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Limites da blockchain – Criar obrigações é mais fácil do que transferir direitos de propriedade

01-11-2017

A tecnologia da blockchain vem sendo indicada como disruptiva e que pode vir a substituir o modelo de registro de imóveis em vários países. Neste texto de Benito Arruñada o tema é enfrentado com argumentos que devem ser apreciados por todos aqueles que se interessam pela matéria.

Qualquer um pode vender seu imóvel mediante um contrato de compra e venda ou, também, dispor do bem por meio da blockchain. Poderá fazê-lo mesmo quando a propriedade seja igualmente do cônjuge, ou onerada com uma hipoteca. Contudo, tanto o direito de compropriedade do cônjuge, quanto a hipoteca permaneceriam incólumes.

O contrato de compra e venda tem, deste modo, efeitos meramente obrigacionais. Não tem o condão de transmitir a propriedade imóvel. Simplesmente o vendedor se obriga a entregar o bem ao comprador e este a recebê-la. Em outras palavras, a venda de coisa alheia (parcialmente) é válida e eficaz entre as partes – e o será também no caso de imóvel gravado com um direito real de garantia (hipoteca). No entanto, os direitos reais de terceiros sobre a coisa vendida não serão afetados por esta compra e venda.

Esta distinção entre os efeitos obrigacionais do contrato e a eficácia real da transmissão da propriedade pode arrefecer o entusiasmo dos partidários da blockchain, que tendem a superestimar a eficácia dos contratos entre particulares e a subestimar a importância dos intermediários que desfrutam da confiança do público. No âmbito do mercado, os agentes podem intercambiar direitos obrigacionais, isto é, podem prestar ou não prestar, fazer ou não fazer. Contudo, transmitir direitos de propriedade requer um mínimo de intervenção pública. A razão é simples: dado que a alienação afeta interesses de terceiros alheios ao contrato, a transmissão requer a presença de um terceiro neutro e imparcial que garanta o adimplemento. Este terceiro deve ser independente – não apenas em relação às partes de uma relação concreta, mas, também, em relação a todos os titulares de direitos de propriedade sobre o ativo que se negocia no mercado. Do contrário, o mercado sofreria seriamente devido à possível existência de gravames ocultos incidentes sobre tais ativos.

Este fato limita a possibilidade de utilização da blockchain nas transações que têm por objeto ativos reais. Tanto mais limitado será quanto mais avançamos no iter continuum que parte do contrato até chegar à propriedade. Observe-se, em primeiro lugar, que, de acordo com os incentivos de todos os participantes, as partes contratantes são livres para escolher as pessoas responsáveis por elaborar a documentação imobiliária (em geral, notários e advogados), profissionais que atuam na etapa contratual do processo de transmissão nos sistemas jurídicos. Já a proteção de terceiros leva o Direito, em todos os ordenamentos, a restringir a liberdade de escolha das partes do cartório que haverá de inscrever os títulos de propriedade, ou do registrador que examinará e conservará seus direitos. O mesmo se pode dizer do juiz que vai dirimir os conflitos acerca da titularidade dos bens.

Por conseguinte, é mais provável que se expanda a utilização da blockchain no âmbito notarial ou em sistemas que se limitam ao arquivamento de escrituras e contratos. Por essas razões, não se vislumbra que a nova tecnologia acabe substituindo os chamados registros de direitos de propriedade.

Os advogados e notários sempre gozaram de uma vantagem comparativa na identificação das partes e, mais especificamente, na determinação de sua capacidade jurídica e na prestação de serviços de liquidação e quitação. A tecnologia da blockchain permite desenvolver, de forma efetiva, serviços que provam a identidade daqueles que participam de uma transação, de modo que a outra parte esteja segura de que você é quem diz ser (autenticação) e que, além disso, tem os poderes necessários (autorização). Do mesmo modo, em relação à quitação das transações, o comércio implementado por meio da blockchain pode permitir a execução do contrato de forma simultânea por ambas as partes por intermédio do princípio de “atomicidade”, que, em essência, garante que ambas as partes cumpram simultaneamente as obrigações derivadas do contrato.

A aplicação potencial da blockchain aos registros de propriedade é mais limitada porque a sua função é proteger os interesses de terceiros que não participam e nem têm porque conhecer a existência da transação. Os registros não são meras bases de dados, nem livros contábeis porque seu elemento chave é o jurídico: ele não contém somente grandezas (valores), mas expressa a prova legal, pré-constituída, acerca da prioridade das pretensões (no caso dos sistemas de registro de documentos) ou de direitos (no caso dos sistemas de registro de direitos).

Os registros de documentos (como os da França ou dos Estados Unidos), limitam-se a certificar a datação (data e hora) do ingresso do título no registro, arquivando-o de modo ordenado. O conjunto que se conserva denomina-se (não por acaso) “cadeia” de títulos de propriedade.

Assemelham-se a simples arquivos. Ainda assim, mesmo nesses sistemas a data de entrada do documento no registro desencadeia consequências jurídicas cruciais, já que constitui a prova decisiva sobre quem goza de prioridade no caso de uma disputa e, portanto, determina quem tem um direito real oponível erga omnes e quem ostenta simplesmente uma pretensão de caráter obrigacional. Por essa razão, compreende-se que o informe[4] sobre o projeto-piloto levado a cabo no Condado de Cook (Illinois), que compreende a cidade de Chicago, conclua que a blockchain poderia ser utilizada para a contratação privada e a sua apresentação ao Registro, observado o marco legal existente segundo o qual “o registro oficial do Condado é o único registro oficial”, o que coloca o sistema longe das pretensões daqueles que propõem soluções P2P (peer-to-peer) sem qualquer intervenção de terceiro independentes[5].

Os Registros de Direitos (frequentemente chamados de title systems), como o Grundbuch alemão ou o Sistema Torrens australiano, não só datam e conservam os documentos ou fatos e atos jurídicos, refletindo as transações pactuadas pelas partes contratantes, mas, como requisito necessário para a inscrição no Registro, verificam igualmente se as transações, que se pretendem registradas, respeitam os direitos reais de todos os demais titulares de direitos sobre ativos objeto da dita transação. Isto lhes permite proporcionar, a todo momento, um balancete jurídico, gerando direitos reais sobre dito ativo – e não meras pretensões obrigacionais.

Portanto, o impacto da blockchain nos registros de propriedade será diferente nuns ou noutros sistemas de registro. É concebível que um sistema de registro de documentos possa ser substituído por um sistema automatizado que fixe a data dos contratos, garantindo o conteúdo registrado de modo indelével, prevenindo-se que as partes contratantes não possam manipular o próprio registro depois de firmado o contrato. Entretanto, nesta espécie de registro é imprescindível que o Direito possa estabelecer regras acerca do valor probatório do registro, isto é, deve ser estabelecido, legalmente, que a blockchain possa ser valorada pelos juízes como prova ao estabelecer a prioridade dos direitos reais. Além disso, para que se produzam efeitos reais, todos os titulares afetados devem ser obrigados a manifestar sua vontade por meio da blockchain. Por fim, o Direito deve, também, estabelecer regras de confiança naqueles que projetam, implementam e, de certo modo, governam ou ao menos afetam o governo descentralizado do sistema da blockchain. (O caso dos registros mercantis é semelhante na medida em que a maioria deles acha-se mais próxima do modelo de registro de documentos do que ao registro de direitos).

Em comparação com os registros de documentos e registros mercantis, os registros de direitos de propriedade, como o alemão ou o espanhol[6], serão menos afetados pela blockchain porque o exame dos contratos apresentados a registro não se pode realizar por um sistema automatizado – especialmente no caso de bens imóveis, que têm como característica serem ativos duráveis e de elevado valor individual. Tratam-se de bens para os quais é eficiente definir múltiplos direitos, permitindo a coexistência de vários titulares de direitos reais sobre cada ativo. As enormes dificuldades experimentadas pelos mal chamados contratos inteligentes (smart contracts), ainda no âmbito de direitos puramente obrigacionais, se multiplicariam se tratássemos de determinar quem é o titular de um direito real, que é o que, afinal, nos revela uma inscrição registral.

É sintomático que os projetos pioneiros de blockchain se realizem de modo modesto nos registros de direitos de propriedade. A maioria desses projetos limitam-se a utilizar a blockchain como mera cópia criptografada de segurança. O ambicioso Livro Branco Sueco[7] de fato propõe tão somente um sistema de transmissão eletrônica, mantendo intacta a função medular do Registro de Imóveis. De certo modo, o modelo proposto pelos suecos parece menos revolucionário, por exemplo, que o sistema Landonline, que funciona na Nova Zelândia[8] desde o ano de 2006, no qual são os advogados que modificam certos parâmetros do Registro.

Além disso, para os bens de alto valor, à parte os custos que tal estandardização causaria, a descentralização na tomada de decisões que se acha no cerne do sistema da blockchain, identifica-se outro inconveniente: a relutância dos indivíduos a assumir a plena responsabilidade pelas decisões por si tomadas. O caráter universal da propriedade (com a oponibilidade erga omnes dos direitos reais) exige que sejam aplicadas as mesmas regras probatórias a todos os titulares de direitos reais. Em um hipotético sistema de registro de propriedade, totalmente descentralizado, baseado em transações ponto-a-ponto (arquitetura P2P), todos os indivíduos teriam que conceder ou denegar seu consentimento a todas as transações possíveis que pudessem afetar seus direitos.

Portanto, teriam que se converter, não só em únicos depositários e custodiantes de suas chaves criptográficas, mas também da integridade jurídica de tais direitos. Como em muitas outras áreas, a liberdade individual se compra com responsabilidade. Na medida em que nem todos os indivíduos estão sempre dispostos a pagar tal preço, os intermediários de confiança centralizados provavelmente prevalecerão sobre os sistemas descentralizados.

Fonte: IRIB