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Gazeta do Povo – INSS, união civil e prisão: as consequências jurídicas do registro civil de não binários
Não se identificam nem como homens nem como mulheres
Pelo menos 48 pessoas que se declaram “não binárias” – aquelas que não se identificam nem como homens nem como mulheres – participaram de uma ação do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, para alterar suas certidões de nascimento no fim de novembro. Mas essas mudanças podem trazer consequências legais e sociais. Definições quanto à aposentadoria e outros benefícios previdenciários, local de cumprimento de uma eventual pena de prisão, e até questões relacionadas ao direito de família podem ser impactados.
A partir da iniciativa da Defensoria Pública, essas certidões passaram a apresentar a informação de “gênero não especificado / agênero”. Esse foi o primeiro passo para que eles pudessem solicitar, posteriormente, a alteração dos demais documentos. Aliás, os participantes da ação no Rio de Janeiro também receberam justamente essas informações: como alterar CPF, Carteira de Trabalho e CNH, entre outros. Antes disso, segundo o Nudiversis, apenas cinco pessoas já havia feito esse tipo de alteração no país.
Desde 2018, seguindo orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), pessoas transexuais podem solicitar a alteração de seu registro civil, mudando o nome e também o gênero mencionado. De acordo com a decisão, a mudança pode ser feito mesmo se a pessoa não tiver se submetido a cirurgias de redesignação sexual. Assim, uma pessoa que biologicamente nasce homem, mas depois se apresenta como uma mulher transexual, pode pedir para mudar seu registro de nascimento, para que nele passe a constar a informação de gênero ou sexo feminino e não mais o masculino. A solicitação pode ser feita diretamente nos cartórios, sem ser necessário abrir uma ação judicial.
Embora a decisão dos STF não mencione diretamente “pessoas não binárias”, ativistas LGBTs têm entendido que a decisão também deve ser estendida a esse grupo de pessoas.
Mas e o que acontece quando não se sabe qual gênero atribuir a uma pessoa, ou melhor, quando a própria pessoa não declara seu gênero?
Implicações na prática
Parte do arcabouço jurídico está diretamente associado à distinção entre feminino e masculino. Leis previdenciárias, por exemplo, têm regras diferentes para a aposentadoria de homens e mulheres.
“Com certeza esse tipo de alteração traz consequências do ponto de vista da aplicabilidade de normas e pressupostos previdenciários. Mas até agora não se tem muita certeza de como isso ocorrerá”, afirma o especialista em Direito Previdenciário e Civil, Marcus Alvarez.
Hoje, as regras do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para a aposentadoria por idade, por exemplo, são distintas de acordo com o sexo do beneficiário. Com as alterações na lei previdenciária, a idade mínima para obter o benefício foi fixada em 65 anos para homens e de 62 para mulheres ou de 60 anos para homens e 55 para mulheres no caso de trabalhadores rurais. O tempo de contribuição obrigatório também varia de acordo com os sexos. Para homens, o tempo de contribuição mínimo é de 35 anos e para mulheres, 30.
No caso de pessoas trans, há especialistas que defendem que a regra aplicada deve corresponder ao gênero que consta no registro civil da pessoa, independentemente de quando for feita a alteração. Já para não binários, a questão permanece em aberto. “Acredito que será necessário criar uma categoria específica dentro dos regimes previdenciários para atender a esse público. Do jeito que estão, as normas são bem específicas, exigindo a determinação de um gênero, seja o biológico ou não, para a concessão de aposentadorias”, explica Alvarez.
Em relação a outros benefícios como o salário-maternidade, atribuído especificamente a mulheres que se tornam mães – embora possa ser estendido a homens em casos bem específicos – a aplicação deve ser mais fácil. Se a pessoa não binária – biologicamente mulher – engravidar e tiver um filho, o direito ao salário maternidade será irrefutável. “A materialidade da gestação, do parto e do cuidado com a criança permanece, independentemente do que constar no registro civil”, diz o advogado.
“Quando a Justiça reconhece o direito e permite a alteração do gênero em um registro civil, ela está admitindo que, do ponto de vista legal, aquela pessoa é um homem ou mulher, independente do sexo informado anteriormente. Claro que ainda há dúvidas na área previdenciária, mas ainda assim é mais fácil do que quando se têm uma pessoa que não enquadra nem como homem e nem como mulher”, opina.
Para o jurista, apenas quando os casos concretos começarem a ser analisados pela Justiça é que a situação poderá ser melhor entendida e poderão surgir soluções ou mesmo regras específicas para atender esse tipo de grupo. “Ainda é cedo para dizer, mas é algo natural do Direito se adaptar e criar novas normas para atender necessidades específicas. Pode ser o caso dessas situações”, avalia.
União civil
Não há orientações oficiais específicas sobre a união civil ou união estável entre pessoas não binárias ou entre uma pessoa não binária e um homem ou uma mulher. Como apenas recentemente começaram a haver casos de alteração de registro civil para “gênero não especificado / agênero”, possivelmente apenas quando houver casos desse tipo de união é que será formalizada uma regra.
No caso de que uma pessoa já legalmente casada optar por fazer a alteração em sua certidão de nascimento, a situação é ainda mais complicada. Muitos juristas defendem que o casamento pode ser declarado nulo.
No caso de pessoas trans, existe entendimento de que, se o marido ou esposa não tiver conhecimento do fato, poderá pedir que a união seja anulada, baseado no artigo 1.556 do Código Civil, que considera que erro ou falta de reconhecimento em relação ao outro no “que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama” podem ser motivo de nulidade.
Questões relacionadas a direito de família, como concessão de tutelas e pensões, também poderão ser afetadas. Pensões a filhos de militares, por exemplo, são determinadas por gênero. Filhas podem receber pensões vitalícias, enquanto que para os filhos o benefício cessa com a maioridade. No caso de pessoas trans, já há decisões favoráveis para que mulheres trans – ou seja, biologicamente nascidos homens – possam receber o benefício. Sobre os não binários, não há qualquer definição.
Cumprimento de penas
Outra situação que passou a ser orientada a partir do gênero é a do cumprimento de penas. Homens e mulheres presos ou que cumprem pena são separados por sexo. Mas, após resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pessoas autodeclaradas transgênero – e o CNJ inclui não binários nessa categoria – devem ser questionadas sobre a preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, caso exista na região. Definida a unidade, podem opinar acerca da preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver.
Na prática, isso significa que um homem biológico, mas que se autodeclara ser uma pessoa não binária será consultado sobre onde preferem cumprir suas penas em unidades femininas ou masculinas.
Já para os casos de gays, lésbicas, bissexuais, intersexo ou travestis, a Resolução 348/2020 diz que os presos (as) devem ser indagados acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas específicas.
Esportes
Já sobre a participação em competições esportivas, que são em maioria organizadas de acordo com o sexo do participante, a situação também é indefinida. De acordo com uma resolução do Comitê Olímpico Internacional (COI), publicada em 16 de novembro deste ano, as entidades de cada esporte é que serão responsáveis por estabelecer regras para a participação de pessoas trans. Mais uma vez, a regra trata dos casos de atletas transexuais, mas não dos não binários.
Ainda assim, o Comitê diz que nenhum atleta deverá ser impedido de participar de uma competição por sua “identidade de gênero, aparência física ou variação de sexo”.
Fonte: Gazeta do Povo