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G1 Araraquara – ‘A História Comprovada’: cartório registrou 208 transações de venda de escravos durante 17 anos em Araraquara; veja dados raros

'A História Comprovada': cartório registrou 208 transações de venda de escravos durante 17 anos em Araraquara; veja dados raros

24-03-2023

Um cartório de Araraquara (SP) guarda uma preciosidade histórica. Em cinco livros, em uma caligrafia elaborada, estão registradas 208 transações de venda de escravos ocorridas entre os anos 1870 até 1887.

Em mais de 500 páginas está registrada uma contabilidade inimaginável nos dias de hoje: a transferência do título de posse de homens, mulheres, adolescentes, crianças e bebês, com seus devidos valores.

Nesta quinta-feira (23), o EPTV1, em parceria com o g1, iniciou a série de reportagens ‘A História Comprovada’, que fala sobre esses documentos, que deveriam ter sido queimados em 1890, por determinação do então ministro da Fazenda Rui Barbosa. Um livro sobre o tema será lançado na sexta-feira (24), no Sesc Araraquara.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por pesquisadores da Unesp de Araraquara e tabulados pelo g1. Durante 17 anos, até 1887 – um ano antes da assinatura da Lei Áurea – 295 pessoas foram negociadas em Araraquara:

127 do sexo feminino:

• 20 crianças – com idade entre 2 e 12 anos
• 22 adolescentes – com idade entre 13 e 17 anos
• 73 adultos – com idade entre 18 e 45 anos
• 12 pessoas sem idade declarada

168 do sexto masculino:

• 33 crianças – com idade entre 2 e 12 anos
• 29 adolescentes – com idade entre 13 e 17 anos
• 86 adultos – com idade entre 18 e 55 anos
• 20 pessoas sem idade declarada

Documento histórico

Os documentos, alguns com mais de 150 anos, têm grande valor histórico, sobretudo porque em 1890 – dois anos após a assinatura da Lei Áurea (extinção da escravidão) – um despacho do então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, ordenava a destruição de todos os registros de cartório sobre compra e venda de escravos no Brasil, incluindo livros de matrícula, controles aduaneiros e registros de tributos.

O documento também determinava que os registros fossem enviados para o Rio de Janeiro, capital da República, onde seriam queimados, o que ocorreu em 13 de maio de 1881.

Os registros estão no 1º Cartório de Notas de Araraquara, fundado em 1831 para a realização da escritura escravagista. Essa parte da história da cidade foi descoberta graças a uma iniciativa de pesquisadores, advogados, autoridades e integrantes de movimentos antirracistas que conseguiram na Justiça o acesso aos dados.

O material se tornou parte do livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”, que será lançado na sexta-feira (24), às 18h30, no Sesc Araraquara.

Contabilidade de humanos

Segundo um levantamento da professora emérita da Unesp Anna Maria Martinez Corrêa, a utilização de escravos em Araraquara passou a ser intensificada a partir de 1835, por conta da expansão da agricultura, primeiro com a cana-de-açúcar, depois com o café. Nesta época havia 391 escravizados, representando 13,7% da população.

Em 1852, já eram 1.176 negros submetidos à escravidão, Na ocasião, o tráfico de escravos já era proibido no Brasil, mas o mercado dessas pessoas não cessou. Os livros de Araraquara mostram transações com vendedores de várias províncias, sobretudo da região Nordeste, de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Há também registros de compras de escravos de fazendas de Descalvado, São Carlos e Brotas.

As pessoas comercializadas eram identificadas apenas com o primeiro nome. Apenas um – Sabino Castro – tinha sobrenome, entre as centenas de escravos citados nos livros.

Alguns registros indicavam estado civil e parentesco entre as pessoas vendidas. Entre as especificações uma chama a atenção: ingênuo. Trata-se de crianças nascidas após a assinatura da Lei do Ventre Livre, em 1871, e que deveriam ficar com a mãe, pelo menos, até 8 anos de idade. Após esse período, o senhor escravocrata poderia obter uma indenização do estado ou entregar a criança para o governo.

Nos registros de Araraquara há 22 ingênuos, além de seis crianças nascidas após 1871, mas que não foram classificadas.

Outros apontamentos traziam características e aptidões dos escravos negociados:

• “Antônio, preto, 25 anos, solteiro, bom trabalhador.”
• “Sabino Castro, 20 anos, afeito para o trabalho de mensuração.”
• “Thiago, preto, 14 anos, solteiro, matriculado no Paraná, filho de Lauriana, boa aptidão.”
• “Florinda, 28 anos, aptidão sofrível para trabalho.”
• “Pedro, 24 anos, preto, solteiro, filiação desconhecida, profissão pedreiro da aptidão para o trabalho.”
• “Raimundo, pardo, 22 anos, solteiro, matrícula do Ceará, apto qualquer trabalho.”
• “João, preto, 19 anos, solteiro, serviços de enxada.”
• “Vicência, apta a qualquer trabalho doméstico.”
• “José, pardo, 19 anos, solteiro, natural da Bahia, filiação desconhecida, capaz de todo trato, trabalhador de enxada.”
• “Matheos, cor preta, 29 anos, solteiro, natural de cabo verde, bom trabalhador de cana.”

Liberdade condicional

Em 17 anos, apenas 12 escravos – cinco homens e sete mulheres – receberam carta de liberdade, mas a soltura não era imediata.

Eles receberam uma “liberdade condicional” que determinava que eles deveriam servir seus senhores até quando eles morressem, para somente depois poderem usufruir de liberdade.

Negociadores

As anotações mostram 140 compradores de escravos em Araraquara, inclusive um padre. Entre os negociadores está Antonio Joaquim Carvalho, que era dono de uma grande propriedade de café, onde hoje está o assentamento Bela Vista e onde ele construiu um grande casarão, que hoje está abandonado e tem fama de mal assombrado.

Em seu nome há três registro de compras de escravos:

• 02/03/1878- Matheos, de 29 anos, 2:400.000 Rs
• 14/04/1879 – João, de 19 anos,3:500.000 Rs
• 02/09/1883 – Domingas, de 18 anos, 1:300.000 Rs

Outros nomes aparecem em várias negociações ao longo dos anos:

Maiores compradores:

• Antônio Mariano Borba – 5 compras (5 escravos) + 1 venda (1 escravo)
• Capitão Candido Mariano Borba – 4 compras (6 escravos + 1 ingênuo)
• Capitão Joaquim Sampaio Peixoto – 5 compras (5 escravos)
• Clementino Xavier Machado – 4 compras (10 escravos)
• Francisco de Paula Correia e Silva – 4 compras (9 escravos + 1 ingênua)
• Francisco Luiz de Sampaio – 4 compras (5 escravos + 1 ingênuo)
• Germano Xavier de Mendonça – 8 compras (13 escravos + 1 ingênuo) + 1 venda (4 escravos + 1 ingênuo)
• Joaquim Carvalho de Oliveira – 5 compras (7 escravos)
• Justino Correia de Freitas – 10 compras (26 escravos + 1 ingênuo não declarado) + 1 venda (9 escravos)
• Luis Caetano de Sampaio – 7 compras (8 escravos)
• Major Joaquim Duarte Pinto Ferraz – 7 compras (11 escravos)

Maiores vendedores:

• Carlos Augusto Rodrigues Pinto – 3 vendas (5 escravos + 1 ingênuo)
• Dona Maria Rita de Araújo Borba – 4 vendas (5 escravos)
• Henrique Moraes mais companhia Castro – 3 vendas (4 escravos)
• José de Castro Eusébio – 3 vendas (6 escravos)
• José Pires de Albuquerque – 3 vendas (3 escravos)
• José Ribeiro do Vale – 3 vendas (5 escravos + 1 ingênuo)

Segundo o professor e pesquisador da Unesp de Araraquara, Dagoberto José Fonseca, os livros com os registros de posse de escravos não foram queimados justamente para beneficiar esses compradores

“Tem uma piadinha terrível que vocês já devem ter ouvido que é ‘cuidado negão, porque a Lei Áurea pode ter sido assinada a lápis’. Ou seja, tem lei que pega e tem lei que não pega e é dentro desse contexto que eu não queimo meus documentos, eu guardo porque se a lei realmente não pegar eu tenho a documentação para comprovar que aquela população é minha propriedade e eu trago ela de volta”, afirmou.

Fonte: G1 – São Carlos e Araraquara