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ConJur – Artigo: O procedimento extrajudicial e o acesso ao agente de execução no PL6.204/19 – Por Arruda Alvim e Joel Dias Figueira Júnior
O inovador Projeto de Lei (PL) 6.204/19, de autoria da senadora Soraya Thronicke, que dispõe sobre a “desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial”, traz em seu bojo regramento atinente ao processamento desses feitos perante os tabelionatos de protestos, cujo acesso se dá de forma absoluta aos agentes de execução, responsáveis pela administração dos procedimentos extrajudiciais dessa espécie, a exemplo dos exitosos modelos normativos adotados em Portugal e França (sistemas híbridos = juiz permanece do início ao fim à disposição das partes para manter a observância do devido processo legal — processo desjudicializado sem perder a sua natureza jurisdicional).
O tema da “obrigatoriedade” ou “facultatividade” como vetor de acesso à Justiça não é novo em doutrina ou em sede legislativa [1] — em que pese pouquíssimo explorado, sobretudo quando se trata de desjudicialização —, merecendo destaque a curiosa situação normativa brasileira em que se inserem os procedimentos dos juizados especiais, ora facultativo (Juizados Estaduais Cíveis — Lei 9.099/95, artigo 3º, §3º), ora obrigatório (Juizados Fazendários — Lei 12.153/09, artigo 2º, §4º e Juizados
Federais — Lei 10.259/01, artigo 3º, §3º). Percebe-se, facilmente, que o tema encontra como ponto de partida a vontade do legislador motivada em elementos que resultam do cotejo analítico das possíveis vantagens e desvantagens de uma ou outra escolha a ser feita nessa seara.
Neste breve estudo procuraremos demonstrar os principais fundamentos da escolha feita pelo legislador no PL em exame, sem perdermos de vista a dimensão do “outro lado da moeda”, que também porta consigo alguns atrativos, que não podem e não devem ser desconsiderados para uma reflexão séria a respeito do tema posto.
Principais fundamentos que sustentam a opção legislativa:
1) Imbricar o conteúdo normativo com a política do Poder Judiciário que absorveu integralmente a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e inseriu-se em 2018 de forma pioneira no programa voltado aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e, para tanto, estabeleceu a Meta 9 (“prevenção de conflitos e desjudicialização”);
2) Seguir a mesma linha dos modelos legislativos estrangeiros exitosos com os procedimentos executivos extrajudiciais não facultativos e que encontram a mesma origem e identidade normativa (civil law ou romano-canônico), notadamente Portugal e França;
3) Reduzir sensivelmente o excessivo volume de demandas que tramitam no Poder Judiciário (77 milhões);
4) Como consequência imediata, oferecer aos jurisdicionados o acesso pleno e irrestrito aos cartórios extrajudiciais, que representam garantia para os consumidores desses serviços, prestados com extrema segurança jurídica, transparência, celeridade, publicidade, responsabilidade e qualidade acima dos padrões, fato este reconhecido por todos os usuários [2] pelas Corregedorias-Gerais de Justiça e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ);
5) Direcionar com segurança o jurisdicionado para o caminho a ser seguido em busca da pretensão recuperatória de crédito fundado em título executivo;
6) Recuperar mais rapidamente os créditos represados pela inadimplência e recalcitrância do devedor, notadamente com a prática do protesto antecipado [3], o que refletirá a curto e médio prazos no fomento gradativo da economia nacional;
7) De plano, disponibilizar aos jurisdicionados o acesso a um elevado número de serventias extrajudiciais (muito superior ao número de varas e juízes com competência cível) [4];
8) Reflexo imediato na redução de demandas executivas em tramitação no Poder Judiciário, de maneira a conferir aos magistrados e serventuários a possibilidade real de direcionamento de seus esforços e tempo de trabalho para os processos que exigem do Estado-juiz a efetiva prestação de tutela jurisdicional (conhecimento e de urgência);
9) Impactar rapidamente na redução de despesas para os cofres públicos (R$ 65 bilhões);
10) Reduzir custos em investimentos futuros e de manutenção do funcionamento do Judiciário, na medida em que, com a diminuição de demandas executivas, tornar-se-á desnecessária a criação de novas varas cíveis, cargos de juízes e de serventuários, além de instalações físicas e equipamentos para o desempenho desse mister;
11) Permitir que os tabeliães de protesto possam melhor realizar os ajustes necessários de infraestrutura (física e de pessoal) em suas serventias para, desde o início, bem atender os consumidores desses novos serviços, que serão por eles prestados;
12) Conferir segurança para o planejamento financeiro e estratégico de atuação dos serventuários extrajudiciais que exercerão de forma específica ou cumulativa as atribuições de “agentes de execução”, tendo em vista que poderão aferir com maior precisão o número de demandas executivas que aportarão em seus cartórios e, assim, melhor dimensionar e programar o fluxo de trabalho na administração desses procedimentos (organização técnica e administrativa).
Por outro lado, não se pode desconsiderar que o critério não adotado pelo legislador (facultatividade procedimental extrajudicial) pode trazer consigo algumas outras vantagens, como veremos a seguir, porém, de menor envergadura quando confrontado com a opção feita.
Um dos argumentos utilizados pelos que defendem a facultatividade procedimental da execução extrajudicial repousa na bem sucedida tradição jurídico-normativa que há muito trilhamos com a prática da desjudicialização, iniciada há 17 anos com a Lei 10.931/2004, que instituiu a retificação do registro imobiliário sem a atuação do Estado-juiz, seguindo-se a edição de tantas outras, tais como o inventário, separação e divórcio (Lei 11.441/2007), da retificação de registro civil (Lei 13.484/2017) e da usucapião instituída pelo Código de 2015 (artigo 1.071 — LRP, artigo 216-A).
Verifica-se, contudo, um forte traço distintivo entre a proposta contida no PL 6.204/19 com as leis mencionadas, qual seja, o caráter meramente administrativo (“jurisdição voluntária”) daqueles procedimentos, que se realizam unilateralmente ou de forma consensual, enquanto a execução extrajudicial perfectibiliza-se a partir de pretensão insatisfeita [5], pois fundada em título líquido, certo e exigível, com desdobramentos previsíveis de atos diversos executivos, tais como citação, penhora, expropriação e alienação de bens do executado, sem contar com a possibilidade de incidentes processuais, embargos do devedor, de terceiro etc.
Afigura-se também equivocada a conclusão de que a facultatividade levaria a concorrência de acessos mediante critério de escolha do credor, hábil a dar ensejo à permanente e crescente melhora dos serviços a serem prestados pelos cartórios extrajudiciais. Talvez, em casos excepcionais, esse resultado possa vir a ocorrer; contudo, não se pode olvidar que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público” (CF, artigo 236), sendo a busca por prestação de serviços cada vez mais qualificados uma constante nas serventias extrajudiciais, pois decorrente do cumprimento de ver legal (L 8.935/94, artigo 4º c/c artigos 22, 24, 31 e 30, II). Ademais, dá ensejo à percepção de emolumentos que garante a própria sobrevivência de todos os integrantes das serventias.
Outro aspecto a ser destacado respeita ao propalado assentimento prévio do devedor a fim de que o credor possa percorrer o procedimento extrajudicial; com todas as vênias, trata-se de compreensão equivocada sobre o direito de agir, em especial em se tratando de execução cuja demanda traz consigo pretensão qualificada (mais do que resistida, insatisfeita) diante da recalcitrância do devedor em quitar a sua dívida. É no mínimo ingênuo pensar que o devedor daria o seu consentimento para ser executado em procedimento extrajudicial, pois todos os indicadores apontam para a obtenção de um resultado mais célere e satisfatório em prol do credor, quando comparado com os dados obtidos na jurisdição estatal. Por outro lado, o devedor poderá a qualquer momento, sempre que se fizer necessário, acessar o Estado-juiz (PL artigos 18 e 21)
Também não há qualquer paralelo entre a via extrajudicial da execução civil e a via jurisdicional arbitral; isso porque a arbitragem encontra-se revestida de natureza jurisdicional negocial, fundada na autonomia da vontade das partes contratantes, ou seja, jurisdição de caráter privado prestada por árbitros (juízes de fato e de direito — LA artigo 18), enquanto o tabelião de protestos na qualidade de agente de execução exercerá apenas atribuições administrativas executivas procedimentais.
Digamos que um dos pontos positivos do regime da facultatividade resida na possibilidade de escolha pelo credor entre os dois sistemas, norteando-se de acordo com a via que melhor atenda às suas expectativas voltadas à qualidade dos serviços prestados pelo Estado-juiz ou agente de execução. De fato, não se pode desconsiderar que, em determinado tempo e local, os serviços podem estar sendo oferecidos aos consumidores com melhor qualidade e rapidez em sede judicial ou extrajudicial, por exemplo, nos casos de serventias vagas ou com serviços deficitários, ausência frequente de juiz titular por razões diversas, falta de oficiais de Justiça ou de outros serventuários etc.
Já ouvimos dizer também que a facultatividade viria ao encontro dos interesses do credor, pois solucionaria o problema da insuficiência do número de tabeliães de protesto, porquanto em desproporção com o elevado número de demandas executivas em curso e aos quatro milhões de novas ações que aportam, em média, a cada ano, conforme os últimos dados obtidos no “Justiça em Números”. Trata-se de um falso problema, que se origina em equívoco de avaliação de dados concretos, valendo repetir que o número de tabelionato de protestos supera em aproximadamente mil unidades o número de varas cíveis com competência residual e que o protesto prévio necessário reduzirá consideravelmente o número de demandas executivas assim como será elemento determinante na recuperação rápida do crédito perseguido.
Há de se observar também que a facultatividade estará presente em se tratando de título executivo extrajudicial de valor não excedente a 40 salários mínimos ou sentenças condenatórias para pagamento de soma oriundas dos Juizados Especiais Cíveis, tendo-se como certo que o modelo previsto no PL 6.204/19 não exclui ou se sobrepõe à Lei 9.099/95 (artigo 3º, §3º, c/c artigo 53).
De outra banda, é inegável que algumas das vantagens acima elencadas e as razões que levaram o legislador a fazer a escolha pela vinculação do acesso único aos tabelionatos de protesto não deixariam de existir se a opção procedimental fosse pela “facultatividade”. Contudo, o que se deve considerar — por ser de fundamental importância — é que a forma, a extensão e o tempo de obtenção dos resultados almejados terminarão reduzidos e ofuscados, perdendo sensivelmente o seu impacto positivo quando confrontados entre si os dois modelos, a começar pela letárgica redução de demandas executivas que tanto assoberbam o Poder Judiciário e assombram os jurisdicionados.
Nada obstante estarmos seguros de que a melhor opção encontra-se bem traçada no texto do PL 6.204/19, talvez seja de bom alvitre escaparmos do dualismo em busca de uma “via de meio” que possa, num primeiro momento de entrada em vigor da nova lei, adequar-se às diferentes realidades sempre encontradas em nosso país de dimensões continentais, além de harmonizar os entendimentos dos estudiosos preocupados com esse tema, todos desejosos por encontrar o melhor caminho legislativo para os jurisdicionados… Digamos: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
A ideia que trazemos a lume não é nova, mas precisa ser amadurecida. Trata-se da possibilidade de se criar uma regra de transição entre a facultatividade e a obrigatoriedade de acesso ao agente de execução, como forma intermediária de implementação do novo sistema, quiçá com menor risco e percalços que possam, eventualmente, surgir de início e, assim, obter-se resultados práticos mais profícuos com a desjudicialização da execução civil, ou seja, instituí-la de forma gradativa.
Esta talvez possa vir a ser uma boa alternativa entre os dois modelos apresentados, além de servir como elemento pacificador e de convergência de ideias, em que a facultatividade venha a ser admitida por determinado tempo; essa fase de transição estaria sendo administrada e controlada pelos tribunais de Justiça, conforme programas preestabelecidos pelas Corregedorias-Gerais, voltados ao atendimento das particularidades de cada comarca, em estreita sintonia com as serventias extrajudiciais, de maneira a permitir o acesso obrigatório ao agente de execução (ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 1º, parágrafo único, do PL e de opção pelos Juizados Especiais Cíveis) somente quando verificada a adequação satisfatória dos novos serviços a serem ofertados aos consumidores do Direito, o que poderá ocorrer desde a entrada em vigor da nova lei ou dentro do prazo limite por ela estipulado.
Parece-nos que a transitoriedade entre os dois sistemas possa vir a ser uma alternativa razoável capaz de atender bem as expectativas dos jurisdicionados, do Poder Judiciário e dos advogados.
É bem verdade que toda moeda tem dois lados… Mas só um deles é capaz de identificar o seu valor. Anverso ou reverso?
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[1] “Acesso à justiça” = equivalentes jurisdicionais.
[2] V. Instituto de Pesquisa Datafolha –2016-2017 (https://www.acritica.net/editorias/geral/pesquisa-datafolha-com-usuarios-elege-cartorios-como-instituicao-mais/186904/ – acesso em 11/5/21).
V. entrevista concedida pelo Min. Luis Felipe Salomão à Revista Cartórios 15, pp. 8 a 15 (1ª ed. Junho/21, Migalhas 5.014, de 1º/6/21, “Novidades”).
[3] . Cf. “Cartório em Números 2020”, o protesto se apresenta como poderoso elemento inibidor de execuções e de eficiente recuperação de créditos, tendo em vista que aproximadamente 68% dos títulos protestados são pagos.
[4] Cf. Justiça em Números 2020 existem apenas aprox. 2.801 varas cíveis e juizados especiais com competência residual para execução civil, contra 3.779 cartórios de protesto.
[5] Cf. Francesco Carnelutti.
Arruda Alvim é advogado, parecerista, consultor jurídico, livre-docente e doutor pela PUC/SP, professor titular de Direito Civil do mestrado e doutorado da PUC/SP, membro da Academia Paulista de Direito e da Academia Brasileira de Direito Civil, membro honorário do IBDP, membro emérito do IASP. Foi Procurador da Fazenda Nacional e desembargador do TJSP, diretor e fundador da Revista de Processo e foi revisor do novo CPC na Câmara dos Deputados.
Joel Dias Figueira Júnior é pós-doutor pela Università degli Studi di Firenze e Doutor pela PUC/SP, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do IBDP, professor de Cursos de Pós-graduação do CESUSC; foi presidente da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto de lei que deu origem ao PL 6.204/19; integrou a Comissão Especial de Assessoria da Relatoria-Geral do Código Civil na Câmara dos Deputados, membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem-CBAr, desembargador aposentado do TJSC, advogado, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: ConJur