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Migalhas – Artigo: A doação ao cônjuge, ou companheiro, de imóvel recebido com cláusula de incomunicabilidade – Por João Francisco Massoneto Jr. e Rafael Gil Cimino

13-10-2021

Pode um cônjuge ou companheiro doar ao outro imóvel gravado com a cláusula de incomunicabilidade? O tema, como muitos outros no ramo do Direito, divide opiniões. Muitos profissionais do direito entendem pela impossibilidade, assim como muitos entendem pela possibilidade dessa doação. Traremos a seguir os argumentos das duas correntes existentes sobre o tema.

Apesar de nos posicionarmos a favor de uma das duas correntes, o objetivo é trazer os fundamentos legais de ambos os lados, de maneira a comprovar a existência da divergência sobre o tema e suas consequências, e, principalmente, chamar a atenção dos profissionais do direito, especialmente dos notários, para que percebam a importância de se tomar certos cuidados, no momento em que o doador mencione seu desejo de impor a cláusula de incomunicabilidade.

Para que possamos abordar amplamente os efeitos da cláusula de incomunicabilidade, não entraremos em outras questões importantes contidas nas doações, por exemplo, os impedimentos existentes quando se tratar de bem pertencente à legítima herança, e a necessidade de justa causa em determinadas situações (arts. 549 e 1.848, CC), e a obrigatoriedade de se resguardar o mínimo para subsistência do doador, impossibilitando a doação da totalidade de seu patrimônio (art. 548, CC). Em razão disso, adiantamos que tais observações são imprescindíveis, portanto, a leitura a seguir deve ser feita levando-se em consideração já terem sido observadas e solucionadas todas essas questões.

Outra breve observação é a de que a cláusula de incomunicabilidade, dentro do contexto de que trataremos, não tem efeito, ao menos diretamente, no direito sucessório; sendo assim, mesmo que o donatário receba, por testamento ou doação, bem gravado com esta cláusula, ao falecer, esse bem será herdado pelo seu cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo no regime da separação obrigatória de bens (artigo 1.641, CC). Sobre esse tema, nos parece que não há mais divergência, visto que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou tal entendimento.

Sabemos que, quando se tratar de bem particular, um cônjuge ou companheiro pode perfeitamente doar ao outro, pois o bem é de propriedade exclusiva do doador, o que não iria causar confusão patrimonial alguma. Já se o regime do casal for o da comunhão universal de bens, em regra, um cônjuge (ou companheiro) não poderia doar ao outro, pois o bem doado comunicaria novamente, tornando inútil a doação, salvo nas exceções trazidas no artigo 1.668, do Código Civil Brasileiro. Trataremos de mais alguns detalhes sobre essa situação específica, ao final deste artigo.

A divergência surge quando aquele que agora pretenda doar um imóvel ao seu cônjuge (ou companheiro) tenha recebido este bem com a cláusula de incomunicabilidade, pois, nesse caso, há quem entenda que ele não poderia realizar esta doação, uma vez que o objetivo da imposição desta cláusula foi exatamente proibir que o bem doado fizesse parte do patrimônio de seu cônjuge (ou companheiro).

Cumpre ressaltar que a imposição de cláusula de incomunicabilidade somente cumpre sua finalidade no caso em que o donatário é casado no regime de comunhão universal de bens. Isso porque, por se tratar de aquisição a título gratuito, não haverá comunicação do bem com o cônjuge do donatário caso estes sejam casados nos demais regimes de bens matrimoniais previstos no Código Civil.

Um dos principais argumentos de quem entende não ser possível a doação é o de ferir a vontade dos doadores primitivos (normalmente os pais), frustrando o objetivo principal almejado por eles, de não haver, em hipótese alguma, comunicação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário primitivo (filho). Alegam, ainda, que, ao aceitar a doação com a cláusula de incomunicabilidade, o donatário (filho) se comprometeu a respeitá-la e cumpri-la, na forma em que foi instituída, e, ao fazer a doação ao cônjuge (ou companheiro), estaria, de certa forma, descumprindo o contratado, visivelmente burlando ou rompendo a cláusula imposta e aceita no momento da liberalidade dos doadores primitivos (pais).

Alguns adeptos dessa corrente defendem, inclusive, que tal prática, por parte do donatário (filho), estaria ferindo a teoria da vedação do comportamento contraditório e da boa-fé objetiva, que visa um comportamento coerente com o objetivo a ser alcançado. Alegam, também, que aquilo que não pode ser feito diretamente, também não se pode realizar indiretamente, ou, em outras palavras, se é vedado fazer de forma direta, não se pode fazer por vias oblíquas. Citam, ainda, que o doador primitivo (pai) colocou somente a incomunicabilidade, sem incluir também a inalienabilidade, pois o objetivo não era tornar o imóvel inalienável para terceiros.

Por fim, boa parte, dos que defendem a impossibilidade dessa doação ao cônjuge (ou companheiro), entende que a comunicação não deixa de ser uma alienação atípica, e também explicam sobre a necessidade de se observar o artigo 112, do Código Civil, que diz: “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

Embora, respeitosamente, discordarmos, existem muitos juristas que entendem dessa maneira, ou seja, que essa incomunicabilidade também se estenderia para uma inalienabilidade específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, dentre eles estão: José Hildor Leal, José Flávio Fischer, Vania Carvajal, Maria da Penha Emerli Madeira, Rudinei Baumbach, Felipe Leonardo Rodrigues, Priscila Agapito, Fernando Dias, Márcio Campacci, Pedro Lupporini, Paulo Roberto Gaiger Ferreira, Marcos Antônio Santorsula, Carlos Eduardo Meira Jassi, Evelyn Aída Tonioli Valente, Fábio Nougalli. Nesse sentido, também entende o ilustre civilista Ulysses da Silva.

De outro lado, entre os que pensam como nós, que a doação ao cônjuge (ou companheiro), caso exista apenas a cláusula de incomunicabilidade, é perfeitamente possível, estão os juristas: Ademar Fioranelli, Martha El Debs, Carolina Mosmman, Arthur Del Guércio Neto, Gustavo Canheu, Alexandre Kassama, Marco Antônio Camargo, Bruno Cysne, Nilo de Carvalho Nogueira Coelho, Carlos Londe, Pedro Bacelar, Orlando Ceschin e outros. No mesmo sentido, estão os renomados civilistas Orlando Gomes, José Fernando Simão, Maurício Bunazar, Flávio Tartuce, Giselda Hironaka, Cristiano Chaves de Faria, Mario Delgado e Christiano Cassettari.

Os motivos pelos quais entendemos possível a doação ao cônjuge (ou companheiro), de bem gravado somente com a cláusula de incomunicabilidade, iremos expor a seguir. No entanto, não desejamos dizer que a razão está com uma corrente ou com a outra, pois, como já dito, ambas possuem bons argumentos. O objetivo, então, é expor os fundamentos das duas, para que o leitor reflita e tire suas conclusões, mas, sobretudo, para comprovar a divergência existente sobre o tema, e sugerir algo que possa contribuir para evitar litígio, não deixando que novas doações cheguem a esse impasse no futuro.

O primeiro ponto a ser esclarecido é que cada cláusula tem seu efeito próprio, que o próprio nome já diz, não havendo necessidade, e, a nosso ver, não sendo possível, realizar interpretações mais amplas, uma vez existir em nosso ordenamento jurídico uma cláusula para cada situação específica (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) e, ainda, a possibilidade de usá-las como desejar, seja de modo vitalício ou por tempo determinado, ou, ainda, para pessoas ou situações determinadas. A única cláusula que possui o poder de atrair as outras duas, segundo nosso ordenamento jurídico, é a de inalienabilidade, conforme consta do artigo 1911, do Código Civil Brasileiro. Nota-se, assim, que as demais cláusulas são totalmente independentes, do contrário, também haveria previsão expressa na legislação.

A cláusula de inalienabilidade, considerada individualmente, importa em proibição ao beneficiário da liberalidade em dispor ou alienar o bem clausulado. O negócio jurídico de disposição ou de alienação é aquele que implica em alteração da titularidade de uma posição jurídica subjetiva patrimonial ou, em outras palavras, é o negócio que opera transmissão de direitos, reais ou pessoais, de uma pessoa, alienante, a outra, adquirente. São exemplos de negócios jurídicos de disposição: compra e venda, doação, permuta e dação em pagamento, além de outros contratos atípicos que possam ser formalizados pelas partes. Sobre esses negócios incide a cláusula de inalienabilidade.

A cláusula que importa em incomunicabilidade, por sua vez, visa impedir que o bem objeto da liberalidade venha a ser adquirido por meio de comunhão pelo cônjuge do beneficiário ou donatário. Comunhão não é negócio jurídico de disposição (nem o pressupõe), pois, embora importe em aquisição de posição jurídica subjetiva patrimonial pelo comunheiro, essa aquisição não implica em alteração ou alienação da posição jurídica subjetiva patrimonial do outro comunheiro, titular inicial do direito subjetivo patrimonial que, nesta condição, permanece.

Significa dizer a aquisição de determinado bem por meio da comunhão (resultante de regime de bens matrimonial, por exemplo) não implica em perda de titularidade desse bem pela outra. Embora haja transmissão de direito, não há negócio jurídico dispositivo.

Neste sentido, as lições de Luciano de Camargo Penteado:

Comunhão implica conjunto unitário de situações jurídicas pertencentes no mesmo polo a sujeitos distintos, mas unidos por uma causa preexistente (casamento, contrato social) […] ocorre, a bem verdade, uma transmissão do objeto da situação jurídica sem negócio jurídico para formar o todo […] na comunhão verifica-se uma situação jurídica em que o mesmo direito sobre determinada coisa comporta diferentes sujeitos.1

Sob esse viés, além de forma de aquisição de bens, a comunhão consiste em titularidade, por pessoas diversas, de uma única situação jurídica sobre determinado bem ou bens. Percebe-se, como dissemos, que a comunhão não é e não pressupõe negócio jurídico dispositivo, uma vez que seus efeitos decorrem da própria lei, por meio de normas cogentes, a depender do regime de bens matrimonial escolhido.

Assim, ao se partir do pressuposto que as restrições ao exercício da propriedade devem ser sempre previstas em lei, seja por meio dos direitos reais limitados, em numerus clausus, seja por meio de estipulações de cláusulas restritivas, a interpretação de tais negócios, não obstante o conteúdo do artigo 112, do Código Civil, deve-se dar sempre de forma restrita, por se tratar de situações excepcionais que impedem ou limitam a livre circulação de bens, protegendo interesses sociais e econômicos, além dos interesses particulares do instituidor da cláusula restritiva, de forma que a cláusula de inalienabilidade (considerada individualmente) tem como fim impedir a realização de negócios dispositivos sobre determinado bem, enquanto que a cláusula de incomunicabilidade apenas impede que determinado bem seja transmitido por meio de comunhão.

Os argumentos trazidos acima já se mostram contrários a algumas alegações sobre a impossibilidade de doação de bens gravados somente com a incomunicabilidade. O primeiro seria pelo fato de o doador poder usar a cláusula de inalienabilidade de forma específica, ou seja, somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, se assim ele desejar, fazendo com que o argumento de que o doador não impôs a inalienabilidade, por não querer restringir o direito do donatário de alienar o imóvel a terceiros, não prosperar. O segundo, pelo fato de a lei trazer expressamente qual é a cláusula restritiva que tem o poder de atrair as demais (CC, 1.911), restaria prejudicado o entendimento de que a incomunicabilidade atrairia uma inalienabilidade específica, ou seja, válida somente em relação ao cônjuge (ou companheiro) do donatário, pois, se houvesse mais alguma possibilidade de atração entre cláusulas, esta deveria igualmente estar expressa em lei.

Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos ser evidente que a cláusula de incomunicabilidade foi criada para evitar a comunicação automática com o cônjuge (ou companheiro), decorrente do regime de bens do donatário, o que, sem dúvida alguma, e até aqui não há divergência, ela sempre resulta no propósito almejado, fazendo com que o bem doado se torne de propriedade exclusiva do donatário, seja qual for o regime de bens do casal. A nosso ver, os efeitos dela param por aí; não se pode querer ampliá-los, se o doador, que é quem detém esse poder, não o fez expressamente. Ele, doador, é o único que pode estender essa restrição, e, para isso, como já vimos, existe em nosso ordenamento jurídico as outras cláusulas específicas, como a de inalienabilidade, caso queira proibir o donatário de alienar, e a de impenhorabilidade, caso queira proibi-lo de penhorar.

Acreditamos que esse entendimento, de ampliar os efeitos dessa cláusula de incomunicabilidade por conta própria, criando certo cenário fictício ao supor que o desejo do doador primitivo será frustrado, é muito perigoso, pois estaríamos adentrando na vontade do doador, que tanto poder ser essa, como não. A lógica nem sempre pode ser a que imaginamos, além da existência das exceções, que estão presentes em quase todas as situações de nosso dia a dia. O que é lógico para alguns, pode não ser para outros. Ou, como diriam alguns estudiosos, a lógica, assim como o óbvio, é individual.

Também é perfeitamente possível que os doadores só queiram impedir a comunicação ao cônjuge (ou companheiro) no momento de sua doação, deixando o donatário livre para alienar futuramente, seja para quem for, até para o seu cônjuge (ou companheiro), que pode muito bem se mostrar merecedor no futuro. O doador pode simplesmente inserir a cláusula, deixando, dali por diante, a critério e conveniência do donatário, qualquer ato que ele queria realizar em relação ao imóvel doado.

E, se fôssemos partir para o campo das imaginações, o que não recomendamos, assim como fazem em relação à vontade dos doadores, ao defenderem que alienação ao cônjuge (ou companheiro) iria ferir a vontade primária do doador, também poderia se imaginar a hipótese de o donatário estar passando por uma fase turbulenta em seu relacionamento, e, a seu pedido, o pai acabou inserindo a cláusula de incomunicabilidade naquele momento da doação, o que, futuramente, com o relacionamento fortalecido, poderia o filho, já como proprietário exclusivo, doar a metade para sua esposa (ou companheira), caso desejasse.

Ainda no perigoso campo das imaginações, o donatário poderia divorciar-se, e, depois, se casar ou viver em união estável com outra pessoa, ter filhos com ela, e, eventualmente, desejar doar metade desse imóvel à atual esposa (ou companheira), que nada tem a ver com a primeira, de quem foi protegida a comunicação patrimonial. Nesse caso, seríamos obrigados a fazer novas imaginações, pois, se fosse mesmo possível atrair a tal da “inalienabilidade específica”, mesmo tendo sido colocada somente a incomunicabilidade, com o argumento de ferir a vontade dos doadores primitivos, de não comunicar com o cônjuge (ou companheiro), agora teríamos novamente que interferir na vontade dos doadores, supondo se era somente àquele primeiro cônjuge (ou companheiro), ou se também seria para esse novo, que eles nem imaginavam que poderia existir.

Como podemos ver, o simples “imaginar”, “supor”, “deduzir”, é muito complexo, por isso entendemos que esse tipo de interpretação não pode ficar a cargo de terceiros, tampouco do notário que se nega a realizar o ato, ou do registrador que se nega a registrá-lo. É preciso analisar o que foi imposto de forma expressa, e saber separar seus significados, sob pena de cometer grave injustiça, retirando das pessoas, direitos que se encontram garantidos em nosso ordenamento jurídico pátrio.

Nesse sentido, explica o professor Cristiano Chaves de Faria:

Se o pai, apenas, impôs a cláusula de incomunicabilidade ao beneficiário (filho, no exemplo), impediu que ocorresse a COMUNHÃO DO BEM, em face do regime de bens da relação afetiva. Apenas isso! Todavia, não se retirou dele o direito de livre dispor da sua propriedade, que lhe é garantia constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXII) e carrega consigo esse poder (CC, artigo 1.228).

Por isso, o titular pode, sim, dispor livremente para quem quer que seja, inclusive para o próprio cônjuge – que não foi beneficiado por conta do regime de bens, mas, sim, pela liberalidade praticada pelo consorte. (Informação verbal)2

Não há dúvidas, tampouco divergências, que a cláusula de inalienabilidade, como o próprio nome diz, foi criada para impedir a alienação do bem, seja por venda e compra ou doação, permuta, dação em pagamento etc. O impedimento, portanto, recai sobre negócios jurídicos dispositivos. Assim, se em nosso ordenamento jurídico existe cláusula específica para proibir a alienação, não há sentido algum utilizar-se de uma outra cláusula, de menor abrangência, para atrair a inalienabilidade, de maior abrangência, por pura suposição ou dedução, quando, além de existir cláusula própria para o caso, não há qualquer previsão nesse sentido em nosso ordenamento jurídico.

Sendo assim, acreditamos que, se a real intenção do doador é de, além de não comunicar, impedir a alienação ao cônjuge (ou companheiro), que se amplie expressamente a imposição restritiva no momento da doação, pois, para isso, existem meios legais previstos em nosso ordenamento jurídico, podendo inserir a cláusula existente e adequada para cada desejo do doador. Assim, se essa for realmente a vontade do doador, ele deve impor, além da cláusula de incomunicabilidade, também a de inalienabilidade em relação ao cônjuge (companheiro), seja ao atual, ou, se for o caso, a qualquer cônjuge ou companheiro que o donatário possa, eventualmente, ter ao longo de sua vida.

A cláusula de inalienabilidade, como já mencionado, pode perfeitamente ser específica ao caso pretendido, não abrangendo outras situações, ou seja, pode o doador impor que o donatário esteja proibido de doar somente ao seu cônjuge (ou companheiro), estando livre para doar, ou, por qualquer outro meio, alienar o bem, para qualquer outra pessoa, basta que ele diga que esse é o seu desejo, colocando-o de modo expresso na doação.

Por outro lado, seria possível ao doador instituir a cláusula de inalienabilidade com exclusão de incomunicabilidade, vez que se trata de direito patrimonial disponível. Neste caso, o bem ou bens excluídos expressamente da cláusula de incomunicabilidade se comunicarão ao patrimônio do outro cônjuge, embora inalienáveis em razão da cláusula de inalienabilidade.3 Isso se torna possível uma vez que cada cláusula restritiva cumpre uma finalidade social específica, de forma que são independentes entre si4, mesmo que, no silêncio do contrato, a imposição de cláusula de inalienabilidade implique automaticamente as de incomunicabilidade e impenhorabilidade. É de suma importância que o doador ou testador, no momento da realização da liberalidade, seja informado dos efeitos e possibilidades de se incluir, de maneira conjunta ou separada, as cláusulas restritivas.

Defendemos que a insegurança jurídica não pode pairar sobre o ato, há de se ter a certeza da real intenção do doador, inserindo-a no ato de modo claro, não podendo imaginá-la ou deduzi-la. Os profissionais do direito, principalmente os notários, devem estar atentos ao verdadeiro desejo do doador e questioná-lo sobre todos esses detalhes, explicando todas as possíveis consequências de inserir somente uma cláusula, inclusive os possíveis litígios futuros, caso não fique bem claro e expresso no ato, seu real desejo.

Para que se possa inserir no ato exatamente o que o doador deseja, basta utilizar-se dos institutos legais adequados e existentes em nosso ordenamento jurídico. Se não quer que comunique com o cônjuge, coloque apenas a incomunicabilidade; se quer ir além, utilize a inalienabilidade, na medida do seu desejo. Ou também a impenhorabilidade, que apesar de não ser objeto do presente estudo, também deve ser bem explicada, e usada da forma correta, caso seja o desejo do doador.

A respeito do tema, houve uma decisão da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, de autoria da brilhante juíza Dra. Tânia Mara Ahualli, da qual destacamos o trecho final:

“A alienação, portanto, de imóvel gravado com a cláusula de impenhorabilidade ou com a de incomunicabilidade é livre e não depende do cancelamento de qualquer delas” (g.n). Logo, entendo que a doação do imóvel realizada por M. não afronta a vontade dos instituidores do gravame, uma vez que se quisessem que o imóvel não pudesse ser alienado, instituiriam a cláusula de inalienabilidade, o que não ocorreu. Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do (-) Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de K. C. F. M., e determino o registro do título. (1ª VRP-SP – proc. 1120715-21.2018.8.26.0100)

Reforçamos que a cláusula de incomunicabilidade, como o próprio nome diz, tem como objetivo impedir a comunicação do bem doado, com o cônjuge (ou companheiro) do donatário. Nesse caso, a comunicação impedida é a que decorre do regime de bens do donatário, pois, a depender do regime, pode o bem doado, após entrar no patrimônio do donatário, comunicar com seu cônjuge (ou companheiro), como é o caso do regime da comunhão universal de bens. Em nossa opinião, esse é o único efeito que esta cláusula pode surtir, não cabendo, em qualquer situação, uma extensão de seus efeitos.

A propósito, o inciso I, do artigo 1.668, do CC, prevê exatamente a situação em que, mesmo casados na comunhão universal de bens, pela existência de uma cláusula de incomunicabilidade, o bem se tornou exclusivo de um dos cônjuges (ou companheiros), podendo, assim, livremente alienar ao outro. Lembrando que o termo alienar abrange tanto a compra e venda, e outras formas onerosas, como também a doação, que é a título gratuito.

Mas sobre essa doação acima citada, também temos que tomar certo cuidado, pois, se o regime é o da comunhão universal de bens, mesmo que o cônjuge (ou companheiro) seja proprietário exclusivo do bem, há de se verificar a real intenção dele, ao querer doar para seu cônjuge (ou companheiro). É preciso saber do doador qual é o cenário final que ele deseja em relação à propriedade do bem. Se o cônjuge (ou companheiro) deseja doar a metade do bem, para que este fique pertencendo aos dois, de forma igualitária, será importante que ele também insira a cláusula de incomunicabilidade, uma vez que, se assim não proceder, a parte doada consequentemente irá comunicar com ele, doador, não alcançando seu desejo primário.

Em tal circunstância, a falta da imposição da cláusula de incomunicabilidade resultaria na manutenção dos 50% do bem, de propriedade exclusiva do cônjuge (ou companheiro) doador, e os outros 50% do bem, doados por ele ao seu cônjuge (ou companheiro), em virtude da comunicação resultante do regime da comunhão universal de bens, ficaria pertencendo ao casal, em partes iguais, tendo como resultado 75% para o cônjuge (ou companheiro) doador, e 25% para o cônjuge (ou companheiro) donatário. Já se ele inserir a cláusula de incomunicabilidade ao doar a metade do bem para seu cônjuge (ou companheiro), ambos ficariam donos de metade do bem, com exclusividade.

Diante disso entendemos que a solução correta no caso de doação de bem particular entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens será sempre viável se houver imposição de cláusula de incomunicabilidade. Entendimento contrário resultaria em situação na qual, sobre o mesmo bem, haveria fração ideal em comunhão e fração ideal exclusiva.

Tal posição é defendida pelo nosso inesquecível mestre Zeno Veloso5 (in memoriam), que diz:

Se o regime é da comunhão universal, além da necessidade de o bem doado ser de propriedade exclusiva do doador, é preciso que seja imposta a cláusula de incomunicabilidade. Sem essas ressalvas, a doação seria impossível, logicamente impossível, nesse regime, conforme a aguda observação de Pontes de Miranda: “Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal todos os adquiridos se comunicam”. No mesmo sentido, é a lição de Agostinho Alvim. Teixeira de Freitas, em nota ao art. 136 da Consolidação das Leis Civis, já observara que no regime da comunhão a doação entre marido e mulher torna-se inútil, e só poder ser celebrada se o regime do casamento for de separação de bens. Lafayette Rodrigues Pereira ensina que se o casamento foi por carta de metade (ou segundo o costume geral do Império, ou pelo regime da comunhão universal), as doações entre marido e mulher são impraticáveis: ‘anular-se-iam de si mesmas, visto como tudo que adquirem os casados por carta de metade, ipso facto, faz-se comum entre eles.

Importante enfatizar que essa imposição da cláusula de incomunicabilidade sobre o mesmo bem, mas agora por outro doador, não retira o bem do comércio, sendo perfeitamente possível, uma vez que, especificamente nesse caso, o único prejudicado seria o próprio doador.

Desse modo, defendemos que, mediante clara divergência doutrinária, fica evidente a importância de se orientar o doador sobre a necessidade de se esclarecer exatamente o seu desejo, colocando ao seu dispor as cláusulas disponíveis a serem usadas, evitando dúvidas e litígios futuros, eliminando, assim, qualquer chance de serem necessárias outras interpretações de seu desejo, que, como vimos, é algo totalmente incerto e perigoso, que pode muito bem causar injustiças.

Por fim, o que gostaríamos de chamar a atenção é que, independentemente de qual posição doutrinária esteja correta, não custa prevenir possíveis litígios no futuro. Assim, defendemos que seria muito melhor, no ato da doação primitiva, buscar o verdadeiro desejo do doador, esclarecendo os detalhes, e colocando, daqui para frente, nas doações a serem realizadas, as cláusulas restritivas desejadas de modo claro, sem deixar dúvidas. Afinal, mesmo para aqueles que entendem já estar implícita a inalienabilidade ao cônjuge, quando o bem recebido por doação contiver a incomunicabilidade, não custa colocá-la de modo expresso e específico, caso essa seja mesmo a vontade do doador, evitando possíveis litígios futuros e fortalecendo a segurança jurídica ao ato praticado.

Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.

Notas:

1 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. 2 ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2.012, p. 454, grifos nossos.

2 Informação fornecida aos autores pelo Professor Cristiano Chaves de Faria a propósito do tema, em comunicação mediada pela Professora Martha El Debs, em 17/08/2021.

3 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. As restrições voluntárias na transmissão de bens imóveis – cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Quinta Editorial, 2012, p. 28.

4 FIORANELLI, Ademar. Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São Paulo, Saraiva, 2.009, p. 24.

5 Veloso, Zeno. Direito Civil – Temas, Editora Artes Gráfica Perpétuo Socorro, Belém, 2018, pp. 267 e 268.

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*João Francisco Massoneto Junior é especializando em Direito Notarial e Registral pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP. Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista/SP, onde iniciou suas atividades em 1999.

*Rafael Gil Cimino é mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito (2021). Especialista em Direito Notarial e Registral pela USP. Bacharel em Direito pela USP. 3º Tabelião de Notas e Protesto de São Vicente/SP.

Fonte: Migalhas