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Migalhas – Artigo: A afetação e o direito imobiliário – Por Robson Martins e Érika Martins
Os conceitos não são substancialmente dessemelhantes, tendo em vista que todos os referidos institutos têm uma base comum.
Apesar da contemporaneidade da utilização da afetação patrimonial em relação a institutos jurídicos imobiliários e mobiliários no Brasil, a exemplo do que se dá no tocante ao patrimônio de afetação no contexto da incorporação imobiliária e do bem de família voluntário, esta não tem suas origens no direito interno.
A ideia de afetação de bens é antiga, “[…] como no caso de áreas de terra de uso comum, ou utilizadas para interesses públicos, e que acabam ficando afetadas ao domínio público, inclusive ensejando a ação de indenização por desapropriação indireta”[1]. Trata-se, porém, de um instituto mais complexo do que isso.
Até porque não há apenas uma percepção conceitual acerca da referida teoria, inclusive naquilo que se relaciona ao direito comparado, tendo em vista que os ordenamentos jurídicos diversos países têm nomenclaturas diversas para o fenômeno da separação patrimonial a uma finalidade específica.
A doutrina utiliza uma diversidade de denominações para essa forma de patrimônio: separado; autônomo; ou afetação. Ordenamentos estrangeiros, contudo, não utilizam o mesmo conceito: na França aplica-se o termo affectacion; na Argentina, separado; e, na Alemanha, sonderermöge (patrimônio especial).[2]
Tais características se apresentam naquilo que concerne aos formatos específicos de afetação, relacionados, por exemplo, ao patrimônio de afetação na incorporação imobiliária ou à separação do bem de família voluntário. Ocorre que há, no direito brasileiro, determinados pressupostos para tanto.
Para melhor definir a possibilidade de segregar uma parcela de um patrimônio, vinculando-o a finalidades específicas, tornando-o, no entanto, uma universalidade patrimonial separada do restante de uma massa de bens, dentro de uma teoria moderna ou realista, é que foi intuída a chamada teoria da afetação.
O patrimônio afetado é uma universalidade limitada, sobre ele incidindo direitos e obrigações autônomas, satisfazendo-se mediante exclusão, para que os credores fiquem excluídos e, sobre os outros bens, esse grupo não possa alegar direitos ou satisfazer-se subsidiariamente, se necessário, sobre os demais bens do devedor.[3]
A teoria da afetação, portanto, corrobora a chamada teoria moderna ou realista acerca do patrimônio, tendo em vista a possibilidade de segregação de uma fração patrimonial, desde que esta se volte a uma finalidade específica, a exemplo da garantia creditícia (incorporação imobiliária) ou da proteção contra a penhora (bem de família voluntário).
Ocorre que a teoria da afetação não resulta na superação plena da teoria clássica ou tradicional, tendo em vista que nada impede que sejam destacados determinados bens de um patrimônio geral, para que se afetem a uma finalidade específica, continuando, entretanto, no patrimônio geral[4].
Destarte, a “separação” patrimonial não equivaleria, stricto sensu, à “divisão” no sentido pretendido pela teoria moderna ou realista, de maneira que a teoria da afetação, ao menos no formato no qual se dá no direito privado brasileiro, representaria uma segregação “artificial”.
Por meio da teoria da afetação concebe-se uma “[…] separação ou divisão do patrimônio, pelo encargo imposto a certos bens, que são disponibilizados a serviço de um fim determinado”, que não importa na disposição do bem, nem em sua saída do patrimônio do sujeito, mas apenas em sua imobilização para uma finalidade.[5]
A separação desses acervos ou massas deve manter a unidade subjetiva das relações jurídicas, porém, separada do patrimônio e afetados a um fim, sendo tratados de maneira independente do patrimônio geral. Nesse sentido, é uma massa de bens objetivamente considerados, assim como os bens dotais, bens de ausentes, bens da herança, dentre outros[6].
A afetação implica, entretanto, na composição de um patrimônio sem se verificar a criação de uma personalidade, como ocorre nas fundações, prendendo-se a uma finalidade, continuando, no entanto, encravado no patrimônio do sujeito, não havendo motivo para romper com a concepção tradicional da unidade do patrimônio.[7]
Neste viés, a teoria da afetação é algo como um amálgama, que corrobora tanto a teoria clássica ou tradicional acerca do patrimônio quanto a moderna ou real, considerando tanto a possibilidade de segregação patrimonial quanto o fato de que esta não é, na essência, uma separação estanque.
Demonstra-se, portanto, que existem princípios e pressupostos comuns entre os diversos patrimônios de afetação. Referidas semelhanças é que foram suficientes para que a doutrina construísse, a partir deles uma denominada teoria da afetação, que determina certos requisitos gerais.
Referida teoria atende à necessidade de privilegiar certas situações merecedoras de tutela especial, admitindo a segregação de determinados bens ou núcleos patrimoniais que, identificados por sua procedência ou destinação, são separados do patrimônio geral do titular.[8]
Nesse sentido, ficam excluídos dos riscos de constrição por dívidas ou obrigações estranhas à sua destinação. Exemplos de bens afetados são aqueles objetos de fideicomisso, o bem de família (voluntário e legal), dentre outros. Explicam-se na própria noção de patrimônio.[9]
Este é um complexo de valores ativos e passivos, contexto no qual é possível separar acervos bonitários, chamados de patrimônios separados, em decorrência dos fins a que se destinam ou às circunstâncias de se impor ao sujeito sua discriminação ou da necessidade de administração especial.[10]
Apesar da separação desses acervos ou massas, o patrimônio individual deve ser tratado como unidade, sendo que destinação equivale a reserva-o a determinada finalidade específica, por meio de vinculação do respectivo ativo, excluindo-se outros do patrimônio geral do devedor.[11]
Os escritores modernos construíram uma teoria da afetação, por meio da qual foi concebido algo como uma separação ou divisão do patrimônio resultante “[…] do encargo na disposição do bem, e, portanto, na sua saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma finalidade”.[12]
A segregação patrimonial faz com que a universalidade de bens, direitos e obrigações reste separado do restante do patrimônio. O patrimônio destacado do principal, no entanto, deve ser dirigido a uma finalidade específica, geralmente protetiva em relação a uma das partes de uma relação negocial.
Há vários exemplos de patrimônio de afetação na legislação brasileira, como no caso dos fundos de investimento, de uma forma geral; na alienação fiduciária em garantia (AFG), na emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários por companhia securitizadora, em acordo com a lei 9.514 de 1997.[13]
De fato, na titularidade da propriedade imobiliária dos Fundos de Investimento Imobiliário atribuída ao administrador do fundo, de acordo com a Lei 8.668 de 1993 e, por último, o patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias[14], revelando-se um instituto usual no direito brasileiro.
Importante asseverar que a lei 13.986/20, em seu art. 10 asseverou, de forma inovadora quanto ao patrimônio de afetação de patrimônio rural: “[…] Os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos, nas seguintes condições […]”.
Já no que tange à incorporação imobiliária, após o caso da construtora Encol da década de 90, com prejuízo de milhares de pessoas pelo País, houve uma mudança significativa da legislação, para fins de proteção do adquirente, conforme art. 31-A da lei 4.591/64, instituindo o patrimônio de afetação nas incorporações:
Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirente.
Por fim, também se denomina afetado aquele bem público (de uso comum, especial e dominical) que está direcionado para fim específico, tais como postos de saúde, escolas, mares, praças, ruas, prédios públicos etc. Ocorre que há possibilidade, especialmente para os bens dominicais, que estes sejam desafetados por lei federal, estadual, distrital ou municipal, conforme lei 8.666/93, com respectiva avaliação e autorização legislativa, perdendo tal condição especial e podendo ser alienados ulteriormente pelo poder público.
Assim é que, apesar das diversas nomenclaturas, os conceitos não são substancialmente dessemelhantes, tendo em vista que todos os referidos institutos têm uma base comum, partindo de pressupostos similares e com efeitos próximos, embora complexos em si, especialmente no que tange à incomunicabilidade entre patrimônios diversos.
Bibliografia
[1] RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 214.
[2] FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 53.
[3] MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial. v. II. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, p. 263.
[4] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10. ed. são Paulo: Saraiva, 2018, p. 339-340.
[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. IV: direitos reais. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 240.
[6] Ibid., p. 248.
[7] Ibid., p. 248.
[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 218.
[9] Ibid., p. 218.
[10] Ibid., p. 218.
[11] Ibid., p. 218.
[12] Ibid., p. 218.
[13] BARRETO, Pedro Henrique Quitete; TERSI, Vinicius Feliciano. O patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias e a distribuição de dividendos: a frágil proteção do Art. 31-A da Lei n. 4.591/64. In: FARIA, Renato Vilela; CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. (coord.). Operações imobiliárias: estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 956-974.
[14] Ibid., p. 975.
Autores:
Robson Martins é doutorando Direito UERJ. Mestre Direito UFRJ. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.
Érika Silvana Saquetti Martins é doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.
Fonte: Migalhas