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Gratuidades no registro civil e repasses – A inversão é salutar
As serventias extrajudiciais (“cartórios”), através da atuação de seus titulares (notários e registradores), representam importante fonte de atendimento de interesses do Estado e da sociedade.
No aspecto ligado a tutela de direitos e fomentação da dignidade da pessoa humana o Registro Civil das Pessoas Naturais, diante das suas peculiaridades, assume lugar de destaque, uma vez que os atos inerentes a vida humana, bem como o findar da mesma, recebem assento na unidade de serviço em mote.
Não se perde de vista que os notários e os registradores exercem os serviços notariais e de registro em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236 – Constituição Federal), não sendo, portanto, funcionários públicos, e sim particulares em colaboração com o Estado, como já se manifestou o STF.
Quanto aos serviços realizados pelos notários e registradores, em regra, cumpre ao cidadão a contraprestação através do pagamento dos emolumentos, tendo os últimos a natureza tributária de taxa.
A lei 8.935/94, antes mesmo da apresentação do rol tímido de direitos, enuncia que os notários e oficiais de registro têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia.
Por sua vez, a lei 10.169/00 estabelece normas gerais para a fixação de emolumentos. É da lei Federal 10.169/00 que advém a previsão de que os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro.
Como o Estado não injeta dinheiro nos cartórios extrajudiciais, sendo, como dispõe a lei, o gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro da responsabilidade exclusiva do respectivo titular (art. 21 da lei 8.935/94), compete então ao titular, manter a regularidade do funcionamento da serventia por meio dos emolumentos que recebe, motivo pelo qual, amparado ainda na natureza tributária, se depreende que os emolumentos devem fazer frente para a eficiente e adequada prestação do serviço.
A observância dos emolumentos fixados para a prática dos atos é dever dos notários e registradores, ocorrendo a cobrança nos termos da lei, de modo que se impede a imposição ao usuário de novas despesas em decorrência da realização das diligências necessárias ao preparo dos atos.
Diante do sistema vigente, absolutamente todas as despesas para o funcionamento do “cartório”, desde o prédio até aos materiais de escritórios e papéis de segurança, são suportadas exclusivamente pelos tabeliães e registradores, através dos emolumentos que recebem.
Todavia é fato que o elevado número de gratuidades concedidas pelo Poder Público, sobretudo no campo do Registro Civil das Pessoas Naturais, bem como a alta incidência de repasses obrigatórios tem comprometido, em muitos casos, a sobrevivência do serviço.
A Constituição Federal, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais, prevê no art. 5.º, LXXVI, que são gratuitos para os reconhecidamente pobres o registro civil de nascimento e a certidão de óbito, o que é reproduzido pela lei 8.935/94 (art. 45).
A gratuidade em apreço tem, na verdade, caráter universal, em razão dos atos necessários ao exercício da cidadania (lei 9.534, de 10/12/97).
Ainda no âmbito do Registro Civil se observam gratuidades em relação a habilitação para casamento (que diga-se: deve ser a exceção do sistema), e gratuidades em casos de reconhecimento de filiação, por exemplo.
Ressalta-se que a gratuidade não está atrelada apenas ao campo dos Ofícios da Cidadania, havendo também sua verificação em outras Serventias, como ocorre, por exemplo, quando do registro da Regularização Fundiária de Interesse Social – Reurb-S no âmbito do Registro de Imóveis (art. 213 § 15 – lei de registros públicos).
Não se ignora a importância da concessão de atos determinados sob a égide da gratuidade, afinal, como mencionado nos casos do assento de nascimento e de óbito, o enfoque é o exercício da cidadania, o que implica, na tutela e valorização da pessoa humana.
Da mesma forma, tomando ainda a Regularização Fundiária de Interesse Social, é nítido o interesse representado, o que corresponde ao amparo social de considerável parcela da sociedade.
Contudo o sistema no que tange à gratuidade merece ser revisto, sobretudo considerando que aproximadamente 20% dos cartórios brasileiros são chamados “deficitários”, pois aquilo que arrecadam não é suficiente para a manutenção e prestação eficiente e adequada do serviço, uma vez que as despesas superam a arrecadação. Oficialmente são mais de 2.500 serventias deficitárias em todo o país (GUIMARÃES, 2021).
A revisão do sistema é indispensável – não para que haja cobrança da população em relação aos atos mencionados, mas sim para que seja estabelecida uma contraprestação adequada por parte do Poder Público.
Talvez a única maneira para que isso seja implementado de forma eficiente decorra da inversão da configuração dos repasses e a postura ativa dos entes.
Os cartórios extrajudiciais funcionam como frenéticos repassadores de valores a diversos entes, quando na verdade, deveriam ser beneficiários de repasses de numerário dos tais – ou seja, os que hoje “recebem” deveriam ter uma postura ativa para “repassar”.
A garantia e tutela da cidadania, ou ainda de outros direitos humanos, dentre eles os sociais, não devem ser assumidas exclusivamente por registradores, quando atuam para ofertar o assento de nascimento e de óbito, ou ainda quando efetivam a Regularização Fundiária de Interesse social, dentre outros.
Trata-se, na verdade, de deveres de toda a sociedade.
É dizer com a premissa acima que os entes que atualmente recebem repasses das unidades extrajudiciais, na verdade, deveriam promover repasses aos cartórios, como contraprestação adequada pelos serviços sociais e humanos oferecidos pelas serventias extrajudiciais.
Se em termos constitucionais, conforme dispõe o art. 205, a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, da mesma forma deve ocorrer em relação aos atos promovidos pelos registradores, que dizem respeito ao exercício da cidadania – inclusive em termos literais – como aponta a já referida lei 9.534/97.
É sabido que, em regra, todo cartório extrajudicial direciona uma ínfima parcela para a compensação dos atos gratuitos praticados pelo registro civil das pessoas naturais, mas aqueles que militam na área sabem o quanto o valor é irrisório. Ademais, a promoção da cidadania, neste sentido, continuaria restrita ao patrocínio dos notários e registradores, o que não se pode conformar.
O presente texto tem a sua conclusão para apontar que num primeiro momento a reformulação do sistema para diminuir os entes beneficiados e o montante de repasses, garantirá, por pouco tempo a sobrevivência do registro civil das pessoas naturais, mas não foge da responsabilidade de afirmar que tais serventias precisam ser destinatárias de recursos por parte dos entes que hoje figuram como beneficiários.
A inversão é salutar!
Fonte: Recivil