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Migalhas – Artigo: Análise do Resp nº 1.951.456 – O afastamento da aflição gnoseológica hermenêutica para aplicação da concreção híbrida biprocessual – Por José Luiz Germano, José Renato Nalini e Thomas Nosch Gonçalves

Título: Análise do Recurso Especial Nº 1.951.456 - RS (2021/0237299-3) - O afastamento da aflição gnoseológica hermenêutica para aplicação da concreção híbrida biprocessual - judicial e extrajudicial - A simbiótica relação extrajudiciária

18-01-2023

O contemporâneo acórdão da 3º Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi reforçou a ratio decidenci do excelente acórdão da 4º turma de relatoria do Ministro Luiz Felipe Salomão. Trata-se de interpretação dentro dos limites da legalidade em atendimento aos objetivos teleológicos do ordenamento jurídico.

O fenômeno já conhecido da extrajudicialização, ou seja, prática de determinados atos pelos cartórios extrajudiciais. Vale ressaltar, que sempre deverá ser consensual essa relação jurídica processual. Havendo litigiosidade, o Poder Judiciário e os advogados constituídos atuarão na busca pelo justo em ambiente não administrativo, e sim contencioso.

Flávio Tartuce sempre defendeu que a exigência da via judicial no caso existência de testamento deveria ser mitigada, possibilitando assim a feitura em âmbito administrativo, especialmente nos casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado, havendo prévio processamento de abertura do testamento na via judicial. Além disso, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o fim social da lei 11.441/2007 foi a redução de formalidades, devendo essa sua finalidade sempre guiar o intérprete do Direito.

O mesmo deve ser dito quanto ao CPC/2015, inspirado pelas máximas de desjudicialização e de celeridade, em vários de seus comandos. Aliás, essa posição doutrinária foi citada e transcrita no memorável acórdão das 4º e 3º Turmas do STJ sobre o tema.

Não por acaso tivemos enunciados do Colégio Notarial do Brasil em 2014, da VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2015 e enunciado do IBDFAM no mesmo sentido. Em 2016, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo editou alteração normativa para viabilizar em âmbito extrajudicial a perfectibilização desse ato que era interpretado com alcance restrito (apenas em âmbito judicial).

Nesse contexto, o Ministro Luis Felipe Salomão, relator do RESP 1.808.767 do STJ, da 4º Turma, disruptivo em sua intelecção normativa, já havia se posicionado positivamente quando aprovados os enunciados doutrinários sobre a extrajudicialização do direito. Aliás, o referido acórdão foi devidamente relacionado na ratio decidendi do recente acórdão da 3º Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, objeto da presente análise, corroborando ainda mais a construção desse fenômeno, hipertrofiado sobretudo, com a aprovação do atual Código de Processo Civil, em suas parêmias extrajudicializantes.

A maior importância dessas decisões, foram permitir um novo alcance hermenêutico ao dispositivo (artigo 610 do CPC), perscrutando um novo passo adiante, extrajudicial, mas respeitando o comando normativo “… que será judicial…”.

Por outro lado, podemos dizer que o alcance da expressão; “mesmo havendo testamento, é admissível a realização de inventário e partilha por escritura pública, na hipótese em que todos os herdeiros são capazes e concordes”, significa entalhar que o fenômeno extrajudicializante permitiu atender ao dispositivo legal estabelecido no Código de Processo de Civil (artigo 610) com as mesmas cautelas e práxis do ordenamento jurídico.

Ainda que em um primeiro momento a leitura possa indicar a total exclusão da via administrativa, a interpretação teleológica permite as duas vias, não apenas a judiciária.

Com efeito, vale ressaltar que na sistemática proposta, a diferença é que haverá um diálogo de concreção biprocessual – judicial e extrajudial – irradiando assim uma simbiose processual em um procedimento híbrido, mais célere, sem afastar a aplicação legal e a análise judicial prévia, o que representa uma atuação bifronte, sem afastar a missão constitucional do Ministério Público, muito menos do Poder Judiciário.

Em relação ao MP, poderia ser descartado, pela ausência de incapazes, no entanto, esse raciocínio permitiu um grande passo adiante para aplicação desse mesmo arquétipo normativo nos casos de pessoas incapazes.

Nesse ponto, cabe uma observação, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no seu inciso XXXV do artigo 5º, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Por outro lado, o Código de Processo Civil possibilitou buscar a justiça por outros meios, não apenas o Poder Judiciário como única forma de acesso.

Segundo o artigo 3º, não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, permitindo arbitragem, na forma da lei, e direcionando a promoção Estatal, sempre que possível, à solução consensual dos conflitos, devendo a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

No entanto, não podemos generalizar as situações, relativizando a lei, descumprindo o ordenamento jurídico. Devemos ter muita cautela na implementação das soluções jurídicas, sem divorciarmos das conquistas processuais, da segurança da essencialidade da advocacia e do papel institucional do Ministério Público – como fiscal da lei – e do Poder Judiciário.

Por isso, defendemos a possibilidade dessa pacificada solução, em todos os casos, com existência de testamento e com incapazes, inspirando as Corregedorias Estaduais na edição de normas de serviço que facilitem a prática dos atos pelos advogados, notários e juízes, aplicando-se em inventários, partilhas, divórcios e separações.

Objetivamente representa a pacificação do tema, permitindo os julgadores terem maior tranquilidade nos julgamentos – afastando qualquer tipo de infração hermenêutica -, não correndo o risco de insegurança de inovações legais, aplicando o direito em conformidade com o ordenamento jurídico posto.

Também indica uma vereda aos Corregedores Estaduais na implementação das Normas de Serviço (expressão Paulista) ou Código de Normas Extrajudiciais.

Como já mencionado em um recente alvará do TJSP, da Comarca de Iacanga, irradiada de nosso posicionamento simbiótico, essa estrutura processual híbrida, portanto, está sendo lentamente absorvida pela jurisprudência de outros Tribunais, além do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sempre tendo em vista a efetivação dos princípios supramencionados e revelando, dessa forma, o enorme peso que a compreensão principiológica galgou para que tais mitigações tanto no caso do testamento quanto no caso do sucessor incapaz ocorressem.

Na verdade, nesse caso, ainda que tenha esses novos paradigmas hermenêuticos, o que não representa em nenhum momento a subsunção da coerente crítica de Lenio Luis Streck ao tratar do fenômeno de “pamprincipiologismo”. Nesse contexto, vale transcrever seu posicionamento:

“Por certo, a principal preocupação da Teoria do Direito deve ser o controle da interpretação, problemática agravada pelo crescimento da jurisdição em relação à legislação. O “caso brasileiro” é paradigmático nesse sentido. Se aos princípios é possível debitar esse crescimento tensional, é igualmente neles que reside o modo de, ao mesmo tempo, preservar a autonomia do Direito e a concretização da força normativa da Constituição. Daí a necessidade de um combate hermenêutico à pamprincipiologia, que enfraquece sobremodo o caráter concretizador dos princípios, ao criar uma gama incontrolável de standards retóricos–persuasivos (na verdade, no mais das vezes, enunciados com pretensões performativas) que possibilitam a erupção de racionalidades judiciais ad hoc, com forte cunho discricionário. Entretanto, como contrapartida, deve haver um cuidado com o manejo dos princípios, que não podem ser transformados em álibis retóricos e, com isso, fragilizar a autonomia minimamente exigida para o direito nessa quadra da história. Tampouco se pode continuar a utilizar a vetusta cisão entre regras – que seriam aplicadas por subsunção – e princípios, esses “aplicados por ponderação.”

Percebe-se que a irradiação principiólogica desenvolvida e a simbiótica relação processual freia o alcance semântico ao interpretar corretamente o artigo 610 do CPC, na medida em que permanece o procedimento “judicial”, ainda que com uma mitigação da instrumentalidade das formas.

Aliás, aproveitando o ensejo e a evolução do tema, dentro dos limites legais do artigo 610 do CPC, esse caso representou uma grande evolução, notadamente podendo aplicar a solução nos inventários com incapazes, destaca-se um trecho, obiter dictum, dessa atual decisão que corroborará com a aplicação desse arquétipo simbiótico:

“… 12) Reafirmando essa tendência, acrescente-se que o art. 2.015 do CC/2002 estabelece que “se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz”, ao passo que o art. 2.016 do mesmo Código assevera que “será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz…”

Além da própria ementa:

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO SUCESSÓRIO. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DE PARTILHA EXTRAJUDICIAL EM QUE HÁ TESTAMENTO. ART. 610, CAPUT E § 1º, DO CPC/15. INTERPRETAÇÃO LITERAL QUE LEVARIA À CONCLUSÃO DE QUE, HAVENDO TESTAMENTO, JAMAIS SERIA ADMISSÍVEL A REALIZAÇÃO DE INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. INTERPRETAÇÕES TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA QUE SE REVELAM MAIS ADEQUADAS. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA LEI Nº 11.441/2007 QUE FIXAVA, COMOPREMISSA, A LITIGIOSIDADE SOBRE O TESTAMENTO COMO ELEMENTOINVIABILIZADOR DA PARTILHA EXTRAJUDICIAL. CIRCUNSTÂNCIA FÁTICA INEXISTENTE QUANDO TODOS OS HERDEIROS SÃO CAPAZES E CONCORDES. CAPACIDADE PARA TRANSIGIR E INEXISTÊNCIA DE CONFLITO QUE INFIRMAM A PREMISSA ESTABELECIDA PELO LEGISLADOR. LEGISLAÇÕES ATUAIS QUE, ADEMAIS, PRIVILEGIAM A AUTONOMIA DA VONTADE, A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS E OS MEIOS ADEQUADOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS. POSSIBILIDADE DE PARTILHA EXTRAJUDICIAL, AINDA QUE EXISTENTE TESTAMENTO, QUE SE EXTRAI TAMBÉM DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO”.

Portanto, não há uma total desjudicialização, pois continua havendo o atendimento teleológico do dispositivo com a análise cognitiva do Magistrado e do Promotor de Justiça, após a competente deflagração realizada pelo advogado.

Dessa forma, não há desvirtuamento legal, muito menos atividade legislativa administrativa, mas sim a escorreita aplicação da ratio decidendi do RESP 1.808.767 e do atual da 3º Turma, RECURSO ESPECIAL Nº 1.951.456 – RS (2021/0237299-3), com a efetiva proteção dos incapazes – realizado judicialmente – e a valorização da norma fundamental prevista no §§ 2º e 3º do artigo 3º do Código de Processo Civil.

Assim, haverá uma atuação simbiótica desses dois sistemas de acesso à justiça, o extrajudicial e o judicial, já que etimologicamente estarão sempre ligados.

Por fim, com todo esse arcabouço, podemos afastar essa aflição gnoseológica jurídica para aplicar a concreção biprocessual – judicial e extrajudial – irradiando assim uma simbiose processual em um procedimento híbrido, mais célere, sem afastar a aplicação legal e a análise judicial prévia, representa uma atuação bifronte, sem afastar a missão constitucional do Ministério Público, muito menos do Poder Judiciário.

Referências

BRASIL. LEI N. 10.406 DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Código civil, Brasília, DF, jan. 2002. Disponível aqui. Acessado em 20.11.2022.

BRASIL. LEI N. 13.105 DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de processo civil, Brasília, DF, mar. 2015. Disponível aqui. Acessado em 20.11.2022.

STJ. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.951.456 – RS (2021/0237299-3). Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 2022. Disponível aqui. Acesso em 24.11.2022.

STRECK, Lenio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio Dilemas da crise do direito. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012. Disponível aqui. Acesso em 23.11.2022.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 6: direito das sucessões. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 600/605.

Autores:

José Luiz Germano foi juiz de Direito em São Paulo de 1987 a 2017, aposentado como desembargador. É especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM), registrador de Imóveis no estado do Paraná, membro da Academia Paranaense de Direito Notarial e Registral e professor de Direito Civil e Direito Processual Civil.

José Renato Nalini é doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde atuou como corregedor-geral e presidente.

Thomas Nosch Gonçalves é mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), onde também é pós-graduado em Direito Civil. É tabelião e registrador em São Paulo e especialista em Notas e Registro pela Escola Paulista da Magistratura (EPM).

Fonte: Migalhas