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ConJur – Artigo: Possibilidade de penhora do bem de família do fiador em contrato de locação comercial – Por Rafael Britto e Eduardo Campos

13-04-2022

A atividade empresária, seja qual for o ramo de atuação, é desenvolvida pelos agentes econômicos em seus estabelecimentos comerciais, conceituado pelo Código Civil, como todo o complexo de bens — materiais ou imateriais, utilizados na consecução de sua atividade.

Por vezes, o estabelecimento comercial é instalado em imóveis de terceiros, ocasiões em que, a relação se materializa por meio de contrato de locação comercial. Tamanha é a importância da locação comercial que o legislador, em alguns casos, garante ao locatário o direito de renovação compulsória do contrato de aluguel comercial, visando a garantir a continuidade do exercício da atividade empresária, primando em essência pelos princípios constitucionais da livre iniciativa e da função social da empresa.

Os contratos de locação (residencial ou comercial), podem ser garantidos por fiança, com regulamentação dada pelo artigo 37, II da Lei nº 8.245/1991 [1], conhecida por Lei do Inquilinato.

A fiança é compromisso pessoal prestado por terceiro com vistas a garantir o adimplemento de determinada obrigação. Por meio do referido instituto, o fiador assume o compromisso com o credor de, em caso de inadimplência por parte do afiançado, assumir o cumprimento integral da obrigação e caso não o faça, pode ter seu patrimônio pessoal atingido, até a satisfação integral do crédito.

Sabe-se que toda penhora deve obedecer a ordem legal estabelecida no artigo 835 do CPC e que por certo existem alguns bens que são impenhoráveis, como se extrai do artigo 833 do diploma processual civil.

Contudo, a regra de impenhorabilidade que talvez seja mais conhecida é a do “bem de família” que encontra respaldo na Lei n. 8.009/90, que em seu artigo 1º assim dispõe: “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei“.

Ocorre que em 8/3/2022, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a quatro, reafirmando jurisprudência assentada em 2010, contra uma corrente contrária iniciada em 2018 por sua 1ª Turma, decidiu ser possível a penhora de bem de família dado em garantia pelo fiador em contrato de locação de imóvel comercial para quitar dívida deixada pelo inquilino.

No julgamento do RE 1.307.334/SP, submetido ao rito da Repercussão Geral (Tema 1.127), o relator ministro Alexandre de Moraes, baseou seu voto, ainda não oficialmente publicado, em sete pilares de fundamentação:

A evolução do direito à moradia — Com a EC 26 de 14/02/2000, o direito à moradia foi elevado ao nível constitucional, garantindo o mínimo existencial para sobrevivência digna do ser humano. Assim, o STF teve de enfrentar a constitucionalidade da exceção prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei nº 8.009/90, que excluía o único imóvel do fiador de obrigação de contrato de locação da proteção da impenhorabilidade do bem de família. Embora em 2006 já houvesse entendimento favorável à citada previsão legal, a temática foi levada, em 2010, à Repercussão Geral, pelo Tema 295, quando seu Tribunal Pleno fixou a tese da constitucionalidade da penhora de bem de família de fiador. Em 2015, o STJ seguiu a tese, editando sua Súmula 549;

2) A inflexão da jurisprudência nos casos de locação comercial — A ideia da impenhorabilidade do bem de família do fiador ganhou força com o julgamento da Primeira Turma do STF no RE 605.709, de 12/06/2018, de relatoria do ministro Dias Toffoli. Nesse caso isolado, a divergência aberta pela ministra Rosa Weber entendeu inexistir sintonia da desproteção do bem de família do fiador de locação comercial com o Tema 295 da Repercussão Geral, pela quebra da isonomia decorrente do favorecimento do comércio do devedor principal em sacrifício do direito de moradia do fiador;

3) Aplicabilidade das diretrizes do Tema 295 à Locação comercial — No julgamento do RE 608.709, o então vencido relator ministro Dias Toffoli não vislumbrou distinção entre o Tema 295 e a fiança em contrato de locação de imóvel residencial, pela ausência de distinção do inciso VII do artigo 3º da Lei nº 8.009/90 ao tipo de locação. Se se a legislação não faz entre locações residencial e comercial, seria o tratamento distinto pelo intérprete que violaria o princípio da isonomia;

4) A livre disposição do bem de família pelo fiador — O proprietário tem a faculdade de dispor da coisa e a Lei n. 8.009/90 apenas prevê a impenhorabilidade do imóvel. Citada lei não impõe a inalienabilidade ou a impossibilidade de onerá-lo. Portanto, o fiador proprietário tem a liberdade de responder ou não com o seu patrimônio, no qual se inclui o seu único imóvel. Vedar tal possibilidade violaria o princípio da boa-fé objetiva;

5) A livre iniciativa e o direito à moradia. Consequências do enfraquecimento da garantia nas locações comerciais — A livre iniciativa é um dos fundamentos da República, artigo 1º, IV, CF. A impenhorabilidade do bem de fiador de locação comercial impactaria a liberdade de empreender do locatário, pois a fiança é a mais usual, menos burocrática, menos onerosa e mais aceita garantia pelos locadores, por ser mais segura. A fiança não descapitaliza o locatário, que pode investir todo seu capital no empreendimento, em vez de constituir outras garantias mais onerosas. Na maioria dos casos, empresas de micro e pequeno porte são os locatários e o fiador é o próprio sócio da pessoa jurídica, o que facilita o desenvolvimento do seu negócio empresarial e prestigia sua autonomia da vontade. Caso se entenda impenhorável o bem de família do fiador de contrato de locação comercial, o locatário seria prejudicado, pois o locador poderia exigir a prova de propriedade do fiador de mais de um imóvel, dificultando a própria locação.

6) Isonomia entre locatário e fiador — A lei do inquilinato não distingue o fiador de locação residencial do fiador de locação comercial para fins de possibilidade da penhora do bem de família. A lei assegurou que ambos os fiadores estão em situação idêntica. Logo, não merecem tratamento jurídico distinto.

7) Proteção do direito social ao trabalho e da defesa do consumidor — A exceção prevista pela Lei nº 8.009/90 propicia acesso à renda e trabalho, que são direitos de idêntica estatura ao da moradia. Pelo trabalho o homem garante o seu sustento e o desenvolvimento do país. O empreendedorismo é uma forma de trabalho e depende da locação comercial para viabilizar a atividade empresarial. A locação ao empresário diminui seus custos, inclusive aos menores que não possuem capital para adquirir imóvel próprio. A fiança em locações comerciais, ao trazer segurança ao locador e menos despesas aos locatários, viabiliza a oferta de imóveis para aluguel, propicia a concorrência, que reduz os valores locatícios, diminuindo o custo fixo dos locatários, que poderão reduzir os preços dos bens e serviços vendidos, a beneficiar o consumidor em última análise.

Percebe-se que o STF, ao não acolher o posicionamento da minoria, então representado pelo RE 605.709, distanciou-se de uma análise puramente principiológica do Direito. Rumou o Pretório Excelso a uma análise mais ao seu cunho econômico, sem, no entanto, descurar-se dos valores carregados pelos textos constitucional e legal. Atento ao impacto prático de sua criação normativa na vida das pessoas, em especial, do empresário, também demonstrou preocupação com o valor constitucional da segurança jurídica ao manter sua jurisprudência.

Fica aberto o debate e colocada nossa atenção aos efeitos da decisão no mercado de locações comerciais, especialmente, no período pós-pandemia.

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[1] Artigo 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:

(…)

II – fiança;

Autores:

Rafael Campos Macedo Britto é advogado, professor universitário, especialista em Direito Empresarial, presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/MS e sócio proprietário do escritório Britto & Simões Advogados.

Eduardo Rezende Campos é advogado, especialista em Direito Imobiliário e Processo Civil, membro da Comissão de Direito Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial da OAB-MS e do Ibradim, sócio proprietário do escritório Eduardo Rezende Campos Advocacia.

Fonte: ConJur