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Migalhas – Artigo: A laje – Direito real e ferramenta para a regularização das ocupações irregulares nos centros urbanos brasileiros – Por Rodrigo Freitas Câmara

02-02-2023

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos relata, em sua obra “Sociología jurídica crítica: para un nuevo sentido común en el derecho”[1], os resultados de uma pesquisa de campo que realizou nos anos 1970 em uma comunidade carente (popularmente também chamada de favela[2]) localizada na cidade do Rio de Janeiro, à qual ele deu o nome fictício de “Pasárgada”[3]. Em suma, trata-se de uma ilustração criada pelo sociólogo para demonstrar a existência de direito para além do direito do Estado.

Na ilustração, Boaventura Santos aponta a existência de duas ordens jurídicas: o direito do Estado e o “direito de Pasárgada”. Enquanto o primeiro dispensa apresentações, o segundo se refere a uma série de estratégias idealizadas pelos indivíduos que habitam naquela localidade para preencher o vácuo deixado pela ausência do direito do Estado e para assegurar um mínimo de ordem social nas relações dentro daquela comunidade.[4] Em “Pasárgada”, os problemas envolvendo os habitantes e o tema da propriedade eram frequentes. Mas, como “Pasárgada” é um assentamento ilegal formado por uma sucessão de atos irregulares, os títulos de propriedade que poderiam ser apresentados pelos moradores da localidade eram inválidos aos olhos do direito do Estado. Essa invalidade dos títulos era um grande obstáculo para que as disputas pudessem ser levadas ao Poder Judiciário, que consideraria as posses como ilegais e sem qualquer validade.

Considerando a ilustração de “Pasárgada”, que se baseia em uma vivência da década de 1970, temos que a questão da regularização fundiária urbana é um problema antigo na sociedade brasileira. No Brasil, a regularização fundiária é questão de grande relevância tanto no âmbito nacional quanto no local. Desde a lei Federal 10.257/2001, conhecida como “Estatuto da Cidade”, a regularização fundiária dos assentamentos urbanos ganhou maior repercussão. Hoje, a regularização fundiária é entendida como um caminho para se garantir o acesso à posse legal da moradia digna.[5]

Ocorre que, da mesma forma que o fenômeno da verticalização pode ser verificado nos centros urbanos, ele também está presente nos assentamentos urbanos ilegais. Importante destacar que as razões que justificam a existência de um mesmo fenômeno nessas duas localidades são diversas. No entanto, fato é que, mesmo com a regularização fundiária sendo um tópico de alta relevância na pauta nacional, nem todas as construções existentes nas favelas foram abraçadas pela legislação existente até então. Esse foi o caso dos “puxadinhos”, “construções feitas em acréscimos, superiores ou inferiores, a imóveis já edificados, com a finalidade de ampliar o uso do solo, viabilizando o exercício do direito de moradia”.[6]

Nesse sentido, foi feita uma tentativa para se confrontar a questão por meio da MP n° 759/16, convertida na lei 13.465/2017. A referida Medida Provisória, que trata, dentre outras coisas, da regularização fundiária urbana e rural no Brasil, acabou por adicionar um novo inciso ao art. 1.225 do CC, o inciso XIII, que possui a seguinte redação: “a laje”. Dessa forma, foi adicionado ao rol dos direitos reais do dispositivo o direito de laje. Além disso, foi também adicionado um novo título no livro III do CC/02 especialmente para tratar do direito de laje (art. 1.510-A e ss.).

Nas palavras de George Marmelstein, “o direito de laje nasce como um fenômeno social espontâneo no seio de várias favelas brasileiras”.[7] Portanto, não se trata de mais um caso em que o Direito age de forma a guiar a sociedade de forma transformadora. Na verdade, o que se teve com a MP 759/16,[8] convertida na lei 13.456/2017,[9] foi o Direito tendo de se adequar a uma realidade construída pela sociedade.

Nessa mesma linha, Ricardo Pereira Lira ensinava que o direito de laje procura transpor para o ordenamento jurídico formal a realidade que caracteriza as favelas verticalizadas de grandes centros urbanos. Em favelas verticalizadas, afigura-se extremamente frequente o uso da laje por terceiro de modo independente do uso dado pelo possuidor do imóvel subjacente, transferindo-se de pessoa a pessoa, com base em assentamentos mantidos por associações de moradores.[10]

Portanto, o presente ensaio busca compreender o direito de laje. Assim, a questão que se propõe é se o direito de laje possui a capacidade de ser aplicado na regularização fundiária. Para isso, o artigo será dividido em duas partes. Primeiro, será feita uma breve apresentação dos aspectos históricos relevantes para o nascimento do direito de laje em conjunto com a evolução desse direito até sua inclusão no CC/2002 pela MP 759/16, convertida na lei 13.456/2017. Em um segundo momento, o direito de laje será trabalhado de forma mais aprofundada, de modo a abordar a noção de direito de laje, seus requisitos legais, sua constituição e aquisição, a regulamentação da laje e, por fim, a extinção do direito de laje.

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[1] Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009.

[2] Sobre o termo “favela”, Pedro Pontes de Azevedo ensina que o termo, na origem, nomeia arbusto ou árvore (Jatropha phyllacantha) da família das euforbiáceas encontrada no Sudeste e Nordeste Brasileiros, especialmente nos morros onde inicialmente se instalaram as primeiras aglomerações de moradias irregulares, dando-lhes o nome com o passar do tempo. AZEVEDO, Pedro Pontes de. Usucapião da propriedade possível em terras públicas: o direito de superfície e à moradia em áreas de exclusão social. Curitiba: Juruá, 2016. p. 87.

[3] “La denominé Pasárgada, siguiendo el título del poema escrito por el poeta brasileño Manuel Bandeira.” Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117.

[4] “Debido a la ausencia del sistema jurídico estatal, y especialmente al carácter ilegal de las favelas como asentamientos urbanos, las clases populares que habitan en ellas idearon estrategias de adaptación con el objeto de asegurar un mínimo de orden social en las relaciones de comunidad.” Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117.

[5] D’OTTAVIANO, M. C. L.; SILVA, S. L. Q. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL: VELHAS E NOVAS QUESTÕES. Planejamento e Políticas Públicas, [S. l.], n. 34, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 ago. 2022.

[6 ]FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. – 4ª ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Juspodivm, 2020, págs. 29 e 30.

[7] MARMELSTEIN, George. Do direito de Pasárgada ao direito do asfalto. Prefácio. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. – 4ª ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Juspodivm, 2020, pág. 17.

[8] Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022.

[9] Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022.

[10] LIRA, Ricardo Pereira. A aplicação do direito e a lei injusta. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, n. 5, 1997, pág. 85-97. In: SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, págs. 787 e 788.

*Rodrigo Freitas Câmara é bacharel em Direito pela FGV-RJ, assistente Jurídico no Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados.

Fonte: Migalhas