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Migalhas – Artigo: Hipoteca e outras garantias reais no Brasil: Debilidades traiçoeiras diante de credores “privilegiados” – Por Carlos Eduardo Elias de Oliveira
O texto cuida da “debilidade traiçoeira” das garantias reais no Brasil: os credores reais só costumam descobrir a impotência dessas garantias diante de créditos trabalhistas e fiscais quando já é tarde demais. A fragilidade das garantias reais é uma ameaça significativa ao desenvolvimento econômico e social do país (capítulo 1 e 2).
Os direitos reais de garantia (anticrese, penhor e hipoteca) e os direitos obrigacionais em garantia com eficácia real (caução de móveis e imóveis, por exemplo) cedem diante das penhoras procedentes de credores trabalhistas ou fiscais. Isso vale ainda que tenha sido instaurado um concurso universal de credores por conta de falência ou de insolvência civil. Vale também para um concurso especial de credores, que nasce com a pluralidade de penhoras ou com a formulação de pedidos de terceiros em ações movidas contra o devedor. O dinheiro obtido com a excussão do bem satisfará, em primeiro lugar, esses credores privilegiados, de modo que, se sobrar algo, o credor real será saciado (capítulos 3 e 4).
A alienação fiduciária em garantia não possui essa fragilidade, apesar de haver precedentes minoritários de cortes trabalhistas regionais em sentido contrário (capítulo 4.4.).
A legislação precisa mudar. Enquanto isso, o mais recomendável é valer-se da alienação fiduciária em garantia no lugar dos vulneráveis direitos reais de garantia (capítulo 5).
Introdução
Grande parte dos empresários ignora a fragilidade da hipoteca ou de outras garantias reais (caução, penhor, por exemplo) no ordenamento jurídico brasileiro e, por isso, celebram contratos de elevada expressão econômica fiando-se nessas hesitantes garantias reais.
A amargura vem posteriormente, quando esses empresários descobrem que sua garantia real é irrelevante diante de credores trabalhistas e fiscais, os quais – conforme a experiência demonstra – costumam representar a fatia mais expressiva das dívidas de uma empresa.
Temos o que chamamos aqui de uma “debilidade traiçoeira” das garantias reais no Brasil.
Neste texto, com o máximo de objetividade possível, focaremos apenas uma das debilidades dessas garantias: a sua impotência quase que absoluta diante de credores trabalhistas e fiscais. Não abordaremos outras vulnerabilidades, como as relacionadas à sua execução (que é morosa e cheia de percalços1) ou à sua flexibilização com base em princípios sociais2.
O assunto é extremamente sensível ao desenvolvimento econômico e social do País. O sistema de garantias é um dos pilares do mercado e da economia, de modo que fragilidades aí repercutem negativamente por meio, por exemplo, do aumento de preços (para absorver a insegurança das garantias) e da inibição a novos negócios (empresários deixam de arriscar novos investimentos pela falta de confiança nas garantias). Os índices sociais acabam sendo atingidos indiretamente com o aumento do desemprego, com a inflação, com a inviabilidade de o Governo custear programas sociais em razão da queda na arrecadação tributária, com o não lançamento de novos produtos e serviços no mercado etc.
Exemplos práticos para ilustrar o problema
Antes de passar a uma exposição teórica do problema, descortinaremos o problema deste artigo por meio de exemplos práticos. Afinal de conta, o direito nasce dos fatos, diziam os romanos (ex facto oritur jus).
Para começar um negócio, uma empresa decide obter um empréstimo perante o banco para pagamento em 100 prestações mensais. Em garantia, a empresa hipoteca um lote seu. É feito o registro da hipoteca no Cartório de Imóveis. Com o dinheiro, a empresa inicia as atividades, gera empregos, recolhe tributos etc. Três anos depois, os negócios entram em turbulência, e a empresa se endivida perante os seus empregados, o Fisco, os seus fornecedores e os consumidores. Cada um desses credores ajuíza ações de execução e só encontram, como bem penhorável, o imóvel hipotecado. Não há dúvidas de que os credores podem penhorar esse imóvel com a consequente intimação do credor hipotecário. A dúvida, porém, é a seguinte: alienado o bem em hasta pública, o dinheiro obtido será utilizado para pagar prioritariamente o credor hipotecário (o banco, no caso) ou esses demais credores?
A resposta parece ser óbvia: o credor hipotecário receberia em primeiro lugar por conta de sua garantia estar registrada no Cartório de Imóveis, de modo que, se sobrar algo, os demais credores poderão ser satisfeitos.
Entretanto, essa obviedade só se aplica para os credores em geral, sem incluir, porém, os credores trabalhistas e fiscais. Estes últimos, por força de uma interpretação sistemática fruto de textos legais não muito claros, recebem primeiro do que o próprio credor hipotecário, independentemente de seus créditos terem surgido posteriormente ao registro da hipoteca.
Metaforicamente, é como se todos os imóveis no Brasil – mesmo aqueles cuja matrícula no Cartório de Imóveis aparenta estar limpa – já estivessem hipotecados a credores fiscais e trabalhistas futuros. Haveria uma “hipoteca” invisível em todos os imóveis brasileiros em prol desses credores privilegiados, mas – para lembrar da fábula da Roupa Nova do Rei – só os “inteligentes” podem vê-la.
É essa situação excepcional que será enfocada no presente artigo.
No exemplo acima, citamos um banco como credor hipotecário (contrato bancário). Na prática, porém, é extremamente comum haver contratos empresariais e contratos civis comuns envolvendo hipoteca ou outras garantias reais, como no caso de: (1) uma empresa que requer uma hipoteca em garantia do pagamento de um produto de alto valor; (2) um particular que se vale da hipoteca como garantia de um negócio feito com outrem.
Conceitos gerais: princípio da patrimonialidade, regra prior in tempore, potio in iure, penhora e a importância das garantias
Para tratar do assunto objeto deste artigo, é fundamental recordar alguns conceitos gerais.
Segundo o princípio da patrimonialidade, o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, salvo exceção legal (art. 789, CPC). Isso significa que, se não houver lei específica em contrário, todos os bens dele são garantia do pagamento de todas as suas dívidas, de maneira que os credores podem penhorar qualquer deles. Exemplo de exceção ao princípio da patrimonialidade são os bens impenhoráveis (art. 833, CPC).
Durante grande parte da história, o corpo, e não o patrimônio, foi a garantia das dívidas, de modo que, em caso de inadimplemento, os credores podiam tomar o devedor como escravo ou, até mesmo, esquartejar-lhe o corpo como execução da dívida, como lembra Maria Helena Diniz3.
Ademais, como regra, vigora o princípio do prior in tempore, potio in iure (primeiro no tempo, mais forte no direito): quem primeiro penhorar um bem4 ou quem primeiro obtiver uma garantia real sobre esse bem tem prioridade na sua excussão. Em regra, portanto, não se aplica, pois, a princípio da par conditio creditorum, que estabelece o rateio pro rata dos bens entre os credores de mesmo patamar hierárquico, independentemente da ordem de chegada de cada um deles. Um exemplo de exceção legal que atrai o princípio da par conditio creditorum é o concurso universal de credores da insolvência civil e da falência.
Como forma de excepcionar os princípios da patrimonialidade e do prior in tempore, os credores podem valer-se das garantias reais, as quais, por lei, asseguram uma preferência ao credor titular da garantia sobre os bens.
Sem essas garantias reais, inúmeros negócios jamais se aperfeiçoariam diante da falta de segurança na recuperação do crédito. Aí está a importância das garantias para o desenvolvimento econômico do país. Se o sistema de garantias creditórias for frágil, moroso e inseguro, a economia tende a sucatear diante do desestímulo ao empreendedorismo e ao financiamento, o que gerará repercussões sociais indesejáveis.
Nem tudo, porém, são flores. O sistema de garantia real no Brasil acima citado é lânguido, do que nos dá exemplo a impotência da hipoteca diante de alguns credores especiais, conforme exporemos no próximo capítulo.
Vulnerabilidade das garantias reais diante de créditos trabalhistas e tributários: o “drible” da alienação fiduciária em garantia regra geral das garantias reais diante dos concursos universal e especial de credores
O regime das garantias reais possui sérias vulnerabilidades ao se levar em conta o entendimento jurisprudencial que se consolidou ao longo dos anos.
A leitura do texto do Código Civil e da Lei de Falência isoladamente, sem levar em conta as regras do direito processual, do direito tributário e do direito trabalhista, pode levar a uma falsa sensação de segurança.
De fato, à luz do texto do Código Civil, ao se instituir um direito real sobre um bem (hipoteca, penhor e anticrese), o credor passa a ter preferência na excussão da coisa onerada em relação a outros credores por força do princípio do prior in tempore, potio in iure. Em havendo declaração de insolvência civil – que inaugura um concurso de credores (vários credores querem a satisfação dos seus créditos em um único procedimento) -, os arts. 955 e seguintes do Código Civil indicam uma ordem de créditos com preferência em ser satisfeito, de modo a afastar a regra do prior in tempore potio in iure. E, nessa ordem preferencial, o crédito com garantia real é considerado o primeiro lugar, conforme art. 961 do CC. Semelhantemente, em havendo decretação de falência – que abre um concurso de credores -, também se afasta a regra do potio in tempore, potio in iure para priorizar o pagamento dos credores que ocupam classes privilegiadas dentro do quadro geral de credores indicado pela Lei de Falências, como os credores trabalhistas (art. 83 da lei 11.101/2005)5.
Esse cenário daria a entender que só com a inauguração do concurso universal de credores por conta da falência ou da insolvência civil é que haveria relevância na categorização hierárquica dos créditos de acordo com seu grau de preferência.
Ledo engano!
A interpretação conjunta do Código Civil com outros diplomas conduziu a jurisprudência a um rumo diferente para considerar relevante essa hierarquização dos créditos nos casos de concurso particulares (ou específicos) de credores, ou seja, nos casos em que sequer há falência ou da insolvência civil, como no caso de confluência de penhoras sobre um mesmo bem.
A propósito, fique claro que há dois concursos de credores: (1) o concurso universal, que reúne todos os credores e todos os bens do devedor e que se dá com a falência, a insolvência civil ou outro procedimento legal similar; e (2) o concurso especial, particular ou específico, que envolve apenas alguns credores que penhoraram o mesmo bem.
Os concursos universal e especial de credores do ponto de vista processual: pluralidade de penhoras e outros casos
Em ambos os concursos de credores (o universal ou o especial), para definir como ficará a repartição dos bens do devedor entre os credores, há de se separarem os créditos de acordo com o seu grau de preferência à luz da legislação pertinente.
Para tanto, (1) no concurso universal, leva-se em conta primariamente a pertinente lei especial, a exemplo da ordem do quadro-geral de credores do art. 83 da Lei de Falência para o concurso universal decorrente de falência, admitida a aplicação subsidiária das demais normas que tratam de preferências creditórias. (2) Já no concurso especial ou particular, aplicam-se as normas gerais que tratam de preferência creditória, como o art. 186 do CTN e os arts. 961 e seguintes do CC, de modo que a repartição do dinheiro obtido com a excussão do bem objeto das várias penhoras será feita em respeito às classes preferenciais de crédito (arts. 797, 908 e 909 do CPC).
Processualmente, o concurso especial ou particular de credores deverá ocorrer preferencialmente perante o juízo que realizou a primeira penhora, o qual, em autos apensos ao principal, instaurará incidente para viabilizar o contraditório entre os vários credores que realizaram penhora no rosto dos autos, tudo com o objetivo de que, ao final, o juiz decida a ordem de preferência creditória entre os concorrentes, tudo na forma dos arts. 908 e 909 do CPC.
Ainda processualmente, o concurso especial ou particular de credores não depende necessariamente de uma pluralidade de penhoras. É cabível que, em uma execução promovida por terceiros, o credor preferencial requeira a reserva do produto da da penhora para si diante da natureza preferencial de seu crédito, mas, para levantar esse valor, será essencial que esse credor ajuíze uma ação de execução para viabilizar o exercício do contraditório pelo devedor. Foi nesse sentido que o STJ admitiu que, no bojo de uma execução ajuizada pelo Banco do Brasil S/A contra uma cooperativa, um sindicato de trabalhadores requeresse, enquanto terceiro interessado, para a satisfação dos seus créditos trabalhistas contra a cooperativa, a reserva do dinheiro obtido com a arrematação de um bem penhorado da cooperativa, sob a alegação de que os créditos trabalhistas são preferenciais em relação ao crédito executado pelo Banco do Brasil. O STJ, porém, condicionou o levantamento desse valor reservado para o sindicado ao ajuizamento de uma ação de execução por este, tudo com o objetivo de permitir que a cooperativa exercite o contraditório, o qual seria prejudicado se se admitisse que o sindicato simplesmente habilitasse o seu crédito em um processo de execução alheio6. Não se ignora, porém, haver precedentes do STJ em sentido contrário, exigindo a existência de pluralidade de penhoras para o concurso especial de credores7.
A situação dos créditos trabalhistas e fiscais diante das garantias reais
Tomando em consideração as normas em geral que tratam de preferências creditórias, os créditos trabalhistas e tributários possuem preferência legal em relação aos créditos com garantia real por força do art. 186 do CTN8. Por esse dispositivo do CTN, no ranking creditórios, o crédito trabalhista ocupa o primeiro lugar, o crédito tributário fica em segundo e os demais créditos, inclusive o real, ocupam os demais lugares. Em relação a esses demais créditos, o crédito real tem preferência e, portanto, ficaria em terceiro lugar por força do art. 961 do CC. As demais colocações ficariam com os créditos pessoais (os não reais) segundo a ordem de suas respectivas preferências legais nos moldes dos arts. 961 e seguintes do CC.
Nesse sentido, a jurisprudência9 entende que essa preferência legal deve ser levada em conta sempre que houver uma confluência de credores na execução de um mesmo bem, ainda que não tenha havido uma decretação de falência ou de insolvência civil. Por essa razão, um bem onerado com uma garantia real pode ser penhorado por credores trabalhistas e tributários, que, após a excussão do bem, serão satisfeitos prioritariamente em relação ao credor real.
O fundamento disso é o parágrafo único do art. 1.422 do Código Civil, que afasta o direito de prelação dos direitos reais de garantia diante de “dívidas que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros créditos”10. Em reforço a esse entendimento, o art. 30 da Lei de Execução Fiscal – LEF (lei 6.830/1980) – e o art. 184 do CTN aduzem que o Fisco pode penhorar todos os bens do devedor, “inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e as rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis”. Esse dispositivo da LEF se estenderia aos processos trabalhistas em função do art. 889 da CLT, que admite a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista.
Em poucas palavras, os créditos trabalhistas e tributários são supercréditos com superprivilégios.
Isso significa que, quando, por exemplo, o banco empresta um dinheiro ao mutuário e obtém uma hipoteca como garantia real, essa garantia real é impotente diante de dívidas tributárias ou trabalhistas que o mutuário já tenha ou que este venha a adquirir posteriormente. Credores trabalhistas ou tributários podem penhorar esse imóvel hipotecado para se saciar antes mesmo do banco titular da hipoteca. Nesses casos, considerando que a experiência demonstra que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir valores elevadíssimos, é provável que nada sobre ao credor hipotecário: os trabalhadores e o Fisco devorarão tudo.
É absolutamente irrelevante se o credor hipotecário tiver penhorado o imóvel em primeiro lugar. É que, embora a penhora dê um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC), se sobrevierem outras penhoras sobre o mesmo bem, deverá ser observada, em primeiro lugar, a ordem preferencial dos créditos (regra do par conditio creditorum), de maneira que, somente em relação aos créditos de mesmo patamar hierárquico, é que se levará em conta a anterioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iuris). É o que se extrai dos arts. 797, parágrafo único, 908 e 909 do CPC.
A única hipótese em que o credor hipotecário estará a salvo é quando já tiver obtido a satisfação efetiva de sua dívida, ou seja, quando os credores tributários ou trabalhistas tiverem “chegado tarde demais”. É que, se o credor hipotecário já tiver levantado o dinheiro obtido com a excussão do imóvel hipotecado, seu crédito já terá sido extinto de modo válido, de maneira que, em regra, não haverá nenhum espaço para os credores tributários ou trabalhistas pleitearem a invalidade ou a ineficácia desse pagamento. Enquanto, porém, o credor hipotecário não tiver levantado o dinheiro, podem os credores hipotecários ou trabalhistas pleitearem a penhora do imóvel hipotecado ou do dinheiro obtido com a expropriação forçada deste, caso em que terão prioridade na satisfação dos seus créditos em relação ao credor hipotecário.
Todas essas considerações ventiladas em relação à hipoteca se estendem aos demais direitos reais de garantia (penhor e anticrese) e aos direitos obrigacionais em garantia com eficácia em real (caução de móveis ou imóveis11, por exemplo), pois o fundamento legal é o mesmo. A jurisprudência, porém, costuma lidar mais com casos de hipoteca por esta ser a mais recorrente nos processos judiciais.
Como se vê, hipoteca, penhor e anticreses são garantias reais extremamente vulneráveis diante de dívidas trabalhistas e tributárias mesmo antes da decretação de falência ou de insolvência civil. Considerando que dívidas tributárias e trabalhistas costumam assumir cifras elevadíssimas, tem-se que, na prática, bancos e outros credores que queiram obter uma hipoteca como garantia precisam estar cientes da debilidade jurídica dessa garantia real, fato que terminará por impedir a realização de vários negócios ou por aumentar os preços como forma de incorporação dos riscos de inadimplência.
Cabe, ainda, um alerta. A supracitada fragilidade da hipoteca diante de créditos trabalhistas subsiste mesmo para o caso de se tratar de uma garantia vinculada a uma Cédula de Crédito Rural, Industrial ou Comercial, pois o art. 69 do Decreto-Lei nº 167/1967, o art. 57 do decreto-lei 413/1969 e o art. 5º da lei 6.840/1980, que proíbem a penhora do imóvel onerado por uma hipoteca cedular, não prevalece sobre a preferência legal dos créditos trabalhistas. Esse é o entendimento consolidado do STJ12 e também do TST, que, após divergências13, pacificou e editou a OJ nº 226/SBDI-1 (Orientação Jurisprudencial nº 226 da SBDI-1)14:
“CRÉDITO TRABALHISTA. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL OU INDUSTRIAL. GARANTIDA POR PENHOR OU HIPOTECA. PENHORA.
Diferentemente da cédula de crédito industrial garantida por alienação fiduciária, na cédula rural pignoratícia ou hipotecária, o bem permanece sob o domínio do devedor (executado), não constituindo óbice à penhora na esfera trabalhista.”
Por fim, sublinhe-se que, por força do art. 832 do CPC, os créditos trabalhistas e fiscais só não poderão gerar penhora sobre bens absolutamente impenhoráveis, como os bens de família protegidos pela lei 8.009/90.
A alienação fiduciária em garantia como possível alternativa à impotência dos direitos reais de garantia
Nesse cenário de anemia do sistema de garantia reais, a alienação fiduciária em garantia – que é um direito real em garantia (e não de garantia) – desponta como um talentoso “drible” dado pelo legislador sobre a pretensa onipotência dos créditos tributários e trabalhistas.
É que, por ela, o credor passa a ser proprietário – ainda que resolúvel – do bem dado em garantia, ao passo que o devedor só terá um direito real de aquisição. Daí se segue que, caso esse devedor fiduciante venha a adquirir dívidas trabalhistas ou tributárias, só sobrará aos trabalhadores ou ao Fisco buscar a penhora desse direito real de aquisição, mas nunca do próprio direito real de propriedade, pois este não pertence mais ao devedor: Fisco e trabalhadores não podem penhorar bens de terceiros.
Esse entendimento pela robustez da propriedade fiduciária é pacífico no STJ15, mas, no âmbito da Justiça Trabalhista, embora seja predominante, não há pacificidade diante da existência de julgados divergentes entre os vários Tribunais Regionais e diante do fato de o TST atualmente estar se recusando a se pronunciar sobre o mérito por questões processuais16.
Por evidência, não estamos tratando aí dos casos em que o ato de instituição da alienação fiduciária em garantia nasceu com um vício de validade ou de eficácia, como na hipótese de fraude contra credores ou fraude à execução, pois, nessas hipóteses, esse vício genético poderá ser invocado para derrubar a garantia fiduciária17.
Conclusão
Em suma, se alguém pretende ter uma garantia real não vulnerável, a recomendação é que ele se valha da alienação fiduciária em garantia (que é um direito real em garantia), e não das tradicionais e combalidas figuras dos direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese).
Ao nosso sentir, a legislação merecia ser alterada para afastar essa fragilidade dos direitos reais de garantia, especialmente porque essa debilidade – logo quando se torna conhecida dos agentes de mercado – acaba por inibir a celebração de novos negócios, por aumentar os preços dos bens etc., tudo em prejuízo não apenas da economia, mas também da sociedade.
Para a tutela dos trabalhadores e do Fisco, outras soluções protetivas poderiam ser cogitadas, como flexibilizar hipóteses de impenhorabilidade. O que soa nocivo é, a pretexto de proteção do Fisco ou de alguns trabalhadores, paradoxalmente salgar o terreno em que vicejam empregos e arrecadação tributária, inutilizando um dos pilares dos negócios jurídicos e do mercado brasileiro: as garantias reais.
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1 Além de o processo judicial demorar demasiadamente – só a tentativa citação toma quase 4 anos de processo -, a própria expropriação da coisa é dificultosa diante da costumeira existência de impugnações pleiteando a invalidade de hastas públicas. Isso sem falar nos custos com despesas de processos e de honorários advocatícios. O grau de enforcement no Brasil é baixo. A propósito de soluções contratuais para tentar contornar essas debilidades, remetemos o leitor a este outro texto nosso, no qual indicamos cláusulas de bloqueio liminar e de citação ficta como paliativos: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Soluções contratuais para a ineficiência de cobrança judicial de dívida. Disponível aqui. Texto elaborado em 1º de agosto de 2019
2 Por exemplo, a hipoteca não tem força alguma diante dos compradores de imóveis “na planta”, se a dívida garantida tiver decorrido do financiamento do empreendimento, tudo conforme a Súmula nº 308/STJ (“A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”). Há discussão em saber se esse entendimento sumular pode ser estendido para outras situações em favor de consumidores ou para outras hipóteses que envolvem clamor social.
3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 4: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 505.
4 A penhora concede um direito de preferência ao credor (art. 797, CPC). Entretanto, havendo concorrência de penhora sobre o mesmo bem, será observada, em um primeiro momento, ordem decorrente dos títulos legais de preferência (regra do par conditio creditorum), de maneira que créditos preferenciais serão satisfeitos em primeiro lugar. Em um segundo momento, entre os créditos de mesma preferência legal, será observada a prioridade da penhora (regra do prior in tempore, potio in iure), tudo consoante arts. 797, parágrafo único, e 908 do CPC.
5 Na falência, os créditos reais não gozam de prioridade absoluta, embora ocupem posição privilegiado no quadro geral de credores. Créditos trabalhistas, por exemplo, são prioritários (art. 83 da lei 11.101/2005 e art. 449, § 1º, da CLT).
6 STJ, REsp 976522/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 25/02/2010. No mesmo sentido, este julgado: STJ, REsp 1580750/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/6/2018.
7 STJ, AgInt no REsp 1436772/PR, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 18/09/2018.
8 Nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp 1338746/SP, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 19/11/2019.
9 STJ, AgInt no REsp 1328688/PR, 4ª Turma, Rel. Ministro Lázaro Guimarães – Desemb. Convocado, DJe 27/09/2018.
10 Embora o art. 30 da Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/1980) dê a entender que a dívida fiscal não se anteporia aos créditos com privilégios especiais sobre os bens e malgrado o art. 889 da CLT admita a aplicação subsidiária das regras da execução fiscal para o processo trabalhista, a jurisprudência continua inclinando-se em favor do fato de que o art. 186 do CTN daria uma supremacia aos créditos trabalhistas e tributários em relação a qualquer outro crédito no caso de concorrência de penhoras sobre um mesmo bem.
11 Exemplo: art. 38 da lei 8.245/91.
12 STJ, AgRg no Ag 1391061/PR, 1ª Turma, Relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe 10/06/2011; REsp 1117706/MS, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell, DJe 28/09/2010.
13 Este julgado, por exemplo, entendia contrariamente à orientação atual: TST, RR-723870-57.2001.5.23.5555, 3ª Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, DEJT 20/04/2006.
14 No mesmo sentido: TST, RR-720408-19.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 16/09/2005; TST, AIRR-818200-62.2002.5.06.0906, 2ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Carlos Gomes Godoi, DEJT 17/06/2005; TST, RR-622214-22.2000.5.04.5555, 3ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Ronan Neves Koury, DEJT 29/04/2005.
15 STJ, AgInt no REsp 1505398/BA, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 13/06/2018; STJ, REsp 1646249/RO, 2ª Turma, DJe 24/05/2018; STJ, REsp 910.207/MG, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJ 25/10/2007.
16 O TST já chegou a decidir diferente (TST, AIRR-692851-57.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relatora Juiza Convocada Maria de Lourdes D’Arrochella Lima Sallaberry, DEJT 11/10/2002; TST, AIRR-692849-87.2000.5.09.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 29/06/2001). Atualmente, embora o TST, por meio da OJ nº 226/SBDI-1, sinalize a favor da robustez da alienação fiduciária (de modo que trabalhadores e Fisco só poderiam penhorar o direito real de aquisição que pertence ao devedor, e não a propriedade fiduciária), os precedentes mais recentes recusam-se a analisar o assunto diretamente ao argumento de se tratar de matéria infraconstitucional, que não pode ser examinada em sede de recurso de revista decorrente de execução (TST, AIRR-36-96.2013.5.09.0006, 8ª Turma, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, DEJT 01/09/2017; TST, (AIRR-11236-81.2014.5.15.0141, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25/08/2017; TST, AIRR-24600-45.1998.5.02.0044, 1ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 29/04/2016). No âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, a jurisprudência oscila. De um lado, há julgados pela robustez da alienação fiduciária em garantia, vedando a penhora da propriedade fiduciária (TRT1, AGVPET 1634007720035010053/RJ, 3ª Turma, Rel. Des. Leonardo Dias Borges, DJ 26/02/2013; TRT4, AP 0021905-39.2016.5.04.0010, Seção Especializada em Execução, Data de julgamento 11/10/2019; TRT20, AP 000120607.2016.5.200002, Rel. Des. Josenildo dos Santos Carvalho, DJ 20/06/2017; TRT13, AP 008860055.2014.5.130022, 2ª Turma, DJ 11/11/2014). De outro, há julgados de TRT admitindo a penhora da própria propriedade fiduciária (TRT6, AP 00002076820125060201, 4ª Turma, Data do julgamento 30/03/2016; TRT12, AP 03428-1998-027-12-00-0, 1ª C., Relª Des. Viviane Colucci, DJe 05/06/2013; TRT3, AP 568807.02027.1997.012.03.00.2, 3ª Turma, Rel. Des. Bolivar Viegas Peixoto, DJMG 24/11/2007). Aliás, na linha da vulnerabilidade da alienação fiduciária em garantia diante de créditos trabalhistas, houve um julgado do TRT da 17ª Região, em relação a cujo mérito o TST se recusou a se pronunciar em sede de recurso de revista por entender que se tratava de matéria infraconstitucional no bojo de execução trabalhista (TST, AIRR-89800-96.2012.5.17.0009, 1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 14/02/2014). Por fim, há julgados que chegam a uma solução intermediária: admitem a penhora e a alienação judiciária do bem alienado fiduciariamente, mas asseguram ao credor fiduciário o direito de receber prioritariamente o dinheiro para satisfação do seu crédito, deixando o trabalhador com o restante (TRT17, AP 0151000620135170141, Rel. Des. Carlos Henrique Bezerra Leite, DJ 03/07/2014).
17 Nesse sentido, o TST reconhece, em relação ao credor trabalhista, a ineficácia de alienação fiduciária em garantia instituída após o ajuizamento da reclamação trabalhista, visto que aí há fraude à execução (TST, AIRR-10061-30.2018.5.03.0017, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 09/08/2019).
*Carlos Eduardo Elias de Oliveira, professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral na Universidade de Brasília e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado/parecerista. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.
Fonte: Migalhas