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Folha – Os dez anos do reconhecimento das famílias homoafetivas pelo STF
Ausência de previsões expressas no aparato normativo brasileiro condiciona a população LGBT+ a um caminho inseguro de flutuações jurisprudenciais
Há exatos dez anos, no dia 5 de maio de 2011, no histórico julgamento de duas ações (ADPF 132 e ADI 4277), o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homoafetiva. Ao vedar a interpretação discriminatória de que união estável seria apenas aquela entre homem e mulher, o STF acolheu no texto constitucional as famílias homoafetivas, que, até o momento, exceto alguns poucos reconhecimentos pontuais, como para fins previdenciários, eram invisíveis para o Direito. Em 2013, este reconhecimento foi estendido para o casamento homoafetivo graças à Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, com efeito vinculante sobre os cartórios em todo o território nacional. Às famílias homoafetivas foram finalmente abertas as portas da dignidade humana e da proteção da família previstas na Constituição Federal.
Se, por muito tempo, o casamento entre pessoas do mesmo gênero era o exemplo didático de casamento inexistente, ou, quando muito, era visto como mera sociedade de fato, a realidade das famílias homoafetivas foi imposta ao Direito por decisão judicial. O avanço para a proteção de pessoas LGBT+ trazido pelas decisões do STF até hoje não foi alcançado pelo legislador. Na ausência de legislação específica que reconheça, garanta e proteja famílias homoafetivas, é oportuno aproveitar esta data para comemorar esta conquista, mas também para refletir sobre o que ainda está por ser alcançado.
Pensemos na relação de filiação. Quando o Código Civil traz seu sistema de presunções quanto à parentalidade de crianças nascidas no casamento (ou, segundo a jurisprudência, também na união estável), é nítida a imagem de família que o legislador tem em mente: a família “tradicional”, binária, composta por homem e mulher. Quando o CNJ regulou o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva, aquela que nasce de vínculos de afeto, e não biológicos, exigiu que a filha ou filho socioafetivo tenha, no mínimo, 12 anos. Esta restrição afeta, em especial, famílias homoafetivas: aquele que não tenha laços biológicos com a criança estaria condenado à espera por longos 12 anos até que o reconhecimento possa ser realizado no Registro Civil.
A possibilidade de adoção por casais homoafetivos, por sua vez, emergiu como consequência natural da decisão do STF e da Resolução do CNJ. Como o Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a adoção conjunta aos indivíduos casados ou que vivam em união estável, homossexuais não ficaram mais restritos à adoção monoparental, na qual crianças ou adolescentes são adotados por uma única pessoa, prática que lhes era comum entre as décadas de 1990 e 2000 –uma espécie de “não pergunte, não conte”, onde o Judiciário fingia não perceber que havia ali um casal homoafetivo disposto a adotar, e não uma pessoa solteira. Todavia, não são raros os obstáculos ainda hoje encontrados –há registros recentes na jurisprudência, por exemplo, de indeferimento da adoção de meninos por casais de lésbicas, sob a justificativa de “ausência de referência masculina e paterna”. Isso num país com um número avassalador de mães que são as únicas responsáveis pela família após o abandono dos pais.
No Direito Sucessório, com seu rígido comprometimento de metade do patrimônio, que deve ser destinado a certas classes de herdeiros, chama a atenção a impossibilidade de deserdação daquele que abandonou afetivamente seu ascendente ou descendente por discriminar sua orientação sexual.
Com maior celeridade e eficiência para adequar o Direito às mudanças sociais, as decisões judiciais vêm cumprindo um papel indispensável na proteção das famílias homoafetivas e de seus efeitos jurídicos, tendo, como resultado mais recente, a criminalização da homotransfobia. No entanto, a ausência de previsões expressas no aparato normativo brasileiro condiciona a população LGBT+ a um caminho inseguro de flutuações jurisprudenciais. Sob as deliberações de um Congresso Nacional conservador, com quórum insuficiente de parlamentares para alterações progressistas no Código Civil e na Constituição Federal, resta aos cidadãos escolher candidatos e candidatas dispostos a sintonizar o conceito de família ao século XXI. Aguardemos as próximas eleições, e torçamos para que o recente ressentimento com conquistas históricas em prol de minorias seja passageiro.
Fonte: Folha de S. Paulo