Notícias

Migalhas – Artigo: As favelas, a REURB e o direito à moradia – Por Érika Silvana Martins e Robson Martins

A formação de favelas deriva da extrema pobreza efetivada em um país continental como o Brasil, com enormes vicissitudes, contudo, a REURB se apresenta como uma solução, ainda que parcial, para o acesso efetivo de grande camada da população ao direito fundamental à moradia, trazendo segurança jurídica aos seus ocupantes e familiares.

04-10-2022

Um dos resultados mais notáveis dos conflitos urbanos e a especulação imobiliária é, justamente, a formação das favelas, também denominadas de comunidades, que, por sua vez, correspondem a conjuntos de habitações muitas vezes precárias, construídas em áreas perigosas, de difícil acesso, morros, alagadas ou impróprias para a edificação, distantes ou não dos centros urbanos e, consequentemente, com dificuldade de acesso às benesses sociais de saúde, emprego, educação e segurança pública.

A habitação formal se tornou inacessível a centenas de milhares de pessoas em situação de pobreza, já que o parcelamento do solo é um dos bens mais onerosos para aquisição. Apesar de os dados sobre a precariedade habitacional carecerem de rigor, “[…] o que por si só já é revelador, há estudos que merecem credibilidade e fornecem números sobre a inadequação habitacional no Brasil” (DAVIS, 2006, p. 55-113).

Neste viés, as favelas, habitações irregulares e em situação de risco estrutural perfazem uma percentagem gigantesca da malha fundiária urbana brasileira, há muito tempo. Trata-se de uma situação de evidente inefetividade do direito fundamental à moradia digna, em flagrante descumprimento à Constituição e a diversos tratados internacionais.

Apesar de não existir uma estimativa precisa do número total de famílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, clandestinos e outras formas de assentamentos irregulares, “[…] é possível afirmar que o fenômeno está presente na maior parte da rede urbana brasileira” (ROLNIK, 2006, p. 199).

A enorme proliferação das favelas é um sintoma claro de que o urbanismo neoliberal, no limite, atingiu seu objetivo inicial: estruturar a cidade por classes socioeconômicas, dividindo-a, a partir dos núcleos empresariais e comerciais, lançando a população operária à periferia, na proximidade das fábricas.

Ocorre que a demanda da população por espaços urbanos tem se intensificado ao longo das décadas: “[…] em detrimento desta procura pelo solo urbano, para fins de construção de moradia, dois são os fatores sociais decorrentes: escassez e aumento do valor” (GUERINI; MARCHESE; VIEIRA, 2019, p. 167).

A intervenção estatal no sentido da promoção do direito à moradia é indispensável à população, especialmente no contexto de desigualdade que caracteriza o Brasil, não apenas no que concerne à aquisição de moradia, como, também, à sua regularização jurídica, social e registral.

Assim é que as ocupações irregulares constituíram comunidades inteiras, com dinâmicas próprias e tradições específicas, de maneira que sua desconstituição, além de prejudicar o direito fundamental à moradia, pode destruir relações interpessoais e comunitárias constituídas durante décadas. Para resolver essas situações é que surgiu a regularização fundiária, prevista na lei 13.465/17.

Trata-se do “processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação”. Implica, além disso, nas melhorias no ambiente urbano do assentamento” (ALFONSIN, 1997, p. 24).

A REURB é um importante instrumento para a política habitacional urbana, voltado à formalização da posse e da propriedade de imóveis irregulares, bem como à reorganização da estrutura fundiária das cidades. Além disso, representa um procedimento caracterizado por uma sequência de fases.

Inicia-se pelo requerimento dos legitimados, seguida pela elaboração do projeto, do processamento administrativo do requerimento, com oitiva dos titulares de direitos, confrontantes e terceiros interessados. Após, ocorre o saneamento do processo administrativo (MACEDO, 2019, p. 32).

A seguir, ocorre a decisão formal, mediante ato público da autoridade competente, sobre o projeto. Após, é expedida a Certidão da Regularização Fundiária (CRF) pelo Município. É título executivo extrajudicial que confere conferir direitos reais aos beneficiários. Ao final, ocorre o registro da CRF (MACEDO, 2019, p. 32).

A Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (Reurb-S) destina-se a regularizar assentamentos ocupados, especialmente, por população de baixa renda, se a área estiver ocupada, de forma mansa e pacífica, há pelo menos cinco anos, ou de imóveis situados em Zona Especial de Interesse Social (MACEDO, 2019, p. 32-33).

Aplica-se a áreas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de Reurb-S. Já a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (Reurb-E) é realizada em núcleos urbanos informais, ocupados por população não qualificada na hipótese de interesse social (MACEDO, 2019, p. 52).

Consectariamente seus beneficiários não são pessoas de baixa renda, nem há isenção de custas e emolumentos ou concessão de legitimação fundiária sobre imóveis públicos. Além disso, geralmente, o poder público não se obriga a implantar infraestrutura, equipamentos comunitários ou melhorias habitacionais ou arcar com seus custos (MACEDO, 2019, p. 52-53).

É necessário, entretanto, definir, por ocasião da aprovação dos projetos, tanto os responsáveis quanto as medidas de compensação e mitigação ambiental, tendo em vista a possibilidade de compartilhamento das responsabilidades com os beneficiários da Reurb-E (MACEDO, 2019, p. 77-78).

Caso o procedimento incida sobre um bem público da União, Estados, DF e Municípios, a aquisição de direitos sobre a respectiva área é condicionada ao pagamento de justo valor da unidade ao poder público. A ocupações sobre área de proteção permanente (APP) se limita às não identificadas como áreas de risco (MACEDO, 2019, p. 83-84).

Nesse caso, também pode ser exigida contrapartida e compensações urbanísticas e ambientais. Estabelece-se uma faixa não edificável com largura mínima de quinze (15) metros de cada lado, ao longo de rios e qualquer curso d’água (MACEDO, 2019, p. 84), de modo a não comprometer a estrutura urbana já instalada.

Referido procedimento, para além de corroborar uma política pública habitacional evidentemente relevante, volta-se ao aprimoramento do planejamento urbanístico, necessitando, entretanto, da participação popular dos cidadãos para, assim, possibilitar o surgimento de uma “cidade sustentável”.

Assim é a Reurb deve ser obrigatoriamente incluída dentre as políticas públicas habitacionais, por ser indispensável à concretização plena do direito fundamental à moradia, permitindo ao proprietário, inclusive, certas operações contratuais e registrais, a exemplo da alienação.

Os assentamentos informais existem há longo tempo, sendo que seu crescimento se associa “[…] a um processo excludente de desenvolvimento, planejamento, regulação e gestão das áreas urbanas, acentuando condições sociais de desigualdade” (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013, p. 25).

Nesse contexto, grande parte do tecido residencial urbano, na maior parte dos países da América Latina, é originado de processos ilegais de parcelamento, situação que explica a recorrente ocupação de espaços indevidos, o alto grau de precariedade e as dificuldades de efetivar ações de planejamento (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013, p. 25-26).

Desse modo, “[…] as implicações desse fenômeno são graves, trazendo prejuízos não apenas aos próprios moradores do assentamento informal, mas à cidade e à população urbana como um todo” (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013, p. 26). Trata-se de um fator de claro desgaste para o planejamento urbano.

Ocorre que o planejamento urbano não pode se sobrepor à necessidade de concretização do direito fundamental à moradia digna. Mister superar as desigualdades no acesso à habitação, especialmente após os danos ocasionados pelo urbanismo neoliberal e pelas crises no setor de construção civil.

O desafio de implementar “[…] uma política para ampliar o acesso à terra urbana para a população de baixa renda em condições adequadas” é elemento fundamental para “[…] enfrentar o passivo de destruição ambiental e exclusão social que marca nosso modelo de urbanização” (ROLNIK, 2006, p. 204).

Para tanto, faz-se indispensável uma modificação na “[…] agenda do planejamento e gestão do solo urbano que, na maior parte das cidades brasileiras, sempre esteve mais voltada para a cidade formal, raramente dialogando com os mercados de baixa renda” (ROLNIK, 2006, p. 204).

A participação cidadã democrática e direta se faz indispensável para que o planejamento urbano se volte às comunidades mais carentes, caracterizadas por estruturas habitacionais mais precárias e, muitas vezes, irregulares, sob pena de se inviabilizar a própria ideia de cidade sustentável.

Destarte, a Reurb é um procedimento indispensável à regularização da situação jurídica e urbanística de imóveis construídos de forma irregular, inclusive, em áreas de risco, garantindo a dignidade dos moradores, de maneira a se concretizar, de maneira integral, o direito fundamental à moradia digna.

Além disso, determina o “[…] resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária” (ALFONSIN, 1997, p. 24), especialmente da parcela que detém menores possibilidades de fruição de estruturas urbanísticas adequadas, inclusive, em decorrência da irregularidade de seus imóveis.

Notável, entretanto, que a falta de participação popular democrática e cidadã no planejamento urbano é um problema antigo, prejudicial desde as primeiras aglomerações humanas, decorrente da incapacidade de se perceber, efetivamente, que as cidades não são formadas apenas por edificações, mas, sim, por pessoas.

A cidade visível sempre foi cheia de imperfeições, desde a antiguidade, quando, pela primeira vez, assumiu sua forma ideal, que distinguiu das aldeias e cidades mais antigas, “[…] não primariamente em pedra, mas em carne e sangue”, tornando a natureza humana subitamente mais plena (MUMFORD, 1998, p.177-185).

De outro viés, a cidade formava e transformava os homens em decorrência de suas atividades, por meio da troca de ideias e opiniões, fazendo cidade e cidadão um só, formando-se uma concepção, simultaneamente, estética e política da unidade urbana. Surgiu, porém, o problema da construção de uma cidade coerente (MUMFORD, 1998, p. 187-507).

A correção das deficiências demanda um sistema de controle de centros múltiplos, mediante desenvolvimento, moralidade, inteligência e respeito próprio, bastantes para permitir os processos automáticos que precisam incidir em todos os pontos nos quais a vida humana esteja em perigo ou a personalidade humana seja ameaçada (MUMFORD, 1998, p. 598).

Portanto, a regularização fundiária não alcançará a totalidade de seu potencial organizador se os referidos procedimentos não forem efetivamente caracterizados pela participação dos indivíduos e das comunidades, voltada à concretização do direito fundamental à moradia digna e, consequentemente, da ideia de cidade sustentável.

Deveras, a formação de favelas deriva da extrema pobreza efetivada em um país continental como o Brasil, com enormes vicissitudes, contudo, a REURB se apresenta como uma solução, ainda que parcial, para o acesso efetivo de grande camada da população ao direito fundamental à moradia, trazendo segurança jurídica aos seus ocupantes e familiares.

Autores:

Érika Silvana Saquetti Martins é doutoranda em Direito pelo Instituição Toledo de Ensino – ITE, mestre em Direito pela UNINTER, mestranda em Políticas Públicas pela UFPR, especialista em Direito e Processo do Trabalho, Direito Público, Notarial e Registral, é professora de pós-graduação latu sensu de Direito da UNINTER e advogada.

Robson Martins é doutorando em Direito pela UERJ, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direito Civil, Notarial e Registral, é professor universitário, procurador da República e foi promotor de Justiça do Paraná (1999-2002) e técnico da Justiça Federal do Paraná (1993-1999).

Fonte: Migalhas