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ConJur – Artigo: Planejamento patrimonial e sucessório – Por Paula Beatriz Loureiro Pires
De início, importante explicar, sem muito “juridiquês”, o que é planejamento patrimonial e sucessório.
Projetos de planejamento patrimonial e sucessório são em regra conduzidos por equipes multidisciplinares, envolvendo advogados especializados em Direito Tributário, Societário e de Família e Sucessões, além de consultores financeiros, de investimentos e de seguros, entre outros.
No âmbito desses projetos são analisados os desenhos familiares e patrimoniais dos interessados, objetivando-se encontrar a forma mais eficiente, especialmente sob a ótica tributária, de reestruturar o patrimônio — imóveis, ativos financeiros, participações societárias etc. —, de modo a atender os objetivos predeterminados pela própria família, seja na condução dos negócios no âmbito das empresas familiares, seja para eventuais adiantamentos de legítima aos herdeiros, entre outros tantos objetivos possíveis.
De fato, as possibilidades são diretamente proporcionais à capacidade criativa dos seres humanos na condução das suas relações, sendo imprescindível ressaltar que não existe uma “receita de bolo” aplicável indiscriminadamente a qualquer projeto. A avaliação deve ser criteriosa e realizada caso a caso, ponderando-se todos os interesses de todos os envolvidos.
Nesse contexto, vivemos neste momento uma verdadeira janela de oportunidade relacionada à possibilidade de ainda maior eficiência tributária na implantação de algumas das soluções comumente utilizadas nos referidos projetos de planejamento patrimonial e sucessório. Explica-se.
O Poder Judiciário, por seus tribunais superiores, vem decidindo recentemente uma série de questões tributárias, de especial interesse dos contribuintes pessoas físicas, que há muito mereciam uma definição e que trazem importantes consequências para a respectiva tributação.
Com efeito, num projeto de planejamento patrimonial e sucessório, os tributos que em regra demandam mais atenção são o Imposto de Renda (IR), em especial sobre o ganho de capital, o Imposto sobre Transmissões Causa Mortis e Doação (ITCMD) e o Imposto sobre Transmissões entre Vivos de Bens Imóveis (ITBI).
Trata-se o IR de um tributo federal, que pode incidir sobre os rendimentos auferidos ou ser exigido na alienação de bens ou direitos, neste último caso incidindo sobre a diferença positiva entre o valor da alienação e o anterior custo de aquisição.
O IRPF sobre rendimentos é assim calculado:
- até R$ 22.847,76 no ano: a alíquota é de zero, assim como a parcela a deduzir;
- de R$ 22.847,77 até R$ 33.919,80 no ano: alíquota de 7,5% e parcela a deduzir de R$ 1.713,58;
- de R$ 33.919,81 até R$ 45.012,60 no ano: alíquota de 15% e parcela a deduzir de R$ 4.257,57;
- de R$ 45.012,61 até R$ 55.976,16 no ano: alíquota de 22,5% e parcela a deduzir de R$ 7.633,51;
- acima de R$ 55.976,16 no ano: alíquota de 27,5% e parcela a deduzir de R$ 10.432,32.
Já no caso do ganho de capital, temos:
- até R$ 5 milhões: alíquota de 15%;
- entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões: alíquota de 17,5%;
- entre R$ 10 milhões e R$ 30 milhões: alíquota de 17,5%;
- acima de R$ 30 milhões: alíquota de 22,5%.
O ITCMD, por outro lado, é estadual, podendo sua alíquota variar de 4% a 8%, incidindo sobre o valor de mercado de quaisquer bens ou direitos transmitidos a título gratuito, seja em decorrência de herança, seja por meio de doação.
Por fim, o ITBI é municipal e também incide sobre o valor de mercado do bem imóvel transmitido, porém neste caso será necessariamente entre vivos e mediante contraprestação. A alíquota na maior parte dos municípios brasileiros é de 2% ou 3%.
Pois bem. O que vêm recentemente dizendo o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito desses tributos e que tem absoluta relevância para projetos de planejamento patrimonial e sucessório? Veja-se:
(1) IR/rendimentos:
Decisão do STF proferida em junho e publicada em 23 de agosto, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.422, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), declarou a inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre valores recebidos a título de alimentos ou pensão alimentícia oriundos do Direito de Família, entendendo que os valores recebidos pelo credor de alimentos não representam acréscimo patrimonial apto a atrair a incidência do imposto, que nesse sentido assume nítido caráter de bitributação, na medida em que já tributados quando do auferimento da renda pelo alimentante.
Reconheceu-se, ademais, que além de violar a garantia do mínimo existencial do alimentando, a manutenção da incidência do IR nesses casos acabaria por afrontar a igualdade de gênero determinada pela Constituição, em especial considerando a realidade estatística brasileira, em que após a dissolução do vínculo conjugal em regra a mãe fica com a guarda preponderante, senão isolada, dos filhos. “Além de criar, assistir e educar os filhos, elas ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança ou do adolescente”, salientou o ministro Roberto Barroso.
Em 3 de outubro foi então publicado o acórdão que rejeitou os embargos de declaração opostos pela União objetivando a modulação dos efeitos da decisão acima, de forma que restou confirmada a possibilidade de restituição dos valores indevidamente pagos nos últimos cinco anos a esse título, por meio da retificação das declarações de ajuste anual do imposto de renda dos alimentandos/responsáveis.
(2) IR/ganho de capital
Outra discussão que vem tomando corpo no Poder Judiciário relaciona-se com a não incidência de IR nas cessões de precatórios, títulos representativos de dívidas do poder público com particulares, em razão de ações judiciais por estes últimos vencidas.
Como o pagamento de precatórios em regra ocorre com atraso de anos, muitas vezes décadas, é usual que ocorra a cessão desses títulos pelos seus titulares para terceiros interessados, às vezes até mesmo para fundos de investimentos em direitos creditórios, cessão essa que envolve a aplicação de percentuais de deságio, ou seja, descontos sobre o valor de face dos títulos.
Resumidamente, os titulares dos precatórios (cedentes) abdicam de uma parcela financeira do direito que lhes foi reconhecido em troca de recebimento antecipado, enquanto o cessionário passa a deter o direito ao recebimento do valor integral daquele título (valor de face mais atualização), porém sem que haja uma data certa para tal recebimento.
Nesse contexto, chama atenção uma hipótese bastante interessante de recuperação do imposto de renda/ganho de capital eventualmente pago nas cessões de precatórios ocorridas nos últimos cinco anos. Explica-se.
A Receita Federal presume que na cessão de precatórios o custo de aquisição é igual a zero, de forma que exige o imposto de renda sobre todo o valor recebido pelo cedente, supondo tratar-se esse montante de ganho de capital, desconsiderando o fato de a cessão desses títulos se dar em regra com deságio (desconto) em relação ao seu valor de face.
O STJ, porém, vem entendendo que o valor de face dos precatórios equivale ao seu custo de aquisição, de forma que na cessão com deságio se tem uma perda de capital, e não um ganho. Nesse sentido, quaisquer valores pagos a título de IR sobre esse ganho, em verdade inexistente, é passível de restituição, mediante ação judicial.
Veja-se este exemplo: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a alienação de precatório com deságio não implica ganho de capital, razão por que não há o que ser tributado em relação ao valor recebido pela cessão do crédito” (AgInt no REsp 1.792.613/RJ).
Também é possível buscar preventivamente uma decisão do Poder Judiciário desobrigando o recolhimento do IR/ganho de capital, antes mesmo de firmado um acordo para cessão com deságio, sendo certo que essa discussão se mostra muito interessante nos dias de hoje, em que a atividade comercial de créditos judiciais está latente, sendo pauta constante no universo das boutiques de investimentos e até mesmo bancos.
Muito embora ainda não haja um posicionamento definitivo norteador do Poder Judiciário sobre o tema, capaz de garantir a certeza de sucesso na tese, as decisões existentes instigam os contribuintes a buscarem o Poder Judiciário para tentar afastar o IR em operações presentes e/ou recuperar o IR pago quando da cessão de precatório com deságio, com chances possíveis tendentes a prováveis de sucesso.
(3) ITCMD/bens no exterior
Adentrando-se a esfera estadual de tributação, chama atenção a discussão a respeito da possibilidade ou não de exigência do ITCMD na herança ou doação de bens e ativos mantidos no exterior.
Com efeito, conforme mencionado acima, a regra geral é de que incidirá o ITCMD na transmissão de bens móveis e direitos, sendo devido ao estado em que domiciliado o falecido/doador.
No entanto, quando se estiver falando de falecido/doador com domicílio ou residência no exterior ou o falecido/doador possuir bens, tiver sido residente/domiciliado ou tiver seu inventário processado no exterior, recentemente o STF declarou a inconstitucionalidade da cobrança do referido tributo pelos estados, na medida em que inexiste lei complementar nacional que estabeleça a regra geral tributária aplicável.
Com efeito, o STF fixou entendimento favorável aos contribuintes, sob o regime da repercussão geral (Tema 825, aplicação erga omnes), durante o julgamento do Recurso Extraordinário nº 851.108, do estado de São Paulo. Além disso, julgou procedentes diversas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra legislações locais: Paraná (ADI 6.818), Tocantins (ADI 6.820), Santa Catarina (ADI 6.823), Mato Grosso do Sul (ADI 6.840), Rio de Janeiro (ADI 6.826), Maranhão (ADI 6.821), Rondônia (ADI 6.824) e Distrito Federal (ADI 6.833).
É importante notar que em sede de modulação de efeitos o STF restringiu aplicabilidade da sua própria decisão aos fatos geradores ocorridos posteriormente a 19/4/2021, data de publicação do acórdão do julgamento de mérito do caso. Diante disso, com exceção às ações judiciais já em curso naquela data, não há como fugir ao pagamento do ITCMD para fatos geradores anteriores ao julgamento ou mesmo pedir restituição de valores eventualmente recolhidos.
Por outro lado, mais recentemente ainda — no último dia 3 de junho — foi provida a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 67, em que o STF declarou que há omissão legislativa na regulamentação do artigo 155, parágrafo 1º, inciso III, da Constituição, referente às regras para que os estados e o Distrito Federal possam instituir a cobrança do imposto quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior ou se a pessoa falecida possuir bens, tiver sido residente/domiciliada ou tiver seu inventário processado no exterior.
A partir daquela data, o Congresso tem 12 meses para editar referida lei complementar de caráter nacional e depois disso os Legislativos estaduais ainda deverão editar as próprias legislações locais. Até que isso ocorra, porém, não há que se falar em tributação, tratando-se, portanto, de uma interessante janela de oportunidade (ao menos sob a ótica da legislação brasileira), caso se entenda por bem realizar algum movimento tendente a adiantar, por meio de doação em vida, a parcela legítima da herança (equivalente a 50% do patrimônio do doador, no momento da doação, destinada aos herdeiros necessários) ou mesmo para destinar a parte disponível (demais 50%, destináveis livremente).
(4) ITCMD/seguros de vida e previdência privada
Outro interessante ponto a ressaltar é que valores de seguro de vida pagos aos beneficiários previamente indicados pela pessoa falecida não assumem caráter de herança, não compondo o espólio e, por consequência, não integrando a base de cálculo do ITCMD. É o que dispõe expressamente o artigo 794 do Código Civil: “No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito”.
No tocante aos valores pagos em decorrência de Plano Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) ou Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL), porém, ainda não há uma definição exata pelo Poder Judiciário.
Vale recordar que no momento da escolha do plano, avalia-se em regra a incidência do IR: no VGBL incide sobre os rendimentos, enquanto no PGBL sobre valor total. No momento do pagamento, porém, a discussão migra para o ITCMD.
E há certa tendência pelos Tribunais locais de excluir o VGBL da incidência do ITCMD por sua maior semelhança aos seguros de pessoa, mantendo-se a incidência para o PGBL, por sua maior proximidade com uma poupança previdenciária.
Quanto aos estados, em sua maioria afirmam pela incidência em ambos os planos, mas no estado de São Paulo, por exemplo, o próprio sistema eletrônico de preenchimento da declaração de ITCMD exclui ambos do respectivo cálculo.
Para dirimir essa dúvida, em maio último o STF reconheceu, nos autos do RE 1.363.013, repercussão geral à referida discussão, travada entre o estado do Rio de Janeiro e a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência Complementar Aberta (Fenaseg).
Uma vez finalizado esse julgamento, a decisão que vier a ser tomada vinculará todos os órgãos do Poder Judiciário, que deverão replicar o entendimento firmado pelo STF.
(5) ITBI/base de cálculo
A última oportunidade que traremos refere-se à base de cálculo do ITBI, tributo de absoluta relevância quando da reestruturação do patrimônio imobiliário de determinada família, em geral mediante aumento do capital social de uma pessoa jurídica e sua integralização pela conferência dos imóveis detidos pelos respectivos sócios pessoas físicas.
É de se notar que não incidirá o ITBI caso a pessoa jurídica recebedora dos imóveis não tenha preponderância imobiliária, ou seja, cujas receitas mensais não decorram em sua maior parte de atividades imobiliárias (quais sejam, venda, locação ou arrendamento de imóveis), ao menos ao longo dos 3 anos seguintes em casos de empresas recém-constituídas.
Caso haja preponderância imobiliária, porém, haverá a incidência do ITBI, sendo certo que a maior parte dos municípios brasileiros determinam que a base de cálculo do referido tributo equivalerá ao seu valor de mercado, valor esse em regra superior à própria base de cálculo do IPTU e muitas vezes fixado unilateralmente pela própria municipalidade.
Não obstante, em março último o STJ fixou, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.113, REsp 1.937.821), as três teses abaixo, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário:
1. A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
2. O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do Código Tributário Nacional – CTN);
3. O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.
Considerando-se as três teses fixadas é possível alcançar excelente economia no recolhimento do ITBI eventualmente incidente, mediante adequação da base de cálculo do ITBI ao valor efetivo da operação, sem a necessidade de observância de possíveis valores de referência fixados pelo próprio município.
*Paula Beatriz Loureiro Pires é advogada, especialista em Direito Tributário e política e relações internacionais, atuando preventiva e repressivamente em planejamentos patrimoniais e sucessórios, planejamentos tributários e Direito Tributário em geral.
Fonte: ConJur