Notícias

Direito do Trabalho é engrenagem do Estado de direito

21-04-2015

por Alessandro da Silva

A doutrina liberal desenvolveu e difundiu o ideário do Estado limitado, que compreende tanto o poder, quanto as funções estatais. À primeira espécie de limitação corresponde a noção de Estado de direito, enquanto que à segunda equivale a concepção do Estado mínimo[1].

O Estado de direito foi conquista decorrente das lutas contra o absolutismo e garantiu que o exercício do poder fosse limitado por normas gerais pré-estabelecidas – constituição e leis – cuja observação é obrigatória. Essa concepção foi fundamental para a consolidação das liberdades individuais e coletivas, pois impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegal do poder.

A noção de Estado mínimo constituiu a matriz intelectual do capitalismo e sustentou a maximização da liberdade individual e a igualdade formal, em uma sociedade cuja atividade econômica deveria ser dominada pela livre iniciativa. Em tais circunstâncias, o Estado teria por funções proteger a propriedade privada e garantir o livre trânsito das forças econômicas[2].

Especialmente a vertente econômica desse ideário foi acolhida com entusiasmo pela burguesia ascendente do século XVIII, visto que garantia a perpetuação dos privilégios de fortuna ao excluir a intervenção estatal na atividade econômica. Era a doutrina do laissez-faire, laissez-passe, deixa fazer, deixa passar, que resultou na penúria de numerosos contingentes populacionais.

Nesse quadro, o direito, enquanto ferramenta de controle social, reproduzia a concepção de Estado mínimo e tinha função meramente protetivo-repressiva. Limitava-se a garantir os direitos de propriedade, livre iniciativa empresarial, liberdade de contratar e explorar a força de trabalho alheia, liberdade de comércio, e a reprimir eventuais infrações ou ameaças a esses direitos.

Ocorre que o fortalecimento dos movimentos operários durante a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917, que representou a primeira ameaça efetiva ao capitalismo, determinaram o reconhecimento dos direitos sociais, cuja implementação dependia em grande parte de uma maior intervenção do Estado nas relações econômicas, como observou José Damião de Lima Trindade:

Sob pressão de massas reivindicantes, combinada com o temor do socialismo, governos social-democratas, nacionalistas, populistas, e mesmo conservadores, promoveram vigorosas intervenções estatais na economia, regulando atividades, direcionando seletivamente políticas tributárias, creditícias e aduaneiras para estimular ou inibir setores inteiros de produção, muitas vezes até envolvendo diretamente o Estado na produção de bens e na prestação de serviços. No período entre o imediato pós-guerra e o início da década de 70 do século passado, ampliou-se na maioria dos países, às vezes até significativamente, a presença estatal nas áreas de saúde, educação, trabalho, previdência pública, construção de moradias, assistência social, subsídio alimentar, etc[3].

A matriz econômica keynesiana passou a ser hegemônica e se caracterizou por políticas estatais intervencionistas e de distribuição de renda. Era o declínio do Estado mínimo e o alvorecer do Estado de bem-estar-social, cujo ápice foi atingido nos trinta anos posteriores à Segunda Guerra Mundial.

O Estado de bem-estar-social pode ser definido como “Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito político”[4].

Essa alteração nas características do Estado também se refletiu no direito, que ultrapassou a função protetivo-repressiva rumo às funções promocional e distributiva. Sob esse aspecto, foram valorizados ramos jurídicos que viabilizavam a distribuição de recursos que, embora produzidos coletivamente, eram apropriados individualmente.

Nessa perspectiva, o direito do trabalho consolidou-se como um dos principais instrumentos de viabilização do Estado social, ao estabelecer um patamar civilizatório mínimo, conforme propõe Maurício Godinho Delgado:

Ora, sabe-se que a economia de mercado não visa à procura de eqüidade, de justiça social, porém à busca da eficiência, da produtividade e do lucro. Neste contexto o Direito do Trabalho tem se afirmado na história como uma racional intervenção da idéia de justiça social, por meio da norma jurídica, no quadro genérico de toda a sociedade e economia capitalista, sem inviabilizar o próprio avanço deste sistema socioeconômico[5].

Observe-se que foi somente com o Estado de bem-estar-social que houve a plena realização da democracia; regime que se caracteriza pela participação coletiva na tomada de decisões, a partir de um conjunto de regras pré-determinadas.

O aperfeiçoamento do regime democrático demanda a ampliação da participação coletiva, o que somente pode ser obtido por meio da promoção da igualdade jurídica, social e econômica, culminando na “democracia substancial”[6]. Contentar-se com a democracia meramente formal é ser conivente com um regime que mascara as relações de exploração e a concentração de poder, para o qual a denominação mais adequada é “democrisia”[7].

Assim sendo, vê-se que o direito do trabalho é uma das engrenagens que compõe o mecanismo complexo formado pelo Estado de direito, Estado de bem-estar-social e regime democrático, sendo que o enfraquecimento de tal ramo jurídico atenta contra essas conquistas tão caras à civilização contemporânea.

——————————————————————————-

[1] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed., 6. reimp., São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 17.

[2] Em italiano a palavra liberalismo é utilizada para indicar apenas a vertente política da teoria, que estabeleceu o Estado de direito. A corrente de natureza econômica é denominada liberismo. Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 9. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2004. pp. 121 e ss.

[3] TRINDADE, José Damião de Lima. História Social dos direitos humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002. p. 198.

[4] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PAQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5. ed., Brasília: Editora da Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. p. 416.

[5] DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. São Paulo: LTr, 2006, p. 122.

[6] BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. p. 157.

[7] A expressão é resultado da junção de “democracia” com “hipocrisia” e é da alcunha do jornalista italiano Massimo Nava. Cf. NAVA, Massimo. Vittime: storie di guerra sul fronte della pace. Roma: Fazi Editore, 2005.

Revista Consultor Jurídico, 3 de agosto de 2007

Sobre o autor

Alessandro da Silva: é juiz do Trabalho em São Paulo