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Jota – A aplicação da lei do depoimento especial às mulheres vítimas de violência sexual
Surge a oportunidade de recolocar nos trilhos da proteção da dignidade humana um sistema de justiça
Em virtude das medidas de restrição para a contenção do alastramento da Covid-19, o ano de 2020 foi marcado pela adaptação do Poder Judiciário ao teletrabalho e à informatização de atos processuais, como a realização de audiências de instrução e julgamento por meio de videoconferências.
Diante desta nova realidade, os atos praticados em audiência passaram a contar com uma maior sindicabilidade exógena e não foram raros os casos de revitimização[1] envolvendo mulheres vítimas de violência sexual que vieram à tona e chocaram a sociedade brasileira.
Com o objetivo de evitar que o Poder Judiciário, locus idealizado para ser acolhedor e humano, se torne um ambiente hostil e inóspito, este texto apresenta como proposta central a extensão das formas humanizadas de oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência às mulheres maiores de 18 anos, mediante o reconhecimento da existência de um microssistema protetivo às mulheres vítimas de violência sexual.
Conhecidas como escuta especializada e depoimento especial, as formas humanizadas de oitiva de menores de 18 anos vítimas de violência estão regulamentadas pela Lei 13.431/2017 e objetivam a colheita da versão da criança ou adolescente vítima de violência de forma acolhedora e por profissional especializado, evitando-se a ocorrência de novos traumas e efeitos colaterais.
O ethos da Lei 13.431/2017 também é verificado no âmbito do Direito das Mulheres[2], em especial nas normas que regulamentam o combate a toda e qualquer forma de violência contra a mulher.
Nesse sentido, a Lei 13.505/2017 agregou ao corpo legal da Lei Maria da Penha o artigo 10-A, §1º, inciso III, o qual estabeleceu como diretriz para a inquirição de mulheres vítimas de violência a “não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada”.
Na perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”), assinada e internalizada pelo Brasil com status de supralegalidade[3], prevê em seu artigo 4º.b que “toda mulher tem direito a que se respeite sua integridade física, mental e moral”.
De forma mais específica, a Recomendação nº 33/2015 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), órgão vinculado à Convenção da ONU sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, preconiza em seu artigo 51.c aos Estados que “[t]omem medidas efetivas para proteger as mulheres contra a vitimização secundária em suas interações com autoridades judiciais e demais encarregadas da aplicação da lei, bem como considerem estabelecer unidades especializadas em gênero dentro dos sistemas de aplicação da lei na investigação policial e no processamento penal[4]”.
É evidente, portanto, a sintonia normativa existente entre as normas protetivas às mulheres maiores de dezoito anos e a Lei 13.431/2017.
É a partir desta raison d’être compartilhada pelas normas citadas que proponho neste artigo, mediante a utilização da teoria conhecida no direito brasileiro como diálogo das fontes, o reconhecimento de um microssistema protetivo às mulheres vítimas de violência sexual.
Antonio Herman Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa definem de forma sintética o diálogo das fontes como: “expressão criada por Erik Jayme, em seu curso de Haia, significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais e gerais, com campos de aplicação convergentes, mas não iguais[5]”.
Trata-se, portanto, da compreensão do direito como um sistema de vasos comunicantes, no qual leis que possuem pontos de interseção e convergência são interpretadas de forma sistêmica e coordenada, na busca por uma exegese holística e que resguarde o ideário de justiça[6].
Pois bem. Os pontos de encontro entre a Lei 13.431/2017 e o corpus iuris protetivo às mulheres vítimas de violência já foram expostos no início do texto; todavia, um ponto ainda carece de maior aprofundamento, a saber, a norma de abertura (ou remissiva) do microssistema de proteção às mulheres vítimas de violência sexual, ou seja, o comando normativo central que viabiliza a interação permanente e coordenada entre a Lei 13.431/2017 e as normas nacionais e internacionais protetivas às mulheres maiores de dezoito anos: o artigo 6º, parágrafo único, da Lei 13.431/2017.
Já em uma primeira leitura, é possível perceber o status de norma de abertura (ou remissiva) do referido dispositivo legal, pois ele prevê que: “Os casos omissos nesta Lei serão interpretados à luz do disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e em normas conexas” – neste último caso, outras normas com a mesma finalidade protetiva, como a Convenção da ONU sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. O artigo 6º, parágrafo único, da Lei 13.431/2017 é, portanto, ao mesmo tempo, o alicerce estruturante e o fundamento legal do microssistema de proteção às mulheres vítimas de violência sexual.
A ausência de previsão legal específica não parece um obstáculo intransponível para o reconhecimento do microssistema de proteção, tendo em vista que, antes mesmo da edição da Lei 13.431/2017, o Superior Tribunal de Justiça convalidou, por diversas vezes, a aplicação do então chamado “depoimento sem dano” – hoje, depoimento especial – em crimes sexuais, mesmo diante da inexistência de lei disciplinando o procedimento[7].
Corroborando a tese do microssistema, inexistem vedações legais à extensão dos procedimentos regulamentados pela Lei 13.431/2017 às mulheres maiores de dezoito anos vítimas de violência.
Pelo contrário, o reconhecimento do microssistema protetivo às mulheres vítimas de violência sexual amplia o espectro de proteção dado originariamente pela Lei 13.431/2017, sem excluir os destinatários por excelência do referido do diploma legal, isto é, crianças e adolescentes.
Nessa linha de raciocínio e reconhecendo a interação permanente entre as normas mencionadas no artigo 6º, parágrafo único, da Lei 13.431/2017, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu recentemente a aplicação da Lei Maria da Penha em um caso envolvendo uma menina de quatro anos vítima de estupro[8].
Outro ponto de suma importância a ser destacado como aspecto positivo da extensão da aplicação da Lei 13.431/2017 às mulheres vítimas de violência sexual é o incremento da qualidade epistêmica da prova a ser produzida.
Não por acaso, o Superior Tribunal de Justiça dispõe de farta jurisprudência conferindo especial relevância à palavra da vítima nos delitos sexuais, desde que esteja em consonância com as demais provas carreadas aos autos[9].
Ao julgar o caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconheceu o quilate fundamental da palavra da vítima em casos de violência sexual, ao afirmar que: “dada a natureza dessa forma de violência, não se pode esperar a existência de provas gráficas ou documentais e, por isso, a declaração da vítima constitui uma prova fundamental sobre o fato[10]”.
Há, portanto, uma convergência interpretativa entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) e o direito interno brasileiro acerca do valor probatório do depoimento da vítima em crimes sexuais.
À vista disso, é evidente que a realização do depoimento especial em casos que envolvam mulheres vítimas de violência sexual maximiza não apenas a proteção da vítima em situação de vulnerabilidade – objetivo primordial da oitiva mediante este iter procedimental específico –, mas também a qualidade da prova a ser produzida, uma vez que a oitiva é realizada por intermédio de profissional técnico dotado de expertise para tanto.
Esta também parece ser a conclusão de Guilherme Madeira Dezem, ao afirmar que: “Os mesmos motivos apresentados para o depoimento especial de crianças e adolescentes podem ser aplicados para a oitiva de mulheres vítimas de violência: evitar a revitimização e melhorar a qualidade epistêmica do depoimento[11]”.
Outrossim, destaquemos a inexistência de prejuízo às partes; afinal, o depoimento especial é instrumentalizado mediante a observância do rito destinado à produção antecipada de provas (art. 11. §1º, da Lei 13.431/2017), respeitando-se, assim, as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Tampouco há prejuízo a ser deduzido da utilização da escuta especializada.
A experiência prática de aplicação destes instrumentos tem se mostrado bastante exitosa em alcançar os fins colimados. Na Comarca de Campina da Lagoa/PR, cidade situada no oeste do Estado do Paraná e local onde este articulista exerce suas funções como promotor de Justiça, a iniciativa já se encontra incorporada na práxis do sistema de justiça.
Após a realização do primeiro depoimento especial envolvendo mulher vítima de violência sexual, decorrente de pedido do Ministério Público ao Poder Judiciário, foi estabelecido um fluxo procedimental entre Delegacia de Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, com o objetivo de que mulheres vítimas de violência sexual não sejam mais ouvidas nas dependências da Delegacia de Polícia, mas somente por profissionais especializados, mediante a opção de um dos procedimentos previstos na Lei 13.431/2017.
A aplicação do depoimento especial às mulheres vítimas de violência sexual traz consigo um detalhe de singular importância e que não pode passar desapercebido: além de seu caráter preventivo e de inibir a revitimização, ela possibilita que a mulher vítima de violência sexual relate o acontecimento traumático uma única vez, respeitando-se assim a regra da não repetitividade do depoimento especial, prevista no artigo 11, §2º, da Lei 13.431/2017, e que somente pode ser excepcionada quando justificada a imprescindibilidade de novo depoimento[12].
Por outro lado, caso a oitiva fosse realizada pela via comum do Código de Processo Penal, a vítima de violência sexual seria instada a vivenciar novamente a violência sofrida em ao menos duas oportunidades, uma em fase de investigação e outra nos bancos do Poder Judiciário. Neste caso, menos é mais.
Concluída a arquitetura da proposta realizada neste texto, verifica-se que a utilização do depoimento especial e da escuta especializada em casos envolvendo mulheres vítimas de violência sexual é uma iniciativa na qual os benefícios superam – e muito – qualquer obstáculo circunstancial. Recentemente, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso que “A história é um caminho que se escolhe e não um destino que se cumpre[13]”.
Pois bem. Se, até o presente momento, o Estado optou pelo caminho da insensibilidade em matéria de inquirição de mulheres vítimas de violência sexual, surge com a novel iniciativa a oportunidade de recolocar nos trilhos da proteção da dignidade humana um sistema de justiça que jamais deveria ter descarrilhado.
Fonte: Jota