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Migalhas – Artigo: Derrubada de vetos da MP 1.085 – Parte I – Por Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller

27-01-2023

No dia 22 de dezembro de 2022, o Congresso Nacional derrubou quatro vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na lei 14.382/2022. Na próxima coluna, observar-se-á as derrubadas de vetos relacionados à adjudicação compulsória extrajudicial, porém, neste artigo, serão analisadas as derrubadas dos vetos relacionados ao patrimônio de afetação no regime da incorporação imobiliária.

O patrimônio de afetação, instituto extremamente complexo, é, em uma de suas vertentes, aquele ao qual é dada uma finalidade específica, restando segregado dos demais bens e direitos de seu titular, para que cumpra com a função que lhe foi estipulada. Segundo Rizzardo, afetar é “ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso” até que se finde o motivo para o qual ele foi instituído¹. Nesse mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira afirma, ainda, que afetar o patrimônio seria imobilizá-lo “em função de uma finalidade”².

O patrimônio de afetação no Brasil é amplamente ligado à incorporação imobiliária e foi inicialmente previsto no Ordenamento na Lei das Incorporações Imobiliárias (lei 4.591/1964), inserido pela lei 10.931/2004 que acrescentou à primeira o Capítulo I-A (arts. 31-A a 31-F).

Com a inserção dos dispositivos à Lei nº 4.591/1964 tornou-se possível a instituição de patrimônio de afetação na incorporação imobiliária a fim de preservar os imóveis em construção, evitando que eles respondam por dívidas do incorporador que não estejam relacionadas à mesma incorporação à qual o bem pertence. Nasceu do famoso caso da ENCOL, incorporadora que faliu no início dos anos 2000 e prejudicou empreendimentos por todo o Brasil. Portanto, instituto extremamente benéfico ao consumidor.

Mais recentemente, a Lei do Distrato (lei 13.786/2018), estimulou a utilização do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. A referida Lei instituiu uma regra específica de retenção de valores para as incorporações submetidas a patrimônio de afetação. Na hipótese de constituição de patrimônio de afetação no empreendimento, o contrato de compromisso de compra e venda poderá elevar a porcentagem de retenção de valores pelo empreendedor, em caso de distrato, para até 50% das parcelas já pagas. Estimula, portanto, o empreendedor a proteger o comprador, garantindo-lhe maior retenção.

Desta forma, a instituição do patrimônio de afetação tornou-se muito interessante tanto ao empreendedor quanto ao consumidor. O empreendedor terá o patrimônio destinado à incorporação apartado de seu próprio, de forma que aquele não responderá pelas dívidas deste, existindo maior segurança de que haverá recursos suficientes para o término da obra e menos quebra da empresa responsável. O consumidor, por sua vez, terá mais segurança na aquisição do bem, que estará protegido de eventuais execuções por dívidas do empreendedor, não tendo o adquirente que se preocupar com a perda de seu investimento.

Todas essas previsões ampliaram a utilização do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias brasileiras. Por isso, a importância de analisar a derrubada de vetos sobre o assunto.

Contextualiza-se o texto legal da Lei nº 4.591/1964 com a derrubada de vetos:

Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:   

I – averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento […]

§ 1º Na hipótese prevista no inciso I do caputdeste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica. […] – VETO DERRUBADO

§ 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do capute do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004 – VETO DERRUBADO

Apresenta-se, ainda, as razões dos vetos:

Razões de Veto §1º:

“(…) apesar da boa intenção do legislador, a medida contraria o interesse público, pois extingue o patrimônio de afetação quando do registro da compra e venda, ou seja, em momento anterior à entrega do imóvel, retirando da competência do incorporador a sua obrigação de entrega pronta e gerando um possível passivo de indenizações por obras inacabadas, o que pode trazer fragilidade ao ambiente de negócios.”

Razões de Veto §3º:

“(…) a despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, pois, por emenda parlamentar, foi incluída matéria de conteúdo temático estranho ao objeto originário da Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, tendo em vista que houve a extensão do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.931, de 2004, em violação ao princípio democrático e ao devido processo legislativo, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 1º, no caput do art. 2º e no caput e no inciso LIV do art. 5º da Constituição. (…)

“(…) Ademais, cumpre ressaltar que a alteração destoa dos objetivos dispostos na referida Medida Provisória, que são essencialmente de cunho procedimental, com vistas à modernização, à simplificação e à agilização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos, e de incorporações imobiliárias, de que trata a lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964.”

Entende-se que a derrubada dos vetos foi assertiva.

Sobre o §1º, importante destacar, desde logo, que a extinção do patrimônio de afetação de forma alguma desonera o incorporador da sua obrigação de entrega pronta da obra. Conforme exposto, o objetivo do patrimônio de afetação é preservar o comprador da perda do empreendimento por dívidas do incorporador e manter um capital ao incorporador no caso de desistência do comprador.

Em nenhum momento a ausência do patrimônio de afetação exime as partes de suas obrigações (entrega da obra por parte do incorporador e pagamento do preço por parte do comprador). Tanto é verdade que é plenamente possível a instituição de uma incorporação imobiliária sem patrimônio de afetação.

Outra observação importante é a de que, na verdade, a extinção do patrimônio de afetação já está prevista no próprio caput e inciso I do artigo, e não no §1º.

A intenção do §1º, na verdade, parece ser procedimental, evitando a necessidade da dupla averbação – a da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição e a de extinção do patrimônio de afetação -, bastando a primeira para que se presuma extinta a afetação na matrícula do imóvel.

Com relação ao §3º, não haveria um desvio do processo legislativo por se tratar de um tema de tributação. Muito embora a lei tenha indicado a permanência do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.931³ mesmo no caso da extinção do patrimônio de afetação pelo art. 31-E, I, trata-se de mera regulamentação em conformidade com a lei tributária já existente.

Não houve a criação de qualquer regime tributário diferenciado, mas simplesmente a confirmação da vigência do regime de tributação especial das incorporações imobiliárias – que já automaticamente se aplica às incorporações cujo patrimônio é afetado (art. 2º, II da lei 10.931) – ainda que o patrimônio de afetação se extingua pela averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes.

O regime tributário em si já havia sido criado pela Lei nº 10.931/2004 e já estava sendo aplicado às incorporações imobiliárias de patrimônio afetado nos termos da Lei nº 4.591/1964. A inclusão do §3º apenas sana a questão sobre o tempo de vigência desta aplicação quando ocorrer uma das hipóteses de extinção do patrimônio de afetação.

Voltaremos na próxima coluna com as demais derrubadas dos vetos.

Sejam felizes!

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1 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 204, p. 95

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. p. 333

3 Art. 1º Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação.

Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos:

I – entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e

II – afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964.

Autores:

Vitor Frederico Kümpel é graduado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), onde também é livre-docente em Direito Notarial e Registral. Atualmente é juiz de Direito Titular II do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus.

Natália Sóller é advogada.

Fonte: Migalhas