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Migalhas – Artigo: A sobrevivência da sociedade simples e da Eireli após a lei 14.195/21 – Por Fernando Gaggini, Giovani Magalhães e Haroldo Verçosa
No âmbito da MP 1.040/21, havia uma verdadeira revolução no sistema jurídico empresarial brasileiro. Com efeito, havia a proposta de se acabar com a dicotomia societária existente entre sociedades empresárias e sociedades simples.
Em texto anterior, publicado no Migalhas em 23/7/21, indagávamos no título sobre qual seria o destino da sociedade simples e da EIRELI. Tal questionamento era pertinente, frente à proposta de extinção de ambas, no curso da MP 1040/21. Agora, com a lei 14.195, de 26/8/21, fruto de conversão da referida medida provisória, temos uma resposta efetiva para a referida pergunta. E, surpreendentemente, ambas sobreviveram, mantendo-se presentes na legislação, ainda que submetidas, de agora em diante, a uma realidade distinta. Vejamos:
(i) Quanto à sociedade simples
No âmbito da MP 1.040/2021, havia uma verdadeira revolução no sistema jurídico empresarial brasileiro. Com efeito, havia a proposta de se acabar com a dicotomia societária existente entre sociedades empresárias e sociedades simples. As sociedades, independente do órgão de registro ou do tipo de atividade econômica, deveriam se submeter ao regime jurídico aplicável às sociedades empresárias (art. 38).
De outro lado, tal equiparação não afetaria as normas de direito tributário aplicáveis às cooperativas e às sociedades uniprofissionais (art. 38, §1º). Depois de cinco anos da entrada em vigor de tal equiparação, as sociedades equiparadas poderiam se submeter ao regime jurídico falimentar, previsto pela lei 11.101/05 (art. 38, §2º). Porém, é oportuno salientar que as obrigações constituídas antes da entrada em vigor da lei não estariam sujeitas à recuperação judicial, sendo considerados extraconcursais, na falência (art. 38, §3º).
Nessa medida, como se percebe, a ideia era abolir do sistema a sociedade simples, seja quanto espécie, seja quanto tipo societário. Para além de tudo o que já foi falado, restaria proibida a constituição de sociedades simples, com a entrada em vigor da nova lei, a ponto de já ser levado direto para a Junta Comercial o contrato social de sociedade simples já firmado, porém, ainda não registrado.
Ainda, as regras do tipo societário – sociedade simples – seriam transformadas nas regras gerais em matéria societária, sob a denominação “Das Normas Gerais das Sociedades” (art. 39). Por final, o Registro Civil de Pessoa Jurídica perderia a atribuição de constituir sociedades, passando todo o registro societário, em razão da equiparação descrita anteriormente, à alçada da Junta Comercial, o Registro Público de Empresas Mercantis.
Contudo, com o advento da lei 14.195/21, referidas propostas não foram positivadas, não se confirmando o propósito de extinguir a dualidade de regimes jurídicos.
Referidos temas foram objeto de veto, justificado nos seguintes termos: “A proposição legislativa dispõe sobre a eliminação do tipo societário denominado de sociedade simples e sobre a submissão de todas as sociedades ao regime das sociedades empresárias. Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa é contrária ao interesse público, pois promoveria mudanças profundas no regime societário e uma parcela significativa da população economicamente ativa seria exposta a indesejados reflexos tributários nas diversas legislações municipais e a custos de adaptação, sobretudo em momento de retomada das atividades após o recrudescimento da pandemia da covid-19. A imposição de obrigações fiscais acessórias representaria grandeza relevante na qualidade do ambiente de negócios. A imposição dessas obrigações às sociedades atualmente em funcionamento seria prejudicial ao ambiente de negócios.”
Assim, manteve-se inalterado o cenário no que tange às sociedades simples.
(ii) Quanto à EIRELI
Diversamente à situação da sociedade simples, que manterá sua utilidade prática após a lei 14.195, a EIRELI, embora tenha permanecido no ordenamento jurídico como tipo empresarial, tende a se ver esvaziada, sem grande utilização efetiva.
Isto porque, o texto da MP 1040 previa a extinção da EIRELI, e para tanto adotava duas medidas complementares, quais sejam: (1) a revogação dos artigos do Código Civil que preveem a EIRELI (os quais sejam, o artigo 44, VI, que a relaciona dentre as pessoas jurídicas de direito privado, e o artigo 980-A, que disciplina o referido tipo empresarial); e (2) a previsão de transformação obrigatória das atuais EIRELIs em sociedades limitadas em situação de unipessoalidade.
Contudo, o texto da lei 14.195 acabou trazendo uma realidade distinta. Isto pois, por um lado, o artigo 41 lei 14.195 determinou que todas as EIRELIs existentes na data da entrada em vigor da lei devam ser transformadas em sociedades limitadas unipessoais, independentemente de qualquer alteração em seu ato constitutivo. Tal medida leva a um esvaziamento prático do instituto, dado que as mais de 1 milhão de EIRELIs existentes (conforme dados do DREI, constantes do Mapa de Empresas), se tornarão sociedades. No entanto, ao mesmo tempo, foram vetadas as revogações dos artigos referentes à EIRELI (art. 980-A e art. 44, VI, do Código Civil) de modo que ela permanece presente na legislação brasileira, como tipo disponível aos empreendedores. Logo, não existe na nova legislação impedimento legal de criação futura de novas EIRELIs, dado que tal espécie foi mantida no Código Civil. Sendo assim, continuará tal figura entre nós, embora possivelmente abandonada pelos empreendedores, tal qual as sociedades em nome coletivo e em comandita, dado que, sob uma ótica econômica de custo-benefício, não se justifica sua constituição frente à possibilidade de utilização de sociedades limitadas em situação de unipessoalidade.
Assim, a tão alardeada extinção da EIRELI não teria se confirmado, e ela permaneceria, ao menos por enquanto, figurando no Direito Empresarial brasileiro.
Registre-se que parte dos estudiosos sobre o tema tem defendido a ideia de uma suposta revogação tácita da EIRELI1, decorrente do art. 41 da lei 14.195 (que determinou apenas que as EIRELIs existentes na data da entrada em vigor da lei devam ser transformadas em sociedades). Mas, frente a isso, reitere-se o entendimento dos autores deste paper: tal artigo teria alterado a situação das EIRELIs existentes à data da entrada em vigor da nova lei, mas não teria extinguido a figura do ordenamento e nem impediu a criação de novas EIRELIs, na medida em que, enquanto instituto jurídico, permanece viva, não tendo sido extinta.
Trata-se de uma situação contraditória. De um lado as EIRELIs até então existentes foram automaticamente transformadas em sociedades limitadas unipessoais, com os reflexos correspondentes, a seguir examinados. De outra parte, o texto da lei não proíbe os interessados de constituir novas EIRELIS, nos termos dos artigos 44, inciso VI do CC/2002 e 980-A. Qual a razão para isso, se é que existe alguma, ou se trata do famoso cochilo do legislador? E, caso afirmativo, como se entender a questão?
No regime anterior discutia-se se a EIRELI, do ponto de vista jurídico, poderia ser considerada uma sociedade, tendo em conta que estas estão expressamente referidas no inciso II do mesmo art. 44 do CC/02, diferentemente da primeira que estava agasalhada no inciso VI. Dessa maneira, a EIRELI consistiria em um instituto peculiar de natureza não societária. Não sendo sociedade a EIRELI é (ou era) formada pela separação de parte do patrimônio de uma pessoa natural, que passa a responder exclusivamente por suas obrigações. Consequentemente, por exemplo, não se poderia falar de uma eventual superação da uma personalidade jurídica inexistente para o fim da responsabilidade do sócio, titular da empresa, que sócio não seria.
Arriscamos, ainda, outra interpretação. Dado que, como efeito do veto, as EIRELIS foram mantidas no art. 44, inciso VI do CC/02, teria se dado uma revogação implícita do art. 41 da lei 14.195/21, por determinar uma situação contraditória interna naquele Código, cujo peso é maior do que o de uma lei ordinária. Ou seja, o legislador atirou no que viu e matou o que não viu.
Como se vê, parece que estamos diante de um labirinto aparentemente intransponível. Quem desejar que tente chegar ao outro lado.
Referências:
1 Inclusive, tal linha de entendimento consta de Ofício Circular do DREI, divulgado em 09/09/2021 e direcionado às Juntas Comerciais. No entanto, é preciso observar que tal documento não soluciona por completo a questão, pois vários aspectos permanecem pendentes: primeiro, formalmente trata-se de ofício circular, que vai de encontro a texto vigente do Código Civil; ademais, trata-se de ato que tenta dar força a dispositivo expressamente vetado, ou seja, retomar por via infralegal matéria vetada; ainda, é preciso observar que o artigo 41 da lei 14.195 não faz qualquer referência à extinção do instituto ou mesmo proibição de constituição de EIRELIs, dado que ele apenas determina uma transformação compulsória com marco temporal muito bem delimitado (EIRELIs ¨existentes na data da entrada em vigor da lei¨); e, também, deve-se lembrar que temos, na prática, além das EIRELIs de natureza empresária, as EIRELIs de natureza simples, vinculadas ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
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Fernando Schwarz Gaggini é advogado e professor universitário.
Giovani Magalhães é mestre em Direito Constitucional e Relações Econômicas pela Unifor. Professor de Direito Empresarial, na Graduação em Direito da Unifor e na Pós-graduação em Direito da Unifor e da Unifametro. Professor de Direito Empresarial dos preparatórios Mege, CPIuris, Grancursos e Teresa Cruz.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.
Fonte: Migalhas