoras e outras restrições sobre tais bens, com apenas a única diferença de que, quando estes bens estiverem submetidos a regime de multipropriedade, em seu registro deverá figurar como proprietário formal o nome e demais dados identificadores do respectivo condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis (multipropriedade mobiliária). E quaisquer referências que sejam feitas a esses registros, nas matrículas dos condomínios multiproprietários, serão realizadas como anotações, ex officio, sem cobrança de emolumentos, portanto, como está previsto no texto do PL 3801/2020. Assim, não haverá dupla oneração dos usuários.
Além do que, um condomínio especial em multipropriedade mobiliária envolverá muitas situações, fatos e atos jurídicos específicos, que refogem ao interesse e fim dos entes a que afetos o cadastro e registro das diversas espécies de bens móveis, sendo não só conveniente, mas absolutamente necessário, que o registro dos condomínios em multipropriedade mobiliária seja objeto de assentamento e controle próprios, onde toda a sua dinâmica “vida” social e legal seja documentada, em apartado da “vida” dos bens integrantes do seu patrimônio, que, é bom lembrar, poderão incluir bens principais, submetidos ao regime de multipropriedade, e acessórios, de uso comum dos multiproprietários, de natureza diversa daquela dos bens principais. E todos esses bens poderão mudar, ao longo do tempo, com a baixa de alguns e a inclusão de outros, razão pela qual nenhum registro de um bem móvel, em particular, poderia dar conta da vida do condomínio multiproprietário, que poderá abranger, de início ou posteriormente, vários outros bens.
O sistema que está sendo proposto no PL 3801/2020 propiciará o surgimento de uma infinidade de novos negócios, na forma de condomínios multiproprietários sobre uma miríade de bens, visto que um cidadão ou uma empresa, sozinhos, podem não ter condições de comprar determinado bem de elevado custo de aquisição e/ou de manutenção, tais como aeronaves, embarcações, equipamentos hospitalares, máquinas de elevado custo, tratores, servidores para a constituição de data centers, caminhões, automóveis, motorhomes, satélites, equipamentos para construção civil e muito mais, mas, através de um condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis, poderão acessar a utilidade de tais bens, já que deles poderão dispor, na medida das suas necessidades, com menor imobilização de capital e dividindo custos de manutenção.
Conforme se pode perceber, o regime de multipropriedade agregará muitos novos consumidores ao mercado, viabilizando coisas impossíveis na atualidade, porque o condomínio multiproprietário proverá a cada condômino o direito de uso e gozo de que realmente necessite, de determinados bens, sem o desperdício da ociosidade por boa parte do tempo, nem do custo de oportunidade do capital empregado para sua compra individualmente. Além do que, também os custos de manutenção serão diluídos por muitos, reduzindo consideravelmente a relação custo/benefício para obter e manter o desfrute da utilidade daquela espécie de bem, o que operará verdadeira revolução de práticas e hábitos na sociedade, resultando maiores pujança e eficiência da economia do país.
Outro ponto a ser ressaltado é que a proposta ora apresentada segue a acertada opção do Código Civil Brasileiro, de não tentar equiparar a figura dos condomínios especiais a nenhuma espécie de pessoa jurídica, haja vista serem figura jurídica ímpar, já que nada mais são que o fato jurídico de um patrimônio compartilhado por coproprietários atuando de modo coletivo, constituindo, para isso, representante para sua atuação unificada. Ou seja, ao lado da personalidade natural e da personalidade jurídica, como sujeitos de direitos e deveres no ordenamento jurídico, alinha-se a pessoa formal do condomínio permanente com unicidade de representação, a qual, embora aparente ostentar algumas das características das pessoas jurídicas, não tem presente a denominada afeccio societatis entre os condôminos, nem patrimônio próprio, não se enquadrando em nenhuma das espécies de pessoas jurídicas previstas no artigo 44 do Código Civil Brasileiro, sendo espécie peculiar de ente formal perene, detentor de direitos e deveres e capacidade processual na ordem jurídica nacional.
E essa opção vem de ser reiterada recentemente, quando o legislador inseriu na legislação pátria o instituto da multipropriedade sobre bens imóveis, a seu turno reiterando o tratamento que de longa data tem sido dado aos condomínios especiais de imóveis, desde que surgiram em nosso direito, com pleno sucesso, e sem nenhum prejuízo a seu pleno desenvolvimento e utilidade.
É que não se pode confundir o interesse em poder desfrutar de um bem de modo menos oneroso, com o interesse em participar de uma pessoa jurídica, um negócio, ou mesmo de uma associação ou sociedade civil, que são coisas com implicações próprias e bem diversas do que pretendem aqueles que procuram usufruir de bens de forma compartilhada, mais econômica, que se viabiliza pela forma desburocratizada e simples do condomínio especial. O necessário é a introdução, nas leis que regulam os condomínios especiais, da previsão de que podem ser sujeitos de direitos e deveres, ostentam capacidade processual e têm representação unificada, na pessoa do síndico ou administrador do condomínio, conforme previsto no PL 3801/2020.
O fato é que não é o desejo de condôminos, em condomínios especiais, tornarem-se sócios dos demais, a quem geralmente sequer conhecem, o que deixa evidente a inexistência da necessária affectio societatis, elemento imprescindível para que se possa cogitar da possibilidade de alguma modalidade de pessoa jurídica.
Sem dúvida, o desejo de potenciais condôminos consiste apenas em poder se utilizar de um bem de modo compartilhado, porque de outro modo não conseguiriam. E, é bom que se diga, se for necessário para isso a associação em uma pessoa jurídica, seja de que espécie for, o interesse desaparecerá ou, no mínimo, muito se reduzirá, porque uma miríade de problemas surgirão, que não serão compensados pelo uso do bem.
Além do que, outro obstáculo intransponível se encontra no artigo 1.331, do Código Civil Brasileiro, cuja redação, relativamente aos condomínios especiais edilícios, esclarece que neles “pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos”. Ou seja, todas as partes do condomínio (sejam as de propriedade exclusiva ou as de propriedade comum) pertencem aos condôminos, inexistindo parte que seja de propriedade do condomínio, distinta da pessoa dos condôminos, o que resulta que se o condomínio fosse considerado pessoa jurídica, estranhamente esta não teria patrimônio nenhum. Por isso que apenas no sentido de entes formais é admissível falar-se em propriedade “do condomínio”, com objetivos cadastrais e administrativos.
E não é por outro motivo que o Superior Tribunal de Justiça tem decidido, de modo uniforme, pelas turmas que compõem a sua segunda seção, que os condomínios são entes despersonalizados, já que não são proprietários das unidades autônomas (de propriedade exclusiva), tampouco das partes comuns que o compõem, além de não haver entre os condôminos a affectio societatis, tendo em vista a ausência de intenção de estabelecer, entre si, uma relação jurídica, sendo o vínculo entre eles decorrente do direito exercido sobre a coisa, e da necessidade de administrar a propriedade comum.
No mesmo sentido, no REsp 1.521.404, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino destacou que a doutrina dominante no STJ entende que os condomínios edilícios não possuem personalidade jurídica, sendo entes despersonalizados, também chamados entes formais, como a massa falida e o espólio. E ao concluir o relator foi enfático: “Estou entre aqueles que reconhecem a INEXISTÊNCIA de personalidade jurídica às pessoas formais, e, assim, os condomínios, FIGURAS CRIADAS PARA FACILITAR A VIDA DOS CONDÔMINOS, DE MODO A ADMINISTRAR E CONSERVAR O BEM COLETIVO”.
Por isso que a proposta de lei apresentada não poderia deixar de configurar a multipropriedade mobiliária como a figura jurídica ímpar, insubstituível e descomplicada do “condomínio especial”, dotando-o de capacidade processual e da possibilidade de, formalmente, adquirir direitos e deveres, inclusive de propriedade (à semelhança do que já se admite, na doutrina, jurisprudência e legislação pátrias, relativamente aos condomínios especiais sobre bens imóveis, vide § 3º do artigo 63 da lei 4591/64 e §§ 1º e 2º do artigo 6º-A da lei 11.977/2009), sobre bens afetos a seus fins, agindo, na verdade, em nome dos condôminos, os verdadeiros proprietários de todas as frações temporais (unidades autônomas) e demais bens de uso comum em um “condomínio especial multiproprietário sobre bens móveis”.
A proposta veiculada no PL 3801/2020 lastreia-se no fato de que o instituto do condomínio especial é figura jurídica ímpar, de possibilidades únicas, por permitir a realização de coisas que de outro modo não seria possível ou desejável, razão pela qual nunca poderá ser substituído a contento por sua transformação em pessoa jurídica, seja de que espécie for. Assim sendo, sua taxonomia e ontologia jurídicas é que devem merecer maior aprofundamento na ciência do direito, e não sua substituição ou enquadramento como espécie de outras figuras jurídicas, que à sua realidade não se ajustam.
Conforme já referido, o proposto condomínio especial em multipropriedade sobre bens móveis nada mais é que um fato jurídico inerente ao direito real de propriedade temporal sobre bens móveis, consistente em coproprietários de bens atuando de modo coletivo, constituindo, para isso, representantes para sua atuação unificada, não se enquadrando nos parâmetros de nenhuma espécie de pessoa jurídica, haja vista ser seu objetivo apenas regulamentar o uso, gozo e fruição de bens móveis de modo compartilhado.
No entanto, ad argumentandum, ainda que se admitisse a possibilidade e adequação de se reconhecer personalidade jurídica aos condomínios especiais, seria completamente desnecessário impor que seus atos constitutivos também fossem levados a outro registro nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, porque, em qualquer caso, os atos instituindo, especificando e regulando a submissão dos bens a regime de condomínio especial, bem como as futuras transações envolvendo as unidades autônomas em condomínio especial, fossem eles bens imóveis ou móveis, necessariamente teriam que seguir sendo registrados nos ofícios de registro competentes para o registro de tais coisas, quais sejam, os Ofícios de Registro de Imóveis e os de Registro de Títulos e Documentos, respectivamente.
Assim, na hipótese considerada, não haveria razão nenhuma para impor outro registro dos referidos documentos nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, bastando que a lei previsse que o registro já necessário e imprescindível (nos cartórios de registro de imóveis ou de títulos e documentos), para submeter os bens a regime condominial, especificar unidades autônomas e bens comuns, e regular a convivência condominial, também fosse constitutivo da personalidade jurídica condominial.
Portanto, é de inevitável conclusão que se não deve confundir a suposta necessidade de reconhecimento de personalidade jurídica aos condomínios especiais, com a necessidade de se impor outro registro de seus documentos constitutivos em ente diverso daquele necessário ao registro dos atos e fatos relativos ao direito de propriedade sobre as unidades condominiais. Neste sentido, Rodrigues, Marcelo Guimarães, em seu trabalho publicado no site jurídico Migalhas, com o título “Personalidade Jurídica do Condomínio Edilício”, em que analisou o PL 4.816/09, cujo objetivo era acrescentar dispositivos à Lei dos Registros Públicos e ao Código Civil de 2002, de modo a conferir “aos condomínios edilícios a oportunidade de se constituírem pessoas jurídicas”, acessível no link (acessado em 26/09/2021), assim se expressa:
E a instituição do condomínio edilício se dá, por meio de registro no serviço de registro de imóveis da respectiva circunscrição territorial, assim como sua convenção, inclusive para operar efeitos perante terceiros. Por isso, me parece desnecessário e, sobretudo equivocado pretender exigir que seus “atos constitutivos” sejam inscritos no registro civil de pessoas jurídicas como se equiparado fosse a sociedade ou associação civil, o que não é.
Em verdade, os registros de sua instituição e convenção no serviço imobiliário já produzem eficácia constitutiva (e não apenas declaratória) no mundo jurídico traduzindo-se em bis in idem a exigência de outro registro, agora no serviço do registro civil de pessoas jurídicas, como se juridicamente possível fosse ter outras destinações ou objetivos que não regulamentar o uso, fruição e destinação compartilhada da propriedade imóvel em planos horizontais.
Além disso, a disciplina jurídica já existente, p. ex., o art. 1.331, §2º do Código Civil de 2002, da mesma forma o art. 2º da lei 4.591, de 1964, não deixa margem para outras condições que em tese podem surgir no âmbito de uma associação ou sociedade civil, por absoluta incompatibilidade. O condomínio edilício é instituído de forma perene e só deixará de existir, pela desapropriação, perda ou destruição de seu objeto ou por deliberação de quem detenha a totalidade de suas frações ideais. Assim, não se cogita de declaração de fins e tempo de duração, condições de extinção, requisitos para admissão, demissão e exclusão de seus membros e outras peculiaridades incompatíveis com um instituto de direito real imobiliário, conforme previsto no referido Projeto. (grifos do autor do presente texto).
Ou seja, com grande descortino, o referido autor, doutor Marcelo Rodrigues Guimarães, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, profundo conhecedor do direito Notarial e de Registro, que por muitos anos militou na Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte – MG, ao examinar a hipótese de reconhecimento de personalidade jurídica aos condomínios especiais – objetivo do PL 4.816/09, aponta a desnecessidade e o equívoco de, para este fim, se estabelecer a obrigatoriedade de um outro registro, perante os Ofícios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, já que o primeiro (perante os Ofícios de Registro de Imóveis) seguirá sendo necessário e antecedente, porque é imprescindível aportar as normas que especificam e regulamentam o condomínio especial aos ofícios competentes para o registro de surgimento das unidades condominiais. Ou seja, no caso de condomínios especiais, o fato jurídico de sua instituição e da constituição de sua personalidade jurídica ocorreriam tão somente pelo imprescindível registro dos seus documentos constitutivos (memorial de instituição e convenção de condomínio, com regimento interno) no ofício registral competente para o registro da especificação condominial e das futuras unidades condominiais, quais sejam, o Ofício de Registro de Imóveis da circunscrição territorial do imóvel submetido a regime condominial, ou o Ofício de Registro de Títulos e Documentos onde domiciliados os instituidores da multipropriedade mobiliária, nos termos definidos no PL 3801/2020.
Queremos também ressaltar que, na esteira do advento da multipropriedade mobiliária, uma outra atividade surgirá, gerando muitos empregos e muito dinamismo para a economia do país, qual seja, a de administração de condomínios especiais de multipropriedade sobre bens móveis – multipropriedade mobiliária, à semelhança do que ocorre com os condomínios edilícios.
Certamente muitas administradoras de condomínios edilícios criarão departamentos ou filiais dedicados a esse novo e promissor ramo de negócios, ampliando atividades para um setor extremamente promissor, com um vasto campo para expansão, porque surgirá imensa procura pela multipropriedade de bens móveis.
E, aproveitando a oportunidade do presente texto, vimos mesmo conclamar as administradoras de imóveis, individualmente ou através das suas entidades associativas, tais como a ABADI – Associação Brasileira Administradoras de Imóveis ou SECOVI – Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais, a atuar pedindo a aprovação do Projeto de Lei ora sob exame, que configura e institui, no direito brasileiro, a multipropriedade sobre bens móveis, porque certamente isso lhes abrirá oportunidade ímpar para a expansão dos seus negócios. E, pelas mesmas razões, dirigimos semelhante convite às locadoras de veículos automotores e de máquinas diversas, porque a administração de condomínios multiproprietários lhes catapultará a novo patamar de segurança e rentabilidade em seus respectivos ramos de negócios, porque não apenas obterão a renda certa oriunda da sua unidade dedicada à atividade de administração condominial, mas também a decorrente de sua unidade locadora suprir eventual indisponibilidade de bem condominial multiproprietário para o uso de algum condômino, ocasiões em que lhes poderiam atender à necessidade a preços mais módicos de locação, até a ocorrência da disponibilidade de um bem condominial multiproprietário, fidelizando clientes e tornando a multipropriedade quase que uma propriedade plena, criando uma realidade em que todos sairão ganhando, porque agregarão tais atividades àquelas que hoje já exercem.
Assim é que, pelo potencial que têm para tornar mais eficiente e dinâmica a economia nacional, vimos sugerir aos nobres parlamentares, em especial aos excelentíssimos presidentes da Câmara e do Senado, que impulsionem os PLs nºs 2419/2019, 3801/2020 e 2872/2021, que tramitam apensados, em direção a uma rápida aprovação, com o fito de que o mais rapidamente possível a nova figura condominial possa começar a produzir seus benéficos efeitos para nosso país, contribuindo para sua recuperação, após o grande abalo causado pela pandemia do coronavírus.
*Emílio Guerra, ex-advogado, especialista em Registros Públicos pela PUC-MG e Oficial Registrador do 1º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Belo Horizonte/MG.
Fonte: Migalhas