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ConJur – Artigo: Uma nova cidadania registral como patrimônio personalíssimo da pessoa – Por Jones Figueirêdo Alves
Novos marcos desburocratizantes que enaltecem o sistema de registro civil têm produzido uma nova cidadania registral como patrimônio personalíssimo da pessoa. Bem é dizer, o direito registral ganha avanços significativos em prol da cidadania, na qual a pessoa é a absoluta prioridade.
Nesse propósito, pontifica a doutrina do jurista José de Oliveira Ascensão ao refletir sobre a prioridade ontológica da pessoa, sugerindo que esta deva ser versada em primeiro lugar na economia dos códigos civis, devendo constituir, portanto, livro autonomizado em relação aos demais, nele demarcado tudo que seja constitutivo da pessoa.
1. Os conviventes. Dentre os mais expressivos avanços do sistema do RGPN, situou-se a Lei nº 14.382, de 27/7/2022[1], autorizando a formalização da união estável diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante a simples coleta do termo declaratório em requerimento conjunto pelos companheiros (artigo 11) pelo que resultou, mais recentemente, na edição do Provimento 141, de 16/3/2023, pelo Conselho Nacional de Justiça.
O normativo simplifica o processo de reconhecimento e o de dissolução de união, facilitando, ainda, a alteração do regime de bens e a conversão da união estável em casamento[2].
Destacou, com a devida precisão, José Renato Nalini, expressando:
“É saudável o trato que o CNJ conferiu à previsão normativa, porque prestigia a mais democrática dentre as delegações extrajudiciais, aquela de que todos os humanos obrigatoriamente se servem. Todas as pessoas nascem, muitas se casam ou estabelecem uniões estáveis, ninguém está excluído de morrer, após curta ou longa permanência neste planeta. Os assentos realizados pelo Registro Civil das Pessoas Naturais são imprescindíveis a que alguém juridicamente exista, prove seu status familiar, possa exercer em plenitude a sua cidadania”[3].
Eis, de fato, a cidadania registral. Nessa diretiva de política pública, ressalte-se, com antecedência de registro histórico, a Lei nº 13.484, de 26/9/2017, que dentre outras alterações apresentadas à Lei nº 6.015, de 31/12/1973, declarou os Ofícios do Registro Civil das Pessoas Naturais, como “Ofícios da Cidadania”, autorizando-os a prestar outros serviços remunerados, “na forma prevista em convênio ou em matrícula com órgãos públicos e entidades interessadas” (artigo 29, parágrafo 3º, Lei nº 6.015/1973).
No ponto, ponderou Nalini que “é uma válvula aberta à multiplicação de atribuições, pois ele pode concentrar atividades correlatas e melhor servir para a consolidação da democracia participativa. Espera-se dela mais ambiciosos frutos”.
Induvidosamente que sim. Observada a capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais que atende toda a população brasileira, nos eventos mais importantes da vida, tem-se nele a efetiva presença do Estado em todos os lugares brasileiros, os menores ou mais distantes que sejam, pelo que se recomenda, com efeito, uma atuação do RCPN também em esfera de atividades administrativas
Inegável, pois, o contributo do Conselho Nacional de Justiça no fomento de uma democracia participativa, em que cada cidadão receba as devidas atenções do Estado, a exemplo dos efeitos produzidos pelo Provimento nº 141/2023. Há que se ter prevalecente, antes de mais, a pessoa como o bem maior, protegida em seus interesses, importando, assim, o RCPN registrar os fenômenos da vida em todas as latitudes que dimensionam e consagram a existência da pessoa.
2. Os invisíveis. De efeito, há que se ter, igualmente, atenção com um contingente populacional desassistido, a partir da falta de uma existência civil, invisíveis na subnotificação registral de nascimentos. Os dados sobre os nascimentos integram as chamadas estatísticas vitais que, segundo o IBGE, são fundamentais para o entendimento da dinâmica demográfica e, mais que isso, revelam a própria sociedade brasileira. Erradicar o sub-registro civil figura como medida estratégica que, com muita eficiência, agora o Conselho Nacional de Justiça se propõe realizar em ações de maior abrangência social.
O Corregedor Nacional de Justiça, ministro Luís Felipe Salomão, do STJ, em entrevista (Veja, edição nº 2.836, de 12/4/2023), anunciou uma força-tarefa que “visa a dar cidadania a cerca de três milhões de brasileiros que beiram a invisibilidade por não terem sequer o registro do próprio nascimento, a maioria de moradores de rua”.
Embora aponte-se uma sensível redução nas taxas de sub-registro de nascimentos, com percentual abaixo de 2% (2019), certo é que aos poderes públicos cumprem arregimentar medidas para conferir cidadania a todos, zerando esse déficit.
A Resolução CNJ-425/2021, instituiu a Política Nacional de Atenção às Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades (PopRuaJud), cujo Comitê nacional é presidido pelo Conselheiro Mário Henrique Goulart Maia. Vale, a tanto, destacar, como pressuposto necessário, a urgente certificação registral do nascimento das pessoas carentes. Nesse fim, as comunidades devem encetar medidas de aproximação dos vulneráveis em situação e rua aos serviços locais do “PopRuaJud”, já em execução pelos tribunais de justiça do país.
Não custa lembrar, outrossim, que uma Política Nacional para a População em Situação de Rua foi criada, pela União, através do Decreto nº 7.053, de 23/10/2009, destinada, sobretudo, a assegurar-lhe a democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos (artigo 6º, inciso X das Diretrizes)[4].
Para os fins do decreto, considerou-se:
“a população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possua em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
Em ser assim, todo incentivo e apoio à organização da população em situação de rua, a possibilitar a sua participação nas diversas instâncias de formulação, controle social, monitoramento e avaliação das políticas públicas (artigo 6º, inciso VII das Diretrizes), demanda o esforço da sociedade em geral para o cumprimento imediato de uma cidadania registral para a referida população.
Estima-se que nos últimos dez anos esse segmento vulnerável cresceu em 211% e conforme estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a população de rua superou as 281 mil pessoas no Brasil em 2022, o que implica em um aumento de 38% desde 2019 (Agência Brasil, 10/2/2023).
Lado outro, importa assinalar que predominam, no segmento, milhares de crianças e adolescentes, sujeitos de direito invisíveis, cujos vínculos familiares estão interrompidos ou fragilizados, tornando-se um desafio para as políticas públicas identificá-los e nominá-los, dando-lhes a individualidade e a identificação civil indispensáveis à dignidade da pessoa. Tema que se sobressai impostergável a ser enfrentado, por igual, no Direito de Família, sob a premissa da proteção integral (“imperativo de tutela”) aos filhos menores, muitos deles sem condições de demandar alimentos à falta de uma cidadania registral.
3. Os órfãos. A orfandade tem sido um fenômeno psicossocial a merecer um trato jurídico de maior importância para a proteção de crianças e adolescentes que perderam seus pais ou um deles, dentro de um elevado espectro de causas determinantes. Diversos indicadores sociais comportam análises circunstanciais dos fatores das orfandades e de suas consequências, a tanto exigirem as devidas especificidades para o incremento de políticas públicas adequadas e eficientes.
Um capítulo próprio deve ser dado ao problema da violência letal contra as mulheres, quando os órfãos do feminicídio podem ser havidos como filhos do Estado. A questão se apresenta cabível, nos fins do artigo 245 da C.F. à exata medida onde o Estado falha na proteção das vítimas dos crimes do tipo. Chama-se a atenção do legislador, a exemplo de destinar-lhes uma mãe social, cuja regulamentação dada pela Lei nº 7.644, de 18/12/1987, deveria(á) contemplar essa hipótese de orfandade. “Em muitos casos as crianças perdem a mãe, assassinada, e o pai, que vai preso. Mas não há rede de proteção para que famílias se reorganizem” (Instituto Humanitas Unisinos, 2020). Segundo o I.H.U., o país tem cerca de dois mil órfãos do feminicídio por ano (Jones, 2021)[7].
Dito isto, em todos os casos, suscita-se a necessidade de os indicadores sociais da orfandade, em face de suas variadas causas, ganharem uma realidade estatística segura a partir de um registro civil inclusivo que sirva, a contento, de instrumento à proteção plena e imediata dos órfãos.
Diante do que dispõe o artigo 80, em seu inciso 7º, da Lei de Registros Públicos, quando o dispositivo assinala que o assento de óbito deverá conter se o falecido deixou filhos, nome e idade de cada um, ponderemos, com a devida acuidade, que essa menção obrigatória do nome e da idade dos filhos do morto, carrega consigo, um registro da orfandade pelos Cartórios de Registro Civil, daqueles que se identificam como órfãos.
Cuidem-se, porém, inexatas as estatísticas que possam configurar as orfandades, diante de um déficit registral das realidades constantes nos assentos de óbitos lavrados acerca de filhos menores.
É caso da formação necessária de um Cadastro de Orfandades pelo Sistema de Registro Civil, monitorado e coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça, situando, inclusive, as causas dos óbitos (mortalidade materna em hospitais, feminicídio, violência urbana, etc.)[8] a ser disciplinado por normativos, de modo a constituir base de dados adequada para subsidiar as respostas públicas à proteção dos órfãos.
A inexatidão registral preocupa, quando mais se exigem novas formulações e implementações de políticas públicas para a Primeira Infância, nos exatos termos do seu Marco Civil, ditado pela Lei nº 13.257, de 8/3/2006. Com maior destaque pontual em favor das crianças que se encontrem em condições de hipervulnerabilidade, mais afetadas pela pobreza.
No ponto, estatísticas apontaram que em 2021 a razão de mortalidade materna, no país, foi de 107.53 para cada 100 mil nascidos vivos, valendo referir, em termos de gravidade do problema, sobre a necessidade de maiores investimentos públicos para os serviços de saúde materna.
4. Os cidadãos. Inconteste a eficiência do RCPN no tocante aos seus serviços de cidadania, tudo recomenda e antes, aconselha, que as atividades registrais sejam dinamizadas sob a perspectiva prioritária da pessoa enquanto usuário e cidadão.
Uma delas surge com a questão das mães sociais, cuja atuação está a merecer legislação mais avançada. Designadamente, para efeito de reforma da lei de regência, a Lei nº 7.644, de 18/12/1987, dotando a mãe social de uma atuação fora do sistema de casas-lares, ou seja, com uma atuação destinada também aos órfãos dúplices ou não, desprovidos de pai e/ou mãe, como agentes protetivos das crianças e adolescentes, em presença de famílias desassistidas.
Nesse efeito, impõe-se, antes de mais, a regulamentação do artigo 245 da Constituição, quando refere que “a lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso”.
Ora. Em se criando o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos (Funav), além de outras providências, bem de ver que o papel das mães sociais (ou pais-sociais) poderá obter maior relevo jurídico-protetivo sob a égide do referido fundo. Em consequência, tudo a sugerir sejam eles, também, referidos perante o RCPN, com a averbação feita, à margem do registro de nascimento do assistido.
Ter-se-á disposta, assim, uma nova forma de cidadania registral empregada àqueles que, vulneráveis, mais precisam de proteção do Estado, para todos os fins legais, através do desempenho personalíssimo da mãe-social (pai-social) em atuação dos seus assistidos.
Outro exemplo diz respeito ao Registro de Identificação Civil (RIC), criado pela lei federal nº 9.454/97 e que substitui a clássica carteira de identidade, expedido por meio digital, cujo fornecimento poderá ser feito através dos cartórios de Registro Civil, tudo a teor do permissivo do artigo 29, parágrafo 3º, Lei nº 6.015/1973.
Dentro do seu elevado espectro, por atender a todos os cidadãos, o Registro Civil se apresenta como o instrumento integral e operacional de ação a garantir o acesso à cidadania através de bens e serviços públicos. Este conceito melhor o define como delegatário do Estado.
Novas políticas públicas, por ação proativa do Conselho Nacional de Justiça e por inovações legais indutoras, serão sempre bem-vindas para o cidadão destinatário do RCPN. De fato, esperam-se mais ambiciosos frutos, a exemplo da narrativa legislativa mais avançada[10].
5. Concludentes. Ao final, quando o tempo-de-agora (Jetztzeit), segundo uma das categorias da filosofia de Walter Benjamin, apresenta-se como um símbolo do tempo messiânico, em pleno Domingo de Páscoa, “a resumir toda a história da humanidade”, retenha-se que o Cristo feito homem amou, sobretudo, os pobres. Para eles, a cidadania registral é urgente. Aleluia!
Referências:
[1] Lei 14.382/2022. Disponível aqui.
[2] Provimento 141/2023-CNJ. Disponível aqui.
[3] NALINI, Jose Renato. Boa nova: a excelente opção da União estável no Registro Civil. IBDFAM, 27.03.2023. Disponível aqui.
[4] Decreto n° 7.053/2009. Disponível aqui.
[5] Agência Brasil. Disponível aqui.
[6] Interessante estudo, no tema, foi desenvolvido por Gabriela Maria Fernandes Mendonça Albuquerque em sua obra Sujeito de Direito Invisíveis: O clamor silenciado de crianças e adolescentes em situação de rua (Ed. Lumen Juris Direito, 2020, p. 127).
[7] ALVES, Jones Figueirêdo. A regulação jurídica das vulnerabilidades esquecidas. Consultor Jurídico, 14/3/2021. Disponível aqui.
[8] Ver, a propósito: ALVES, Jones Figueirêdo. Herdeiros carentes de vítimas de crimes são famílias desprotegidas. Consultor Jurídico, 7/3/2021. Disponível aqui.
[9] UOL, Daniela Amorim, 14/12/2022. Disponível aqui.
[10] Ver, a propósito: ALVES, Jones Figueirêdo. Novo regime jurídico do nome civil e outros avanços do direito registral. Consultor Jurídico, 11/7/2022. Disponível aqui.
*Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: ConJur