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IBDFAM – Artigo: Avanços e retrocessos jurisprudenciais no ano de 2022 – Por Maria Berenice Dias

02-01-2023

Não é somente a retrospectiva da própria vida que fazemos ao final de cada ano.

Quem tem comprometimento na construção de uma justiça menos formalista, menos conservadora e mais atenta à realidade da vida, cabe fazer o mesmo balanço.

Aliás, este sempre foi o compromisso do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que há um quarto de século não faz outra coisa a não ser buscar a inserir os vínculos de afetividade no âmbito da tutela jurídica, gerando direitos e deveres.

Sob este aspecto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um grande passo neste ano que ora finda. Desdobrou o reconhecimento dos vínculos parentais para além da relação paterno-filial. Ao admitir a possibilidade de constituição um vínculo de fraternidade socioafetiva entre irmãos, esgarçou o conceito de parentesco, enlaçando mais pessoas sob o manto de tutela do Direito das Famílias.[1]

Outro belo avanço que se avizinha, é o questionamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF), da inconstitucionalidade do dispositivo da lei civil que, sem qualquer justificativa, impõe o regime da separação de bens quando um dos cônjuges tem mais de 70 anos de idade.[2]

Admitida a repercussão geral foi firmada tese sobre o regime de bens aplicável tanto no casamento como na união estável dos maiores de setenta anos.[3] Ressaltou o Ministro Relator Luís Roberto Barroso a relevância da matéria. Do ponto de vista social, a definição do regime de bens produz impactos diretos na organização da vida da sociedade brasileira. Sob o aspecto jurídico, tem relação com a interpretação e o alcance de normas constitucionais que asseguram especial proteção a pessoas idosas. E, da ótica econômica, a tese a ser fixada afetará diretamente os regimes patrimonial e sucessório de maiores de 70 anos.[4]

No entanto, mesmo antes do julgamento pela Corte Superior, precipitou-se o STJ e editou Súmula estendendo o regime da separação obrigatória de bens à união estável constituída por que tem mais de 70 anos.[5]

O enunciado vai além, ao exigir a comprovação do esforço comum para afastar da incomunicabilidade os bens adquiridos durante o período da vida em comum. Esta exigência probatória afasta a presunção de comunicabilidade consagrada pelo STF, em súmula, editada nos idos de 1964, que determina a partilha dos bens adquiridos durante a união, sem questionar a efetiva contribuição de cada um do par na constituição do patrimônio.[6]

Ao vetar a divisão igualitária dos bens, afronta algumas normas do Código Civil: a que consagra a comunhão plena de vida instituída pelo casamento [7] e a que veda a intervenção de qualquer pessoa, de direito público ou privado a esta comunhão.[8] Mas há mais. Como não foi feita qualquer modulação a este novo entendimento, os prejuízos são enormes. Processos em andamento, em que esta prova não era exigida, estão sendo julgados sem permitir dilação probatória diante da mudança da orientação jurisprudencial.

Fora estes aspectos legais, há outro de natureza social que também foram afrontados. Ainda se vive em uma sociedade conservadora, machista e sexista, em que as questões de gênero continuam estabelecendo odiosas diferenciações. A responsabilidade pelo cuidado da casa e dos filhos ainda é das mulheres, tarefas às quais nunca foi atribuído valor econômico. Cabe lembrar que, sensível a esta realidade – que infelizmente persiste nos dias de hoje – de há muito foi reconhecida a divisão igualitária dos bens adquiridos durante os relacionamentos extramatrimoniais, quando ainda recebiam o nome de concubinato.

Mas há decisões outras que igualmente se mostraram desprovidas de sensibilidade, priorizando mais os aspectos econômicos e negociais, em detrimento de alguns direitos que gozam de proteção constitucional.

Uma delas diz com o direito fundamental de moradia, reconhecido como direito social.[9] Aliás, muito antes desta inserção, já era legalmente reconhecida a impenhorabilidade do bem de família.[10] A própria lei traz exceções. Entre elas a fiança concedida a contratos de locação.[11]

Decisões de vários tribunais chegaram a reconhecer como inconstitucional esta exceção. No entanto, este dissenso foi solvido pelo STF, sob o argumento de que a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em locações comerciais, impulsiona o empreendedorismo, além de viabilizar a livre iniciativa e a celebração de contratos de locação mais favoráveis.[12]

Esta posição acabou ampliada, em julgado em que foi reconhecida repercussão geral.[13] Assim, passou a ser admitida a penhora do bem de família do fiador, tanto em contrato de locação comercial como residencial.[14]

No mesmo sentido manifestou-se o STJ,[15] albergando não só as locações comerciais como também as residenciais.[16]

Ou seja, o direito constitucional à moradia protege o locatário inadimplente, mas não o seu fiador, que por solidariedade e gratuitamente, referendou a locação que em nada o beneficia.

Mais uma decisão, no mínimo, inusitada.

O direito ao reconhecimento dos vínculos parentais é imprescritível. No entanto, os eventuais efeitos patrimoniais deles decorrentes, não.[17] A pretensão se sujeita ao prazo prescricional de 10 anos.[18]

Ou seja, proposta a ação de investigação de parentalidade, cumulada com petição de herança, sempre foi mais do que pacificado o entendimento de que o termo inicial da pretensão hereditária, era o trânsito em julgado do reconhecimento judicial da sua condição de herdeiro.

Só que o STJ deslocou o início do prazo prescricional para a data da abertura da sucessão. Deste modo, quando da morte do titular do patrimônio. Para isso invocou o princípio da actio nata: o termo inicial do prazo prescricional é a data do nascimento da pretensão resistida, o que ocorre quando se toma ciência inequívoca do fato danoso.[19]

Agora, quem se considera detentor de direito hereditário, mas não tem reconhecido documentalmente esta condição, precisa ingressar com a ação de petição de herança. Mesmo antes de propor a ação investigatória do vínculo de parentesco.

Esta breve mirada sobre algumas decisões das cortes superiores no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, visa conclamar todos  a continuarem atentos à necessidade de se buscar, incansavelmente, uma justiça que dê a devida ênfase à responsabilidade ética do afeto. Esta bandeira do IBDFAM que temos que continuar desfraldando.

Notas

[1] Ação declaratória de parentesco colateral em segundo grau socioafetivo (fraternidade socioafetiva) post mortem. Indeferimento da petição inicial pelas instâncias ordinárias, por declararem a impossibilidade jurídica do pedido, a obstar a análise de mérito. Condições da ação. Teoria da asserção. Pedido abstratamente compatível com o ordenamento pátrio. Possibilidade jurídica verificada em tese. Recurso especial provido. Ação declaratória post mortem ajuizada por alegados irmãos socioafetivos, com o escopo de ver reconhecida a existência de vínculo de parentesco colateral, em segundo grau, com a de cujus. 1. A possibilidade jurídica do pedido deve ser concebida como ausência de vedação expressa e compatibilidade, em tese, da pretensão, com o ordenamento jurídico vigente, a ser feito em status assertionis (teoria da asserção). É dizer, o reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido implica a compatibilidade ao sistema normativo, isto é, a aferição de que o direito material alegado encontra-se, ao menos em uma análise inicial, albergado pelo ordenamento jurídico. 2. A atual concepção de família implica um conceito amplo, no qual a afetividade é reconhecidamente fonte de parentesco e sua configuração, a considerar o caráter essencialmente fático, não se restringe ao parentesco em linha reta. É possível, assim, compreender-se que a socioafetividade constitui-se tanto na relação de parentalidade/filiação quanto no âmbito das relações mantidas entre irmãos, associada a outros critérios de determinação de parentesco (de cunho biológico ou presuntivo) ou mesmo de forma individual/autônoma. 3. Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois o pedido veiculado na inicial, declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral, é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário. 4. In casu, configurada a alegada ofensa ao disposto no artigo 295 do Código de Processo Civil e ao artigo 1.593 do Código Civil, pois inferida a compatibilidade do pedido (declaração de parentesco colateral, em segundo grau, de cunho socioafetivo), em abstrato, ao ordenamento jurídico pátrio. 5. Recurso especial provido, a fim de cassar o acórdão e sentença, afastando a impossibilidade jurídica do pedido e, em consequência, determinar o retorno dos autos à origem, para regular prosseguimento do feito. (STJ – REsp 16674372 – 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, j. 04/10/2022).

[2] CC, art. 1.641: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

II – II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

[3] STF – Tema 1.236: Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos.

[4] STF – RE 646721, Rel. Min. Luis Roberto Barroso.

 STF – Tema 1.236: Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos.

[5] STJ – Súmula 655: Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.

[6] STF – Súmula 377: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

[7] CC, art. 1.511: O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

[8] CC, art. 1.513: É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.

[9] CR, art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 

[10] Lei 8.009/1990.

[11] Lei 8.009/1990, art. 3º: A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.   

[12] STF – RE 605.709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Red. p/ Ac. Min. Rosa Weber, j. 12.06.2018.

[13] STF – RE 1.307.334/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 10/03/2022.

[14] STF – Tema 1.127: É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial.

[15] STJ – REsp 1.822.040/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08/06/2022.

[16] STJ – Tema 1.091: É válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial, nos termos do inciso VII, do art. 3º da Lei n. 8.009/1990.

[17] STF – Súmula 149: É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança.

[18] CC, art. 205: A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

[19] CC, art. 189: Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

*Maria Berenice Dias é advogada e vice-presidente Nacional do IBDFAM.

Fonte: IBDFAM