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Divórcio à brasileira 30 anos depois da lei, as mulheres desfrutam de uma liberdade impensável na época do temido desquite
Antes da aprovação da lei do divórcio – ou emenda Nelson Carneiro – em 1977, com exceção de filho morto, não havia desgraça maior para uma mulher do que ser desquitada, prato cheio para Nelson Rodrigues e mexeriqueiros de plantão. Quando se tocava no assunto, geralmente era em voz baixa e bem longe das crianças. Socialmente, a mulher separada era mal vista, tida como péssima companhia, culpada por não ter conseguido segurar o matrimônio. As “bem casadas” a tinham como uma inimiga mortal, uma desfrutável prestes a dar o bote em seus maridos. E os homens a viam como uma espécie de disponibilidade erótica, sempre à mão.
O tema era espinhoso até mesmo na ficção. Novelas e seriados passavam pelo crivo da censura imposta pela ditadura. O autor Lauro César Muniz, autor das novelas Escalada, de 1975, e O Casarão, de 1976, lembra que os capítulos eram escritos, gravados e seguiam para Brasília, onde sofriam cortes que deixavam a história sem pé nem cabeça. “Em O Casarão, tem uma cena forte, na qual a personagem Carolina (Renata Sorrah) leva um tapa do marido Estevão (Armando Bogus), colocando um ponto final no casamento infeliz dos dois. A cena foi cortada e a seqüência ficou sem sentido.” Também o uso de anticoncepcionais pela personagem, sinalizando a emancipação feminina, foi vetado pela censura.
Em Escalada, ambientada nos anos 40, 50 e 60, a questão do divórcio, levantada pela crise conjugal de Antonio Dias (Tarcísio Meira) e Cândida (Suzana Vieira), foi de tal modo aprofundada na novela que abriu espaço para debates na sociedade sobre a questão. “Na época, cheguei a trocar idéias com Nelson Carneiro, que achava positivo levar o assunto ao público por meio da mídia.” Hoje, brinca Lauro César Muniz, as reprises das novelas, que há 30 anos causaram tanta polêmica, são transmitidas às 2 da tarde.
MALU MULHER
Outro caso foi a novela Despedida de Casado, de 1975, que abordava a falência de um casamento. Depois de ter os 20 primeiros capítulos liberados, a novela foi totalmente vetada, sob a alegação de que o texto de Walter George Durst pregava a dissolução do matrimônio. Segundo a atriz Regina Duarte, que integrava o elenco, a novela foi censurada uma semana antes de ir ao ar e a emissora teve de colocar um compacto no lugar. “Na época, houve manifestações, e uma representação formada por artistas e pela imprensa foi até Brasília.”
Mas coube ao seriado Malu Mulher, de 1979 – exibido por 52 canais de televisão, em diversos países, conquistando vários prêmios nacionais e internacionais – o papel de registrar as mudanças ocorridas na sociedade e nas relações familiares. “Na época, eu estava recém-separada e essa era a problemática de várias mulheres. O número de separações tinha aumentado muito em 1977, e chamou a atenção do diretor Daniel Filho”, comenta Regina Duarte.
A socióloga Malu, lembra a atriz, abordava temas considerados tabus, como orgasmo, aborto, câncer de mama e a importância do auto-exame. O seriado provocou reações. “As mulheres sempre gostavam, enquanto que os homens se sentiam ameaçados. Na ponte aérea, um homem me disse que não deixava a mulher assistir ao seriado por considerá-lo subversivo.”
Apesar de, na época, ter sido presença sempre solicitada em debates e discussões sobre gênero, Regina faz questão de frisar que, como mulher e atriz, não militou por causas feministas. “Não concordava ipsis literis com os movimentos, muitos deles agressivos, de mulheres que depositavam nos homens as suas amarguras.” Uma exceção foi sua participação em prol da criação da Delegacia da Mulher, “filhote daquele período e um recurso de apoio à mulher e à defesa dos direitos humanos.”
Saltando da TV para a música, na opinião do crítico, ensaísta, compositor, intérprete e pianista José Miguel Wisnik, Chico Buarque é quem melhor canta a separação:
– Até os anos 60, prevalecia a idéia de que o casamento era indissolúvel. Os acontecimentos dessa década deram uma sacudida, precedendo às mudanças que ocorreriam nas relações durante os anos 70. Chico captou o momento, como nas músicas Trocando em Miúdos, de 78, e Atrás da Porta, de 72. Em Olhos nos Olhos, de 76, Chico fala da separação do ponto de vista feminino, como nos versos Quando você me quiser rever/Já vai me encontrar refeita, pode crer/Olhos nos olhos/Quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais.
QUEBRANDO TABUS
A cantora Inezita Barroso, de 82 anos, rompeu com dois tabus. Seguiu a carreira artística, contrariando a conservadora família dos Aranha de Lima, e tomou a corajosa decisão de desquitar-se depois de oito anos de casada. “Quando dei a notícia para a família, durante um almoço, no qual estava a minha avó e até um bispo, foi um desbunde !”
Com personalidade forte e determinada, ela conta que, desde mocinha, já gostava de cantar e tocar viola caipira, numa época em que o piano era o instrumento oficial das meninas. A música só foi se tornar uma atividade profissional para a jovem Inês no final da década de 1940, durante uma visita a Recife, onde conheceu o coco, a embolada, o baião, o xote e tantos outros ritmos nordestinos.
Em 1947, aos 22 anos, ela casou-se com o advogado Adolfo Cabral Barroso, grande incentivador de sua carreira. “Adotei o sobrenome da família dele e, a pedido do meu sogro, o mantive mesmo depois da separação.” Mãe de uma única filha, Marta Barroso Macedo Leme, a cantora já era independente financeiramente. Nunca mais se casou.
PRIMEIRA DIVORCIADA
Em janeiro de 1978, em apenas quatro linhas, o juiz Wilson Santiago Mesquita de Mello restituiu a liberdade conjugal à advogada Arethuza Aguiar, a primeira divorciada do País. Foi tudo simples e rápido, visto que ela estava desquitada havia oito anos. Arethuza conhecia o advogado e político Nelson Carneiro (falecido em 1996), e relembra uma passagem. “Ele brincava, dizendo que a aluna havia superado o mestre. Um cliente dele queria se divorciar assim que saiu a lei. Mas o juiz não foi tão diligente no caso dele, e o meu processo saiu primeiro.” Com duas filhas, de 5 e 3 anos na época do desquite, Arethuza diz que teve medo da reação das meninas:
– Mas conversamos muito e elas entenderam que quem se separou foi o homem da mulher e vice-versa, e não os pais das filhas. No fim, lidaram bem com a situação, tanto que no colégio diziam que tinham uma mãe histórica. Hoje uma é médica e está com 43 anos, e a outra, de 40, é advogada.
Para Arethuza, a lei do divórcio foi um marco. “Com o desquite, o casal não morava junto, mas o vínculo permanecia, já que não era permitido se casar novamente.” A advogada virou juíza de paz e celebrou muitos casamentos. Casou-se uma vez, não deu certo e, hoje, se dedica à carreira e à família.
EVOLUÇÃO
Com a Lei 11.441/07, em vigor desde janeiro deste ano, as separações amigáveis e sem filhos menores podem ser feitas nos cartórios. Segundo o advogado Cassio Namur, do escritório Souza, Cescon, Avedissian, Barrie e Flesch, além de ajudar a desafogar o Judiciário, a lei traz benefícios, como amortização dos custos e rapidez.
Antes, as separações e divórcios só podiam ser realizados por juízes das Varas de Família e Sucessão, e o processo levava meses. No cartório, em questão de horas o casal sai divorciado. “Mas é preciso ser consensual e sem filhos pequenos ou incapazes. Isso ocorre porque o legislador entende que é necessária uma tutela do Estado para salvaguardar os direitos das crianças.” A presença do advogado continua sendo obrigatória, e este profissional pode ser o mesmo para o casal. “Como não há juiz nem promotor, a exigência de um advogado justifica-se para esclarecer e orientar as partes.” A divisão do patrimônio pode ser feita na hora ou postergada.
Segundo Na
mur, quem estiver com o processo de divórcio correndo no Judiciário pode optar por fazê-lo no cartório, e vice-versa. Ainda, o divórcio pode ser feito por procuração, caso um dos dois more em outro Estado e não possa comparecer. E, como curiosidade, quem se divorciar no cartório passa a ter um “novo” estado civil, ou seja, divorciado extrajudicialmente.
Segundo Paulo Vampré, presidente da seção São Paulo do Colégio Notorial do Brasil e dono do 14º Tabelião e Cartório de Notas da Capital, em Pinheiros, a procura pela realização do divórcio em cartórios vem aumentando mês a mês. “A rapidez é a maior vantagem para os casais, principalmente para aqueles que já estavam separados de fato e que constituíram nova família.” Foi no cartório de Vampré que foi realizado o primeiro divórcio do Estado de São Paulo. “Ela é manicure e ele, vigia, e estavam separados há dois anos. Ele, inclusive, tem um filho do outro relacionamento, e ela, um novo companheiro. Trouxeram o advogado, uma testemunha e, em algumas horas, o processo estava concluído.”
Com relação aos custos, é preciso arcar com as despesas dos cartórios e dos advogados. Em juízo, o valor mínimo do divórcio é de R$ 1.042,00 em São Paulo e a recomendação da OAB é de que os advogados cobrem o mesmo valor nas separações em cartório. O preço cobrado pelos cartórios, varia. Se o casal não tem patrimônio, cobra-se R$ 218,50. Esse preço pode subir para R$ 436,00 se o casal preferir que o tabelião vá ao escritório, casa ou outro local. Quem comprovar que não pode pagar pode ter acesso gratuito ao serviço.
Concluindo, para Maria Berenice Dias, desembargadora e especialista em Direito de Família, a Lei do Divórcio oxigenou as relações femininas e pôs fim às marginalizações e estigmas impostos à mulher pelo antigo desquite. “Antes, os casais permaneciam juntos por contingência social. Hoje, estamos vivendo em um novo mundo, que não mais comporta a visão idealizada da família. Foi concedido, a homens e mulheres, o direito de serem felizes, independentemente dos vínculos que venham estabelecer.”
Fonte : O Estado de São Paulo