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Migalhas – Artigo: A tutela do nome da pessoa transexual à luz do direito à identidade pessoal – Uma análise crítica do provimento 73/2018 do CNJ a partir da lei 14.382/22
O nome é um dos elementos externos que permitem a individualização e a construção da identidade, e configura, portanto, um atributo essencial da personalidade humana. Nesta medida, a tutela do nome à luz do princípio da dignidade da pessoa humana deve refletir o seu livre desenvolvimento, que necessariamente perpassa pela existência de um prenome que individualize dignamente o seu titular1. Os tribunais pátrios dedicam cada vez mais atenção ao direito ao nome como manifestação da personalidade, se preocupando com a análise pormenorizada dos casos concretos submetidos ao crivo judicial, o que, no entanto, tende a diminuir com as recentes alterações legislativas, em especial com a promulgação da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, que alterou a Lei de Registro Público. Por força da modificação operada pela novel lei, depreende-se que o princípio da imutabilidade não mais prospera no direito brasileiro, que autorizou a alteração do prenome de forma imotivada e sem necessidade de autorização judicial, embora a limite em única possibilidade, o que revela ainda que a segurança jurídica é um valor a ser perseguido na tutela do nome. As recentes alterações legislativas e os precedentes judiciais revelam a ampliação da esfera de autodeterminação individual em relação ao direito ao nome, em nítido movimento que prestigia a proteção integral da pessoa em prol de um suposto interesse público de identificação social.
É incontroverso que a já referida lei 14.382/2022 modificou de forma substancial a tutela do nome da pessoa humana e, a partir da nova redação do art. 56, permite que a pessoa, após atingida a maioridade civil, requeira pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial. Cuida-se de inovação que exige cautela em sua análise, eis que autoriza a alteração de prenome de forma imotivada, ou seja, sem comprovação que seja seu prenome de uso ou conhecido socialmente. Ao que parece, o legislador ao reconhecer no art. 55 o direito ao nome, atributo da personalidade vinculado à dignidade, optou pelo modelo da liberdade da pessoa em alterar o seu prenome caso por motivos pessoais não aprecie seu nome, independentemente de ser um nome vexatório ou incompatível com sua identidade social projetada. No entanto, o legislador limitou a alteração imotivada de prenome a uma única vez, sendo as demais e a própria desconstituição dependente de submissão ao Poder Judiciário. Além disso, o art. 57, por sua vez, foi igualmente alterado para permitir a alteração posterior de sobrenomes perante o oficial de registro civil, independentemente de autorização judicial, a ser averbada nos assentos de nascimento e casamento, nas seguintes hipóteses: (i) inclusão de sobrenomes familiares; (ii) inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento; (iii) exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas; (iv) inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado.
Se, por um lado, as modificações legislativas são voltadas a promover a liberdade do indivíduo na escolha de seu nome, em movimento que prestigia a extrajudicialização, por outro, a mudança desmotivada se afasta da configuração do nome como elemento estável da personalidade humana. Embora a identidade seja fluida, ou seja, “não se congela no tempo, renova-se, renasce com o interagir social, na busca da realização do projeto pessoal de vida”2, a mesma deve ser externada objetivamente de modo a permitir a segura individualização da pessoa, sobretudo se se referir aos aspectos estáveis da identidade, isto é, aos fatores de identificação das pessoas. Nessa linha, cabe observar, ainda, a inexistência de prejuízos para terceiros como requisito para alteração do prenome, de maneira a evitar possíveis fraudes e fornecer a tão almejada segurança ao tráfego jurídico3. Nesse cenário, permanece a preocupação com a legitimidade da vontade externada em alterar o prenome, de modo a evitar prejuízos para terceiros, como fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação. O disposto no art. 56, § 4º da LRP evidencia a necessidade de atender a tutela do direito ao nome de forma condizente com o direito à identidade pessoal, de modo a cumprir sua função precípua de individualização da pessoa na esfera íntima, familiar e social, bem como a segurança nas relações jurídicas.
As modificações acima apontadas, necessariamente, desaguam na análise do direito da pessoa transexual à alteração do prenome e do gênero, cujos debates acirrados foram travados em período anterior ao da promulgação da Lei n. 14.382/2022. No Brasil, a cirurgia de transgenitalização4, cujo procedimento atualmente obedece aos critérios apontados na resolução 2.265/20195, do Conselho Federal de Medicina, trouxe profundas reflexões no tocante à possibilidade de retificação do registro civil dos transexuais. Nas últimas décadas, assistiu-se desde a criminalização da realização da cirurgia de readequação sexual, na qual se considerava a prática médica como delito de lesão corporal, forçando a muitos brasileiros a irem para o exterior realizar o procedimento, até a plena legalidade da mudança de sexo e, a consequente, possibilidade de alteração do nome no registro civil.
O caso da modelo Roberta Close se destacou no cenário jurídico nacional, ascendendo um debate então adormecido no país. Registrado como Luís Roberto no assento civil, Roberta Close, nome escolhido após a realização da cirurgia de mudança de sexo na Inglaterra, em 1989, obteve autorização da Justiça brasileira em primeira instância, em 1992, para a alteração registral. Contudo, a sentença foi reformada em sede recursal pelo Tribunal fluminense. Somente em 2005, finalmente, a modelo teve reconhecido seu direito à mudança do assento de registro6. O valioso precedente não eliminou o conservadorismo de diversos magistrados pelo país afora. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão altamente criticável e na contramão do entendimento adotado pelas instâncias inferiores, se posicionou a favor da averbação da mudança de sexo no registro civil, determinando que se fizesse referência ao sexo morfológico do pleiteante no assento como “decorrente de decisão judicial, pela sua condição de transexual submetido a cirurgia de modificação do sexo”7. Este julgado reflete o demasiado apego a valores como a segurança jurídica e boa-fé de terceiros em detrimento do princípio da dignidade humana, valor fundante da República brasileira.8
As barreiras impostas à retificação do registro civil dos transexuais diminuíram cada vez mais, discutindo-se, inclusive, sobre a necessidade de realização da cirurgia de transgenitalização. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu que é perfeitamente possível a alteração antes da cirurgia, com base no direito à identidade pessoal e no princípio da dignidade humana. No julgado restou firmado que “a distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade pessoal”9. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também manifestou entendimento favorável à retificação de registro civil para modificação do prenome nome e do sexo de pessoa transexual não submetida à cirurgia de transgenitalização por decisão pessoal baseada na dificuldade da sua realização e os riscos inerentes do procedimento. A partir de interpretação constitucional do art. 58 da Lei de Registro Público, entendeu-se que “não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como ser humano”10.
Nessa direção, o direito à alteração do nome merece tutela na medida em que atende à identidade pessoal objetivamente externada pelo requerente. Nessa linha não há óbice para o deferimento do pedido independentemente da realização da cirurgia ou mesmo do processo transexualizador11. Enquanto se discute a questão, as instâncias executivas têm admitido que transexuais e travestis adotem o chamado nome social em atos e procedimentos da Administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional. O nome social é aquele pelo qual as pessoas se identificam e são identificadas socialmente. No Estado do Rio de Janeiro, o Decreto 43.065/2011 dispõe sobre o uso do nome social. Apesar de configurar medida paliativa, o nome social demonstrou ser importante instrumento de assegurar que pessoas transexuais pudessem se identificar socialmente sem sofrer constrangimento e humilhação em diversas situações e acabou se difundido em diversas Universidades brasileiras e Instituições de relevância social, como a Ordem dos Advogados do Brasil.12-13
Anderson Schreiber lecionava, ainda sob a égide da redação anterior, que a alteração do nome de transexuais “insere-se, a toda evidência, no âmbito de aplicação do art. 55, parágrafo único, da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), que autoriza a alteração do nome que expõe o sujeito ao ridículo”. Defendia, neste sentido, que “não há sequer a necessidade de recorrer aos princípios constitucionais, extraindo-se claramente da legislação infraconstitucional a possibilidade de alteração do nome que submeta a pessoa a constrangimento”14. O fundamento, portanto, autorizador da mudança do nome se assenta na vedação à discriminação e constrangimento do portador do nome não compatível com a identidade externada pela pessoa. À luz do princípio da dignidade da pessoa humana, advoga Luiz Edson Fachin que não parece adequado “tornar a cirurgia condição sine qua non para a mudança de nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito. Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao corpo agredido”. Assim, defender a possibilidade de alteração de registro civil mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização é garantir e promover a dignidade da pessoa transexual, eis que “configura-se como infração ao direito ao próprio corpo que se exija da pessoa transexual a cirurgia de redesignação sexual, para que só então tenha direito à mudança de nome e sexo em seu registro civil”.15
Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça, em importante guinada de sua posição anterior, passou a entender que os transexuais têm direito à alteração do registro civil independentemente da realização de cirurgia de adequação sexual, “que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico”, fundamentando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como nos direitos à identidade, à não discriminação e à felicidade16. Tal orientação restou definitivamente consolidada com a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, na qual, por maioria, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil.17
Cristaliza-se, portanto, a compreensão de que a identidade de gênero é um elemento constitutivo da dignidade humana e que se submete à redoma da liberdade e da vida privada, de maneira a limitar a interferência estatal na esfera mais íntima dos indivíduos. Desse modo, ao reconhecer a eficácia horizontal dos direitos constitucionais nas relações privadas e a interpretação conforme a convenção, o STF afirma que o direito ao nome, como essencial atributo da personalidade, independente de cirurgia de transgenitalização para alteração18. Assim, a imposição de requisitos como a submissão à intervenção cirúrgica ou a sujeição ao processo transexualizador são dispensáveis para fins de alteração do nome no registro civil, tendo em vista que o que realmente importa é a expressão da identidade pessoal objetivamente exteriorizada. Não é um discurso médico ou um ato de disposição do próprio corpo que legitima a mudança do nome, mas sim a autodeterminação existencial projetada no meio social.
Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando o bom desempenho dos órgãos prestadores de serviço notariais e de registro, no uso de suas atribuições, resolveu editar o Provimento 73, de 28 de junho de 2018, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais. Tal normativa, a rigor, uniformiza no território nacional o procedimento extrajudicial de modificação do prenome e do gênero de pessoas transexuais, evitando regulamentações estaduais díspares e incompatíveis com a decisão do Corte Constitucional. Nesse sentido, nos termos do seu art. 2º, “toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida”. Em acerto, o CNJ prestigia a “identidade percebida”, ou seja, a forma como o sujeito se projeta na sociedade, de modo a evitar eventuais obstáculos e exigências descabidas do Registro Civil, o que contrariaria o conteúdo da decisum do STF.
Inclusive, o mencionado Provimento autoriza que a alteração abranja a inclusão ou a exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência, o que revela a preocupação com a não-discriminação, bem como com a efetiva promoção da identidade pessoal da pessoa transgênero (art. 2º, § 1º). Por outro lado, proíbe a alteração dos sobrenomes e a confusão com a identidade de prenome com outros membros da família (art. 2º, § 2º). A averbação do prenome, do gênero ou de ambos deve ser realizada diretamente no ofício do RCNP onde o assento de nascimento foi lavrado (art. 3º).
Decerto, o Provimento é meritório em promover a liberdade existencial da pessoa transexual, uma vez que impõe que o “procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos” (art. 4º), independentemente de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou do próprio processo transexualizador, bem como de eventual atestado médico. A preocupação com a segurança jurídica é realçada com a obrigatoriedade de “identificar a pessoa requerente mediante coleta, em termo próprio, conforme modelo constante do anexo deste provimento, de sua qualificação e assinatura, além de conferir os documentos pessoais originais” (art. 4º, § 2º), além de indicar extenso rol de documentação obrigatória e facultativa. Cabe ao requerente, ainda, declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida ou, ao optar pela via administrativa, comprovar o arquivamento do feito judicial anteriormente proposto.
O Provimento é enfático ao assegurar a natureza sigilosa do procedimento, uma vez que atinente a informação de índole existencial, logo, resguardado pela intimidade e vida privada, sem prejuízo de considerá-lo dado sensível, que implica em discriminação e estigma social. Desse modo, nos termos do art. 5º, a informação a respeito da alteração de prenome e gênero não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral. Em eventual suspeita de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto ao desejo real da pessoa requerente, cabe ao registrador, de forma fundamentada, se recusar a realizar o procedimento e encaminhar o pedido ao juiz corregedor permanente.
Conforme dicção do art. 8º, uma vez finalizado o procedimento de alteração no assento, cabe ao ofício do RCPN, às expensas da pessoa requerente, comunicar o ato oficialmente aos órgãos expedidores do RG, ICN, CPF e passaporte, bem como ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Nos demais registros, o próprio interessado deve providenciar a alteração da sua identificação.
No entanto, na contramão dos fundamentos da decisão do STF, o Provimento n. 73/2018, impõe como exigência para a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro dos descendentes da pessoa transexual da sua anuência quando relativamente incapazes ou maiores, ou do outro genitor, se menores de 16 anos. Cuida-se de regra sintomática, uma vez que desrespeita a identidade de gênero da pessoa transexual e invisibiliza sua atual projeção existencial no âmbito registral. Ao submeter a averbação do registro de seus filhos à anuência deles ou do pai ou da mãe reforça a ideia de apagamento da identidade da pessoa transexual, além de permitir documentos com informações não mais fidedignas. A bem da verdade, revela norma discriminatória e atentatória à dignidade humana, bem como a não averbação em nada mudará o fato do ascendente ser pessoa transexual e já ter alterado seu prenome e gênero em seu assento registral. Nem seria cabível suscitar o melhor interesse de crianças e adolescentes, uma vez que não é o fato de o pai ou a mãe ser transexual que violaria tal princípio, mas sim um exercício irresponsável da parentalidade. A eventual discriminação e preconceito sociais que o filho venha a sofrer não é de responsabilidade do pai ou mãe transexual, mas sim um grave sintoma de uma sociedade flagelada pelo estigma e exclusão.
Mais grave é a necessidade de anuência do cônjuge para a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento. Como manter uma certidão de casamento com informações que não mais são verdadeiras e incompatíveis com a identidade de um dos cônjuges? Eventual inconformismo do cônjuge com a alteração do prenome e gênero de seu consorte apenas autoriza, no plano jurídico, a via do divórcio por insuportabilidade da vida em comum, embora constitua direito potestativo, podendo ser exercido de forma imotivada. Não há fundamentos razoáveis para tal sujeição da identidade à anuência de outra pessoa, ainda que filho ou cônjuge. A identidade de gênero é constitutiva da existência da pessoa em sua intrínseca dignidade e não se submete ao aval alheio para sua concretização19. Apesar do Provimento permitir o suprimento judicial para as hipóteses de discordância ou recusa na averbação da certidão de nascimento do descendente ou de casamento, por si só submeter o caso ao Poder Judiciário já se distancia da mínima intervenção estatal nas relações familiares, eis que nenhum argumento seria suficiente para proibir a averbação, em nítido descompasso com a promoção da identidade existencial da pessoa transexual.
Com a promulgação da lei 14.382/2022, a diretriz da imutabilidade do nome cedeu seu protagonismo para o princípio da liberdade da escolha do prenome, ainda que extrajudicialmente limitada a uma vez, após atingir a maioridade civil. Com isso, não apenas os transgêneros têm direito fundamental à alteração de seu prenome e de seu gênero, mas todas as pessoas, uma vez que a identidade pessoal é o elemento balizador. Por isso, é suficiente a manifestação de vontade do indivíduo, que poderá exercer tanto pela via administrativa, nos casos previstos em lei, ou por meio de ação judicial. Mesmo diante da novel lei, o provimento 73/2018 do CNJ permanece útil e aplicável, uma vez que disciplina especificamente a alteração não apenas do prenome, mas igualmente do gênero de pessoas transexuais, bem como se preocupa com o sigilo do procedimento e a vedação de qualquer menção do termo “transexual”. Desse modo, ainda que a todos seja atualmente autorizado a alteração imotivada do prenome, aos transexuais ainda cabe disciplina que não tolere a discriminação e promove materialmente a igualdade, em razão das especificidades e da ausência de lei específica sobre o tema. O atual cenário normativo brasileiro impulsiona e desafia uma liberdade cada vez maior na alteração do prenome e gênero das pessoas transexuais, inclusive nos registros de casamento e de nascimento dos filhos, sob pena de revelar situação discriminatória, que não deve ser tolerada em nosso sistema constitucional.
Nessa linha, o provimento 73/2018 do CNJ revela importante iniciativa em prol da concretização do direito à alteração do prenome e do gênero de pessoas transexuais, cujo desiderato de uniformizar no país o procedimento cartorário é louvável, em prestígio à decisão do STF sobre a matéria. No entanto, a exigência de anuência dos filhos ou do cônjuge para a averbação nas respectivas certidões de nascimento e casamento ainda revela apego a uma suposta segurança jurídica, que não prestigia, em nome da dignidade humana, a identidade de gênero e o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas transexuais, o que descortina sua inconstitucionalidade diante dos princípios albergados na Lei Maior.
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1 Seja consentido remeter a ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 52, p. 203-243, 2012; e, ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A disciplina jurídica do nome da pessoa humana à luz do direito à identidade pessoal. RJLB – Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 3, p. 1141-1205, 2017.
2 CHOERI, Raul. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 165.
3 “Art. 56. […] § 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. (Incluído pela lei 14.382, de 2022)”.
4 V. CHOERI, Raul. O conceito de identidade e a redesignação sexual. Rio de Janeiro, Renovar, 2004; e, BARBOZA, Heloisa Helena. Transexualidade: a questão jurídica do reconhecimento de uma nova identidade. In: Advir (ASDUERJ), v. 28, 2012, p. 54-66.
5 Em substituição às antigas Resoluções ns. 1.955/10, 1.652/02 e 1.482/97, todas do CFM, que versavam sobre o tema. A vigente Resolução dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero.
6 O caso é comentado por SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 201-202.
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 678.933, Terceira Turma, Relatoria: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 22 mar. 2007.
8 Em comentário crítico ao mencionado julgado remete-se a Thamis Ávila Dalsenter. Transexualidade: A (in)visibilidade pelo Judiciário: comentários ao REsp 678.933. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 8, n. 31, Rio de Janeiro, 2007, pp. 187-206.
9 BRASIL. Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70022504849, Oitava Câmara Cível, Relatoria; Desembargador Rui Portanova, julg. 16 abr. 2009.
10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208, 17ª Câmara Cível, Relatoria: Des. Edson Aguiar de Vasconcelos, julg. 21 mar. 2014.
11 Sobre o processo transexualizador seja consentido remeter ao trabalho de Heloisa Helena Barboza. Procedimentos para redesignação sexual: um processo bioeticamente inadequado. Rio de Janeiro: s.n., 2010. Disponível aqui. Acesso em 20 jul. 2012.
12 A Resolução n. 7, de 07 de junho de 2016, permite que advogados travestis e transexuais usem o nome social no registro da ordem, bem como na publicidade profissional que promover ou nos cartões e material de escritório de que se utilizar.
13 Enquanto o Poder Legislativo permanece inerte, o Governo Federal publicou o Decreto n. 8.727, de 28 de abril de 2016, dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, determinando que os órgãos e as entidades devam adotá-los de com requerimento, de forma a evitar o uso de expressões pejorativas e discriminatórias.
14 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 200-201.
15 FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 1, jul./set., 2014, p. 54-55.
16 Em razão de segredo de justiça, o número do processo não foi divulgado. As informações extraídas foram publicadas no sítio eletrônico da Corte em 09 de maio de 2017 e se encontram disponíveis aqui. Acesso em 24 maio 2017.
17 STF, ADI nº 4.275, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, julg. 01 mar. 2018.
18 V. STF, RE nº. 670.422, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 15 ago. 2018.
19 “Art. 8º. […] 2º A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, bem como da de ambos os pais. 3º A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge. 4º Havendo discordância dos pais ou do cônjuge quanto à averbação mencionada nos parágrafos anteriores, o consentimento deverá ser suprido judicialmente”.
*Vitor Almeida é professor do Instituto de Direito da PUC-Rio, onde também é coordenador Adjunto do Instituto de Direito.
Fonte: Migalhas